quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

A Jaca


Joselito e Macarrão não eram uma dupla. Muito menos sertaneja. Embora morassem no Pantanal e os dois fossem músicos, que por vezes até tocavam juntos em algumas apresentações locais, não eram definitivamente uma dupla, na acepção do que reza a denominação.

Na maioria das vezes se juntavam pra ensaiar e até trocavam arranjos de uma ou outra música, já que eram vizinhos. O violão, claro, estava sempre à mão e os encontros que normalmente surgiam, quando não eram pra tocar, eram pra ver o Flamengo. Ou então azarar algum time rival que estivesse na vez.

Passando de ônibus uma tarde por uma alameda, próxima da entrada do bairro, numa região um pouco mais afastada, Macarrão avistou uma enorme jaqueira, toda carregada, os frutos quase caindo de tão maduros. Tentou guardar na memória o endereço ou a localização, e de pronto pensou no amigo, que tinha carro, e bem podia ajudar na missão de conseguir uma ou duas daquelas lindas jacas enormes.

Quando contou mais ou menos onde era a casa, Joselito torceu o lábio:

– É que, pra aqueles lados, só têm fazenda, chácara, ou seja, só propriedades grandes. E nesses casos fica difícil de pegar a fruta. Não sei não...

– Uma coisa eu reparei: as ruas são todas de chão batido. Nem tem calçamento na maioria delas e parece uma zona rural. E eu notei também que tem muita jaca e nesse local elas estão quase passando do muro. Ninguém deve pegar pra comer. A árvore que eu vi, por exemplo, fica bem pertinho e se uma jaca cair de madura tá arriscado até a cair já na rua. Aí fica mais fácil pra nós, né?

– Vamos fazer o seguinte: amanhã a gente passa lá de carro e dá uma boa olhada. Depois a gente pensa uma maneira, avalia a situação e ajusta algum plano.

Como Joselito era o sujeito das soluções, o cara que sabia contornar e dar jeito nas piores intercorrências, Macarrão ficou tranquilo porque, certamente, ao final, alguma saída o amigo ia encontrar. Ao menos assim ele esperava.

Na manhã seguinte estavam os dois a bordo da velha Belina, circulando pelas ruas cheias de pó da periferia do bairro. Mal tinham atenção pra dirigir, uma vez que eles só olhavam pra cima, tentando identificar as tais árvores frondosas. Entra em beco, sai em beco e de repente uma carrada de jaqueiras, todas enfileiradas, surge no final da rua, por cima dos muros brancos, recém caiados.

– É ali. Ali mesmo. Que maravilha. Olha essas jacas, rapaz!

– E você por acaso sabe dizer se estão maduras? Já que gosta tanto delas, consegue saber só olhando daqui?

– Claro! Pelo tamanho, pela cor da casca. Aposto que estão prontinhas pra cair a qualquer momento.

– Hã-hã... Então vamos lá ver isso de perto.

Numa rua sem calçada e sem pavimentação, praticamente deserta, qualquer carro que passa é notado por todo mundo. Ainda mais se ele para e os seus dois ocupantes ficam conversando, olhando pra uma propriedade qualquer e apontando pra cima, pros galhos de além do muro.

Não deu dois minutos e logo um senhor de bermuda e camisa aberta de cima a baixo surgiu no portãozinho, ao lado da entrada de carros. Imediatamente, a primeira opção da dupla – que não era dupla, conforme já explicado – foi reavaliar que a ideia de simplesmente pegar uma jaca podia ficar bem distante.

– Estamos olhando as suas jacas. Lindas, né? Parecem estar madurinhas. Estão quase caindo, né? – disseram quase titubeando, meio sem jeito, apontando para os frutos no alto da árvore.

– As jacas não são minhas, não-senhor. São todas do coronel – e nesse momento deu pra ver o cabo da espingarda que o homem trazia junto às pernas.

– Será que ele, o coronel, não dava umas pra gente? Ou será que ele não concordaria em vender uma só, apenas uma pelo menos?

– Isso eu já não sei não-senhor. O coronel está pras bandas de Dourados, em uma outra fazenda que ele tem lá.

­– Pois é.

– Pois é.

O terceiro “pois é” saiu da boca do próprio Macarrão, já batendo nas costas do amigo e dizendo um lamentoso “deixa pra lá, vambora daqui logo”. Ele então entrou no carro desanimado, pronto pra esquecer as imagens oníricas daquelas jacas madurinhas, alinhadas no muro do tal coronel.

Em vez de entrar no carro, o amigo Joselito foi andando pra perto do sujeito da camisa aberta, que continuava a segurar a espingarda virada pra baixo.

– Posso ir aí, falar com o senhor?

– Falar, pode sim-senhor. Se achegue.

