Meu padrinho
sempre me beijava quando chegava lá em casa. Uma das lembranças mais nítidas
que eu tenho dele é quando avistava o seu carro encostando na frente da garagem
e eu saía correndo do futebol pra ir lá dar um beijo nele.
A gente tinha
uma diferença de idade de uns quinze anos. Então, nessa minha época de garoto,
essa diferença era bem grande, pelo desenvolvimento que ele já tinha como
adulto.
Outra coisa
que lembro é que os meus amigos do futebol, os vizinhos da rua, tentavam caçoar
desse nosso beijo trocado e ensaiavam algum bullying, que naquele tempo
também existia, mas não com esse nome. A coisa não prosperava, primeiro porque
eu não dava a mínima pra opinião deles; depois porque achava aquilo muito
carinhoso e gostava de ter essa proximidade. E por fim, eles logo percebiam, ou
lembravam, que eu também beijava o meu pai daquele jeito, nas mesmíssimas
situações em que o outro era o meu padrinho.
Mas, mesmo
assim, me lembro de algumas frases dos amigos, me testando, me interpelando se
eu não tinha vergonha de beijar um homem, que as pessoas podiam achar estranho
aquilo. O assunto estancava prontamente com a minha resposta, um definitivo “não”,
dando por encerrado o assunto ou qualquer nova argumentação.
As meninas da
rua, não tenho certeza, talvez me falhe a lembrança, mas não lembro de ter
ouvido coisa semelhante da parte delas. Algumas, é verdade, sorriam livres enquanto
me viam sair do jogo e depois retornar correndo, com cara de alegre. Mas falar,
nunca falaram nada de ruim. As meninas sempre se mostraram mesmo muito mais prontas
para a vida, principalmente para as demonstrações de carinho e afeto, seja quem
fosse o alvo daquelas manifestações.
O padrinho do
meu irmão era irmão do meu padrinho, ambos filhos da minha tia, irmã do meu
pai. Em vias de regra eles eram nossos primos, mas pela diferença de idade a
gente sempre os tratou como tios. Da parte da minha tia, mãe deles, tenho claro
que ela sempre ajudou demais a gente. Tanto no aspecto financeiro como nas
questões familiares, de cuidados e preocupações, sempre querendo saber como a
gente estava indo na escola, as notas etc.
Perdi a conta
de quantas canetas com o meu nome gravado eu ganhei da minha tia. E quando digo
minha tia, acrescento a minha avó, que morava com ela, e, claro, o meu
padrinho. Principalmente nos meses de novembro, quando saíam as notas das
provas de fim de ano, era certo eu ganhar uma dessas canetas lindas,
brilhantes, que eu mal usava no dia a dia, por serem preciosas demais pra mim.
Algumas delas eu trago bem frescas ainda na minha memória. Outras, por incrível
que possa parecer, eu ainda tenho guardadas na minha gaveta até hoje. Num
estojo preto, entre meias, carteiras antigas e algumas cartas, estão
eternizadas uma caneta e uma lapiseira, ambas da marca Cross, com o meu nome
impresso.
Não sei
direito se passei a gostar de caneta porque ganhava ou se ganhava justamente
porque gostava de canetas. Mas, numa ocasião, quando meu padrinho me deu um
relógio Seiko, de fundo branco, com caixa e pulseira de metal, lindo, que
juntou gente na escola pra ver no meu braço, eu descobri que era eu que gostava
das canetas, e claro, de relógios também. Até hoje tenho uma atenção especial
com esses dois itens de apreço, reflexos da minha juventude.
Uma foto que
eu tenho e que marca um período importante de convívio com o meu padrinho,
retrata a primeira vez que eu fui no Maracanã. Foi tudo iniciativa do meu pai. Lembro
bem da caminhada pelo entorno, na parte externa do complexo, as rampas de
acesso e os corredores para o campo, a estátua do Bellini, os banheiros, os
bares, a vista lá de cima, tudo era grandioso, imponente. E na foto que
registra essa memória estamos eu e meu irmão, ladeados por nossos padrinhos e
as bandeiras do Flamengo. O fotógrafo era o meu pai.
Hoje em dia eu
sou levado a ponderar que a vida, a um certo momento, foi nos afastando. A distância
crescia, não só no aspecto físico – eu morando em outra cidade – mas também no
aspecto do convívio, embora eu tenha certeza de que a gente, de alguma maneira,
sempre se gostou enquanto primos e como padrinho-afilhado. É que os padrinhos,
numa certa fase da vida, principalmente quando passam dos 60 anos, e, ao
avaliar a trajetória e o crescimento dos seus afilhados, tendem a considerar
que estes não precisam mais deles, o que é, via de regra, um desmedido equívoco.
E eu digo isso
não só na qualidade de afilhado, mas também como padrinho que sou. Pois assim
como se deu comigo, sendo afilhado do meu primo, eu mesmo sou padrinho da minha
prima, numa espiral de amores e afetos que nem sempre puderam se concretizar pela
vida como zelosos e eficientes o tanto que deveriam.
De novo, as
distâncias vão se impondo e a gente só se dá conta dessa lacuna de sentimentos quando
encontra, no fundo de uma gaveta, uma certa caneta, linda, dourada, com o nosso
nome escrito.
Pois eu te
desejo muito acolhimento na sua passagem.
Vai em Paz meu
padrinho.
Que Vó Lina te
receba com seus abraços.
E que a
espiritualidade iluminada te conduza.
Te guiando aos
bons caminhos da luz e do amor.
E como que te alcançando
novamente na janela do carro, fique com o meu beijo!