Joselito e
Macarrão não eram uma dupla. Muito menos sertaneja. Embora morassem no Pantanal e os dois
fossem músicos, que por vezes até tocavam juntos em algumas apresentações
locais, não eram definitivamente uma dupla, na acepção do que reza a
denominação.
Na maioria das
vezes se juntavam pra ensaiar e até trocavam arranjos de uma ou outra música,
já que eram vizinhos. O violão, claro, estava sempre à mão e os encontros que
normalmente surgiam, quando não eram pra tocar, eram pra ver o Flamengo. Ou então
azarar algum time rival que estivesse na vez.
Passando de
ônibus uma tarde por uma alameda, próxima da entrada do bairro, numa região um
pouco mais afastada, Macarrão avistou uma enorme jaqueira, toda carregada, os
frutos quase caindo de tão maduros. Tentou guardar na memória o endereço ou a
localização, e de pronto pensou no amigo, que tinha carro, e bem podia ajudar
na missão de conseguir uma ou duas daquelas lindas jacas enormes.
Quando contou
mais ou menos onde era a casa, Joselito torceu o lábio:
– É que, pra
aqueles lados, só têm fazenda, chácara, ou seja, só propriedades grandes. E
nesses casos fica difícil de pegar a fruta. Não sei não...
– Uma coisa eu
reparei: as ruas são todas de chão batido. Nem tem calçamento na maioria delas
e parece uma zona rural. E eu notei também que tem muita jaca e nesse local
elas estão quase passando do muro. Ninguém deve pegar pra comer. A árvore que
eu vi, por exemplo, fica bem pertinho e se uma jaca cair de madura tá arriscado
até a cair já na rua. Aí fica mais fácil pra nós, né?
– Vamos fazer
o seguinte: amanhã a gente passa lá de carro e dá uma boa olhada. Depois a
gente pensa uma maneira, avalia a situação e ajusta algum plano.
Como Joselito
era o sujeito das soluções, o cara que sabia contornar e dar jeito nas piores
intercorrências, Macarrão ficou tranquilo porque, certamente, ao final, alguma
saída o amigo ia encontrar. Ao menos assim ele esperava.
Na manhã
seguinte estavam os dois a bordo da velha Belina, circulando pelas ruas cheias
de pó da periferia do bairro. Mal tinham atenção pra dirigir, uma vez que eles
só olhavam pra cima, tentando identificar as tais árvores frondosas. Entra em
beco, sai em beco e de repente uma carrada de jaqueiras, todas enfileiradas,
surge no final da rua, por cima dos muros brancos, recém caiados.
– É ali. Ali
mesmo. Que maravilha. Olha essas jacas, rapaz!
– E você por
acaso sabe dizer se estão maduras? Já que gosta tanto delas, consegue saber só olhando
daqui?
– Claro! Pelo
tamanho, pela cor da casca. Aposto que estão prontinhas pra cair a qualquer
momento.
– Hã-hã...
Então vamos lá ver isso de perto.
Numa rua sem calçada
e sem pavimentação, praticamente deserta, qualquer carro que passa é notado por
todo mundo. Ainda mais se ele para e os seus dois ocupantes ficam conversando,
olhando pra uma propriedade qualquer e apontando pra cima, pros galhos de além
do muro.
Não deu dois
minutos e logo um senhor de bermuda e camisa aberta de cima a baixo surgiu no
portãozinho, ao lado da entrada de carros. Imediatamente, a primeira opção da
dupla – que não era dupla, conforme já explicado – foi reavaliar que a ideia de
simplesmente pegar uma jaca podia ficar bem distante.
– Estamos
olhando as suas jacas. Lindas, né? Parecem estar madurinhas. Estão quase
caindo, né? – disseram quase titubeando, meio sem jeito, apontando para os
frutos no alto da árvore.
– As jacas não
são minhas, não-senhor. São todas do coronel – e nesse momento deu pra ver o
cabo da espingarda que o homem trazia junto às pernas.
– Será que ele,
o coronel, não dava umas pra gente? Ou será que ele não concordaria em vender
uma só, apenas uma pelo menos?