Sob o olhar duvidante do Macarrão, os dois ficaram ali proseando um tempo, eu diria até curto, pelo muito de desacordo que pairava naquela capitulação. O amigo gesticulava, apontava pra jaca, pro carro, fazia gestos a princípio indefinidos na direção do empregado do coronel, que, por sua vez, também fazia alguns sinais dúbios, quase afirmativos, com a cabeça. Logo em seguida, foi possível ver o sujeito cruzar o pequeno portão e depositar a espingarda lá dentro, encostando a arma numa cadeira ali perto. Depois voltou e retomou a conversa, abotoando uma parte da camisa.

Quando se viu acabrunhado, apoiando o cotovelo na janela do carro e o queixo nas mãos, Macarrão percebeu que os dois falavam algo na sua direção.

– Vem cá, rapaz.

– Chega aí, Macarrão. Vem cá falar com o nosso amigo Jurandir.

O pobre não sabia se ia ou se ficava, se aquilo era golpe ou amizade, se o convite era pra tomar um gole ou um tiro de espingarda. Pensando primeiramente em firmar as pernas bambas, ele saiu do carro e foi caminhando, hesitante, até o portão.

– O que esse Joselito aprontou agora, meu Deus – disse consigo, enquanto se aproximava ressabiado.

– Dá cá um abraço, meu amigo. Quer dizer que você vai ser avô, meu nego? Mas isso é mesmo uma benção de Nosso Senhor. E olha, quando um pai sai de casa com a missão de atender a um desejo da filha de bucho cheio, tem todo o meu respeito. Ninguém nesse mundo pode negar um desejo de mulher que vai parir. Me diz aí, quantas jacas o amigo quer levar pra sua filha? É só me dizer, cabra bom!

Foi só o tempo de os dois amigos se entreolharem e, por um instante, deixar toda a eternidade passar por eles.

Atordoado e ainda meio incrédulo sobre como Joselito conseguiu, tão rápido, convencer o empregado, o outrora triste, agora alegre Macarrão só teve o impulso de, obrigatoriamente, confirmar a gravidez da filha e aceitar os parabéns que, afinal, vinham possibilitar a dádiva celestial que era a oferta improvável da jaca do coronel.

Não só o homem permitiu que a dupla – que não é dupla – pegasse a jaca, como chamou um rapazote da fazenda pra ajudar. Ele subiu na árvore e depois levou até o carro, uma não, mas duas jacas, enormes, frutos exemplares da melhor safra jaqueira que o Mato Grosso do Sul já teve notícia.

Por fim, há quem jure ter ouvido o seguinte diálogo burlesco, antes que aqueles dois entrassem no carro:

– Sabe de uma coisa, Macarrão? Se o neto fosse meu ia se chamar Jurandir. Ah, ia sim!

– Ora, pois. Vou pensar no assunto. Pode deixar.

– É sério. Não ri não.

– Rapaz, não sei de onde pode sair tanta artimanha de dentro de uma só pessoa.

De longe o homem da portaria sacudia a cabeça, enquanto olhava os dois se afastando, um empurrando o ombro do outro.

Mas que dupla!

 

 


sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

Marlene e Emilinha


Por muito custo, naquele ano minha mãe resolveu aceitar o meu convite de ir ver o Carnaval. Não que ela não gostasse de Carnaval. Durante quase toda a sua juventude os blocos do bairro ensaiavam quase que na frente da nossa casa. Além disso, os bailes eram frequentes no subúrbio e ela e as amigas sempre costumavam ir juntas.

Claro que, com o passar do tempo, marido, os filhos, essa condição foi se modificando, “naturalmente”. Mas a gente sabia que ela gostava mesmo era de estar perto das batucadas, das serpentinas, o quanto fosse possível, como boa mangueirense que era.

Fui buscá-la em casa e nem precisei recomendar nada. Foliã de responsa, ela trazia o mínimo de documentos, um dinheirinho e uma toalhinha, tudo no fundo de uma minúscula bolsinha à tiracolo. No caminho eu fui revelando que o nosso objetivo principal era a famosa Banda de Ipanema. Ela titubeou sobre a quantidade de gente que sempre acompanha esses blocos famosos, mas eu fui cuidando de a acalmar, dizendo que iríamos ficar na periferia da Banda, pra poder ver tudo com tranquilidade sem correr riscos desnecessários.

No bairro de Ramos, onde a gente morava, tinha uma rua especialmente destinada aos grandes eventos. Era a Rua das Missões. Ali passavam as grandes procissões dos santos famosos, nas suas datas idem, inclusive as marchas eclesiais durante a liturgia da Páscoa. Mas a Rua das Missões ficava realmente lotada, justamente no Carnaval, quando os blocos, como Cacique de Ramos e Bafo da Onça ali desfilavam e, para delírio das gerais, na terça-feira, tinha a apresentação da escola de samba Imperatriz Leopoldinense, cuja sede fica no próprio bairro de Ramos. Todas aquelas fantasias suntuosas que a gente só conhecia pela televisão, na passagem da Imperatriz a gente podia ver bem de perto, em cada detalhe, junto com cada evolução do passista que a vestia.

