sexta-feira, 28 de junho de 2024

O Último Beijo

 

Meu padrinho sempre me beijava quando chegava lá em casa. Uma das lembranças mais nítidas que eu tenho dele é quando avistava o seu carro encostando na frente da garagem e eu saía correndo do futebol pra ir lá dar um beijo nele.

A gente tinha uma diferença de idade de uns quinze anos. Então, nessa minha época de garoto, essa diferença era bem grande, pelo desenvolvimento que ele já tinha como adulto.

Outra coisa que lembro é que os meus amigos do futebol, os vizinhos da rua, tentavam caçoar desse nosso beijo trocado e ensaiavam algum bullying, que naquele tempo também existia, mas não com esse nome. A coisa não prosperava, primeiro porque eu não dava a mínima pra opinião deles; depois porque achava aquilo muito carinhoso e gostava de ter essa proximidade. E por fim, eles logo percebiam, ou lembravam, que eu também beijava o meu pai daquele jeito, nas mesmíssimas situações em que o outro era o meu padrinho.

Mas, mesmo assim, me lembro de algumas frases dos amigos, me testando, me interpelando se eu não tinha vergonha de beijar um homem, que as pessoas podiam achar estranho aquilo. O assunto estancava prontamente com a minha resposta, um definitivo “não”, dando por encerrado o assunto ou qualquer nova argumentação.

As meninas da rua, não tenho certeza, talvez me falhe a lembrança, mas não lembro de ter ouvido coisa semelhante da parte delas. Algumas, é verdade, sorriam livres enquanto me viam sair do jogo e depois retornar correndo, com cara de alegre. Mas falar, nunca falaram nada de ruim. As meninas sempre se mostraram mesmo muito mais prontas para a vida, principalmente para as demonstrações de carinho e afeto, seja quem fosse o alvo daquelas manifestações.

O padrinho do meu irmão era irmão do meu padrinho, ambos filhos da minha tia, irmã do meu pai. Em vias de regra eles eram nossos primos, mas pela diferença de idade a gente sempre os tratou como tios. Da parte da minha tia, mãe deles, tenho claro que ela sempre ajudou demais a gente. Tanto no aspecto financeiro como nas questões familiares, de cuidados e preocupações, sempre querendo saber como a gente estava indo na escola, as notas etc.

Perdi a conta de quantas canetas com o meu nome gravado eu ganhei da minha tia. E quando digo minha tia, acrescento a minha avó, que morava com ela, e, claro, o meu padrinho. Principalmente nos meses de novembro, quando saíam as notas das provas de fim de ano, era certo eu ganhar uma dessas canetas lindas, brilhantes, que eu mal usava no dia a dia, por serem preciosas demais pra mim. Algumas delas eu trago bem frescas ainda na minha memória. Outras, por incrível que possa parecer, eu ainda tenho guardadas na minha gaveta até hoje. Num estojo preto, entre meias, carteiras antigas e algumas cartas, estão eternizadas uma caneta e uma lapiseira, ambas da marca Cross, com o meu nome impresso.

Não sei direito se passei a gostar de caneta porque ganhava ou se ganhava justamente porque gostava de canetas. Mas, numa ocasião, quando meu padrinho me deu um relógio Seiko, de fundo branco, com caixa e pulseira de metal, lindo, que juntou gente na escola pra ver no meu braço, eu descobri que era eu que gostava das canetas, e claro, de relógios também. Até hoje tenho uma atenção especial com esses dois itens de apreço, reflexos da minha juventude.

Uma foto que eu tenho e que marca um período importante de convívio com o meu padrinho, retrata a primeira vez que eu fui no Maracanã. Foi tudo iniciativa do meu pai. Lembro bem da caminhada pelo entorno, na parte externa do complexo, as rampas de acesso e os corredores para o campo, a estátua do Bellini, os banheiros, os bares, a vista lá de cima, tudo era grandioso, imponente. E na foto que registra essa memória estamos eu e meu irmão, ladeados por nossos padrinhos e as bandeiras do Flamengo. O fotógrafo era o meu pai.

Hoje em dia eu sou levado a ponderar que a vida, a um certo momento, foi nos afastando. A distância crescia, não só no aspecto físico – eu morando em outra cidade – mas também no aspecto do convívio, embora eu tenha certeza de que a gente, de alguma maneira, sempre se gostou enquanto primos e como padrinho-afilhado. É que os padrinhos, numa certa fase da vida, principalmente quando passam dos 60 anos, e, ao avaliar a trajetória e o crescimento dos seus afilhados, tendem a considerar que estes não precisam mais deles, o que é, via de regra, um desmedido equívoco.

E eu digo isso não só na qualidade de afilhado, mas também como padrinho que sou. Pois assim como se deu comigo, sendo afilhado do meu primo, eu mesmo sou padrinho da minha prima, numa espiral de amores e afetos que nem sempre puderam se concretizar pela vida como zelosos e eficientes o tanto que deveriam.