– Isso eu já
não sei não-senhor. O coronel está pras bandas de Dourados, em uma outra
fazenda que ele tem lá.
– Pois é.
– Pois é.
O terceiro
“pois é” saiu da boca do próprio Macarrão, já batendo nas costas do amigo e
dizendo um lamentoso “deixa pra lá, vambora daqui logo”. Ele então entrou no
carro desanimado, pronto pra esquecer as imagens oníricas daquelas jacas madurinhas,
alinhadas no muro do tal coronel.
Em vez de
entrar no carro, o amigo Joselito foi andando pra perto do sujeito da camisa
aberta, que continuava a segurar a espingarda virada pra baixo.
– Posso ir aí,
falar com o senhor?
– Falar, pode sim-senhor.
Se achegue.
Sob o olhar
duvidante do Macarrão, os dois ficaram ali proseando um tempo, eu diria até
curto, pelo muito de desacordo que pairava naquela capitulação. O amigo
gesticulava, apontava pra jaca, pro carro, fazia gestos a princípio indefinidos
na direção do empregado do coronel, que, por sua vez, também fazia alguns sinais
dúbios, quase afirmativos, com a cabeça. Logo em seguida, foi possível ver o
sujeito cruzar o pequeno portão e depositar a espingarda lá dentro, encostando
a arma numa cadeira ali perto. Depois voltou e retomou a conversa, abotoando
uma parte da camisa.
Quando se viu
acabrunhado, apoiando o cotovelo na janela do carro e o queixo nas mãos,
Macarrão percebeu que os dois falavam algo na sua direção.
– Vem cá,
rapaz.
– Chega aí,
Macarrão. Vem cá falar com o nosso amigo Jurandir.
O pobre não
sabia se ia ou se ficava, se aquilo era golpe ou amizade, se o convite era pra
tomar um gole ou um tiro de espingarda. Pensando primeiramente em firmar as
pernas bambas, ele saiu do carro e foi caminhando, hesitante, até o portão.
– O que esse
Joselito aprontou agora, meu Deus – disse consigo, enquanto se aproximava
ressabiado.
– Dá cá um
abraço, meu amigo. Quer dizer que você vai ser avô, meu nego? Mas isso é mesmo
uma benção de Nosso Senhor. E olha, quando um pai sai de casa com a missão de
atender a um desejo da filha de bucho cheio, tem todo o meu respeito. Ninguém
nesse mundo pode negar um desejo de mulher que vai parir. Me diz aí, quantas
jacas o amigo quer levar pra sua filha? É só me dizer, cabra bom!
Foi só o tempo
de os dois amigos se entreolharem e, por um instante, deixar toda a eternidade
passar por eles.
Atordoado e
ainda meio incrédulo sobre como Joselito conseguiu, tão rápido, convencer o
empregado, o outrora triste, agora alegre Macarrão só teve o impulso de, obrigatoriamente,
confirmar a gravidez da filha e aceitar os parabéns que, afinal, vinham
possibilitar a dádiva celestial que era a oferta improvável da jaca do coronel.
Não só o homem
permitiu que a dupla – que não é dupla – pegasse a jaca, como chamou um
rapazote da fazenda pra ajudar. Ele subiu na árvore e depois levou até o carro,
uma não, mas duas jacas, enormes, frutos exemplares da melhor safra jaqueira
que o Mato Grosso do Sul já teve notícia.
Por fim, há
quem jure ter ouvido o seguinte diálogo burlesco, antes que aqueles dois entrassem
no carro:
– Sabe de uma
coisa, Macarrão? Se o neto fosse meu ia se chamar Jurandir. Ah, ia sim!
– Ora, pois. Vou
pensar no assunto. Pode deixar.
– É sério. Não ri não.
– Rapaz, não
sei de onde pode sair tanta artimanha de dentro de uma só pessoa.
De longe o
homem da portaria sacudia a cabeça, enquanto olhava os dois se afastando, um empurrando
o ombro do outro.
Mas que dupla!