A única coisa que eu tinha de recomendação era que a minha mãe ficasse bem próxima de mim. No meio do tumulto, toda aquela gente junta, seria bem ruim se a gente se separasse por algum motivo qualquer, o que provavelmente causaria um sobressalto desnecessário naquela nossa diversão. Fora isso, era só aproveitar o famoso bloco, um dos melhores do Carnaval, sem dúvida.

Internamente, eu lembrava que era comum as Drags, as divertidas Drag Queens, que sempre passavam por mim – e por todos os homens, principalmente os sem fantasia – a emitir, digamos, galanteios os mais variados, pegando na minha barba, dizendo que eu estava sumido, que a nossa filha estava com saudades, e finalizando com o famoso gesto dos dedos polegar e mínimo estendidos, pedindo que eu ligasse, e mandando um beijo sensual. De alguma maneira, mesmo sabendo que essas troças eram muito legais, dentro das brincadeiras de Momo, eu não sabia muito bem como a minha mãe ia entender aquilo, o que me dava uma certa inquietação. Mas, vamos lá, afinal é Carnaval.

Então, em plena Banda de Ipanema, cantando todas aquelas famosas marchinhas a plenos pulmões, a gente, a cada hora, chamava a atenção um do outro pra cada nova diva que surgia. Uma mais criativa e mais bem vestida que a outra. As maquiagens também, todas lindas, compunham o luxo das caracterizações que iam de Marilyn Monroe à Audrey Repburn, passando por Village People e Roberta Close no auge da carreira.

Foi o tempo de eu ir um pouco mais pro lado, pra comprar uma água, e logo vi a minha mãe conversando com um ser carnavalesco, na lateral da Banda. A seguir ela subiu em uma parte mais alta da calçada e foi ajudar a amarrar parte da roupa da tal pessoa, refazendo um laço na parte de cima do corpete, atrás do pescoço. De longe eu via que ela estava aos risos e toma de conversar com a famosa. Finda a ajuda, as duas trocaram beijinhos histéricos, abraços efusivos e a fantasiada voltou pro meio da bateria, dando tchauzinhos pra todos os lados.

Quando eu cheguei perto minha mãe bebeu uns goles da água, como que a retomar o fôlego.

– Você viu quem era aquela?

– Não tenho a menor ideia. É sua amiga? Quer dizer, seu amigo?

– Nada. Era a Marlene, a Rainha do Rádio, famosa cantora dos meus tempos de garota.

– Ah, sei, da Rádio Nacional.

– Isso. Ela passou por mim e eu perguntei “Onde está a Emilinha?” Ela disse: “está por aí, tentando roubar a minha plateia, aquela diaba”. E deu uma risada alta. Depois me elogiou por eu ter reconhecido a fantasia e perguntou se eu era fã da Emilinha. Eu falei que gostava das duas, mas gostava mais das músicas da Marlene, que eram mais alegres. Aí ela fez uma pausa e perguntou se eu podia dar uma ajuda.

– Ai meu Deus, justo quando eu saio de perto.

– Nada, mas foi numa boa. Aí se virou de costas e pediu pra eu amarrar a sua frente única, que estava frouxa no pescoço. Só que eu não alcançava o raio do pescoço da mulher. Você viu o tamanho dela?

– Sim, vi, mais alta do que eu.

– Muito mais. Aí eu vi aquela escadinha ali e levei a Marlene até lá e amarrei o troço. Enquanto isso ela me perguntou com quem eu estava. Eu disse “com meu filho”.

– Vixe.

– Ela olhou em volta e perguntou: “Qual a Drag dele? Onde ele está? Me mostra essa biba!” Eu dei uma sonora risada e expliquei que você não estava fantasiado. Nem era Drag. Aí foi a vez dela de rir alto, dizendo “mamãe não sabe de nada”. Nossa. Foi hilário. A gente riu muito em pouquíssimo tempo.

– Eu vi, e tudo isso enquanto eu ia ali pertinho. Foi só o tempo de comprar a água.

– Muito legal. Essas Drags são muito divertidas. São mesmo o espírito do Carnaval.

Eu não sabia se ria ou se abraçava a minha mãe, tamanho o meu contentamento por ver que ela havia gostado de ter vindo ver a Banda de Ipanema. A princípio aflito por algo que pudesse acontecer, com a chegada da Marlene, a Rainha do Rádio, a festa ficou perfeita e completa para ela.

Cada vez que eu presenciava a minha mãe contando aquele episódio pra alguém, eu só ficava de longe apreciando. Era um prazer ver a alegria dela ao reviver a cena em todos os seus detalhes. De vez em quando ela olhava pra mim e pedia que eu confirmasse algo, como que para evitar que a pessoa tivesse a mínima possibilidade de não acreditar.

Hoje, a minha nostalgia de Carnaval é assistir a Estação Primeira evoluir na avenida e lembrar da minha mãe.

Pois nunca mais tive notícia de uma Marlene ou uma Emilinha a rivalizar pelos Cordões e Fanfarras desse mundo de meu Deus.