sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

Marlene e Emilinha


Por muito custo, naquele ano minha mãe resolveu aceitar o meu convite de ir ver o Carnaval. Não que ela não gostasse de Carnaval. Durante quase toda a sua juventude os blocos do bairro ensaiavam quase que na frente da nossa casa. Além disso, os bailes eram frequentes no subúrbio e ela e as amigas sempre costumavam ir juntas.

Claro que, com o passar do tempo, marido, os filhos, essa condição foi se modificando, “naturalmente”. Mas a gente sabia que ela gostava mesmo era de estar perto das batucadas, das serpentinas, o quanto fosse possível, como boa mangueirense que era.

Fui buscá-la em casa e nem precisei recomendar nada. Foliã de responsa, ela trazia o mínimo de documentos, um dinheirinho e uma toalhinha, tudo no fundo de uma minúscula bolsinha à tiracolo. No caminho eu fui revelando que o nosso objetivo principal era a famosa Banda de Ipanema. Ela titubeou sobre a quantidade de gente que sempre acompanha esses blocos famosos, mas eu fui cuidando de a acalmar, dizendo que iríamos ficar na periferia da Banda, pra poder ver tudo com tranquilidade sem correr riscos desnecessários.

No bairro de Ramos, onde a gente morava, tinha uma rua especialmente destinada aos grandes eventos. Era a Rua das Missões. Ali passavam as grandes procissões dos santos famosos, nas suas datas idem, inclusive as marchas eclesiais durante a liturgia da Páscoa. Mas a Rua das Missões ficava realmente lotada, justamente no Carnaval, quando os blocos, como Cacique de Ramos e Bafo da Onça ali desfilavam e, para delírio das gerais, na terça-feira, tinha a apresentação da escola de samba Imperatriz Leopoldinense, cuja sede fica no próprio bairro de Ramos. Todas aquelas fantasias suntuosas que a gente só conhecia pela televisão, na passagem da Imperatriz a gente podia ver bem de perto, em cada detalhe, junto com cada evolução do passista que a vestia.

A única coisa que eu tinha de recomendação era que a minha mãe ficasse bem próxima de mim. No meio do tumulto, toda aquela gente junta, seria bem ruim se a gente se separasse por algum motivo qualquer, o que provavelmente causaria um sobressalto desnecessário naquela nossa diversão. Fora isso, era só aproveitar o famoso bloco, um dos melhores do Carnaval, sem dúvida.

Internamente, eu lembrava que era comum as Drags, as divertidas Drag Queens, que sempre passavam por mim – e por todos os homens, principalmente os sem fantasia – a emitir, digamos, galanteios os mais variados, pegando na minha barba, dizendo que eu estava sumido, que a nossa filha estava com saudades, e finalizando com o famoso gesto dos dedos polegar e mínimo estendidos, pedindo que eu ligasse, e mandando um beijo sensual. De alguma maneira, mesmo sabendo que essas troças eram muito legais, dentro das brincadeiras de Momo, eu não sabia muito bem como a minha mãe ia entender aquilo, o que me dava uma certa inquietação. Mas, vamos lá, afinal é Carnaval.

Então, em plena Banda de Ipanema, cantando todas aquelas famosas marchinhas a plenos pulmões, a gente, a cada hora, chamava a atenção um do outro pra cada nova diva que surgia. Uma mais criativa e mais bem vestida que a outra. As maquiagens também, todas lindas, compunham o luxo das caracterizações que iam de Marilyn Monroe à Audrey Repburn, passando por Village People e Roberta Close no auge da carreira.

Foi o tempo de eu ir um pouco mais pro lado, pra comprar uma água, e logo vi a minha mãe conversando com um ser carnavalesco, na lateral da Banda. A seguir ela subiu em uma parte mais alta da calçada e foi ajudar a amarrar parte da roupa da tal pessoa, refazendo um laço na parte de cima do corpete, atrás do pescoço. De longe eu via que ela estava aos risos e toma de conversar com a famosa. Finda a ajuda, as duas trocaram beijinhos histéricos, abraços efusivos e a fantasiada voltou pro meio da bateria, dando tchauzinhos pra todos os lados.

Quando eu cheguei perto minha mãe bebeu uns goles da água, como que a retomar o fôlego.

– Você viu quem era aquela?

– Não tenho a menor ideia. É sua amiga? Quer dizer, seu amigo?

– Nada. Era a Marlene, a Rainha do Rádio, famosa cantora dos meus tempos de garota.

– Ah, sei, da Rádio Nacional.

– Isso. Ela passou por mim e eu perguntei “Onde está a Emilinha?” Ela disse: “está por aí, tentando roubar a minha plateia, aquela diaba”. E deu uma risada alta. Depois me elogiou por eu ter reconhecido a fantasia e perguntou se eu era fã da Emilinha. Eu falei que gostava das duas, mas gostava mais das músicas da Marlene, que eram mais alegres. Aí ela fez uma pausa e perguntou se eu podia dar uma ajuda.

– Ai meu Deus, justo quando eu saio de perto.

– Nada, mas foi numa boa. Aí se virou de costas e pediu pra eu amarrar a sua frente única, que estava frouxa no pescoço. Só que eu não alcançava o raio do pescoço da mulher. Você viu o tamanho dela?

– Sim, vi, mais alta do que eu.

– Muito mais. Aí eu vi aquela escadinha ali e levei a Marlene até lá e amarrei o troço. Enquanto isso ela me perguntou com quem eu estava. Eu disse “com meu filho”.

– Vixe.

– Ela olhou em volta e perguntou: “Qual a Drag dele? Onde ele está? Me mostra essa biba!” Eu dei uma sonora risada e expliquei que você não estava fantasiado. Nem era Drag. Aí foi a vez dela de rir alto, dizendo “mamãe não sabe de nada”. Nossa. Foi hilário. A gente riu muito em pouquíssimo tempo.

– Eu vi, e tudo isso enquanto eu ia ali pertinho. Foi só o tempo de comprar a água.

– Muito legal. Essas Drags são muito divertidas. São mesmo o espírito do Carnaval.

Eu não sabia se ria ou se abraçava a minha mãe, tamanho o meu contentamento por ver que ela havia gostado de ter vindo ver a Banda de Ipanema. A princípio aflito por algo que pudesse acontecer, com a chegada da Marlene, a Rainha do Rádio, a festa ficou perfeita e completa para ela.

Cada vez que eu presenciava a minha mãe contando aquele episódio pra alguém, eu só ficava de longe apreciando. Era um prazer ver a alegria dela ao reviver a cena em todos os seus detalhes. De vez em quando ela olhava pra mim e pedia que eu confirmasse algo, como que para evitar que a pessoa tivesse a mínima possibilidade de não acreditar.

Hoje, a minha nostalgia de Carnaval é assistir a Estação Primeira evoluir na avenida e lembrar da minha mãe.

Pois nunca mais tive notícia de uma Marlene ou uma Emilinha a rivalizar pelos Cordões e Fanfarras desse mundo de meu Deus.

 


Um comentário:

  1. Esse Rio de Janeiro da sua juventude e infância é sensacional. Parabéns pela crônica!

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