De novo, as distâncias vão se impondo e a gente só se dá conta dessa lacuna de sentimentos quando encontra, no fundo de uma gaveta, uma certa caneta, linda, dourada, com o nosso nome escrito.

Pois eu te desejo muito acolhimento na sua passagem.

Vai em Paz meu padrinho.

Que Vó Lina te receba com seus abraços.

E que a espiritualidade iluminada te conduza.

Te guiando aos bons caminhos da luz e do amor.

E como que te alcançando novamente na janela do carro, fique com o meu beijo!

 

 



sábado, 15 de junho de 2024

A Avó Carioca


Suzaninha estava no recreio da escola. Sentados nos bancos que rodeavam o pátio, os colegas se revezavam contando o que fizeram durante as férias. Se viajaram, onde tinham ido, quem foi junto com eles e tudo o mais, numa típica narrativa de adolescentes no retorno às aulas, um querendo impactar mais do que o outro, tentando impressionar os amigos com sua própria aventura.

Quando chegou a vez da menina ela disse simplesmente “eu ganhei uma avó carioca”. Aquilo foi um tremendo alvoroço e todo mundo ficou curioso pela história dela, que deveria vir logo em seguida. E veio.

 

“A gente saiu de Juiz de Fora logo no início da manhã e fomos direto pro Rio, quase sem parar. Aí ficamos hospedados na casa de uma amiga da minha mãe, no bairro de Ramos, que fica no subúrbio da cidade, perto de Bonsucesso e Olaria.

“Um dia a minha mãe quis fazer uma surpresa pra amiga dela e foi pra cozinha preparar um prato que ela gostava. No meio do processo ela deu por falta de alguns ingredientes e me pediu pra ir ao supermercado comprar. Ficava pertinho. Aliás, no Rio de Janeiro, tudo fica pertinho, principalmente no subúrbio. As lojas vão se espalhando pelas ruas e você encontra praticamente tudo o que precisa dentro do mesmo bairro. Perto de onde a gente ficou se vendia de tudo, de palito de churrasco a carro zero.

“Mas eu estava no mercado nesse dia com a listinha que minha mãe pediu e fui botando tudo na cestinha, já que eram produtos mais ou menos leves e em pouca quantidade. Nem precisava de carrinho, nada. Mas o mercado estava cheio, com muitas filas e filas grandes em todos os caixas. Avistei uma um pouco menor e foi ali que eu entrei. E toca de demorar. Nada andava. Os velhinhos à minha frente custavam uma eternidade pra passar os produtos e ainda por cima ficavam um dia e meio conversando com o caixa. Este, por sua vez, ria, gesticulava e conversava com os clientes como se estivessem todos na plataforma de uma estação ferroviária, num domingo de sol. E olha que de trem eu entendo, né gente...?

“Pois então, depois de muito tempo ali parada, pacientemente, eu me dei conta, de um minuto pro outro, de que a fila que eu estava era a fila dos idosos, a fila das prioridades, como grávidas, pessoas com crianças e, claro, idosos. A gastura que subiu aqui no pescoço foi grande. Minha nossinhora. Como eu não reparei aquele monte de senhorinhas e os velhinhos em volta, todos de cabelos brancos, conversando despreocupadamente, como se o mundo todo estivesse pausado no tempo deles? A maior placa de caixa preferencial bem na minha testa e eu não vi? Como pode?

­“Na hora eu pensei que poderia, ou deveria, mudar de fila. Mas como elas eram enormes e em todos os caixas, não ia resolver. A essas alturas era certo que minha mãe ia me matar por eu ter demorado o dia todo ali. Enfim, o certo é que eu não tinha como justificar a presença naquela fila exclusiva. Ia ser um dó de dar pena, como falam. Eu olhava pros lados, consultava o relógio, a minha cestinha, focava lá longe, na outra ponta do mercado e, até a fila para quem tem até 10 produtos também estava cheia. Nada enfim me trazia uma boa ideia pra sair daquela situação aflitiva.

“Atrás de mim uma avozinha percebeu a minha inquietação e depois de muito me escrutinar ela chegou mais perto:

– Tu não tinha visto que era fila de idoso, né?  Menina, olha a sinuca que tu tá agora.

– Ahã, eu só vi que essa fila estava mais vazia e entrei. Tô lascada.

– Tu pode tentar falar com o gerente. O seu Pedro. Ele é um cara legal.

– Não sei não. Acho que ele simplesmente vai me mandar entrar em outra fila. E eu sei que tô errada.

– Ou então, pode tentar o caixa. Ele também é um sujeito gente boa, acho que é Edinelson o nome dele. Quando chegar na sua vez você diz que se distraiu e tal. É uma tentativa.

“Eu fiquei ali calada, pensando, e nada me vinha como solução. Passou um bom tempo e já chegaria a minha vez em poucos minutos. Ah, que bosta, vou ter de ir pra outra fila mesmo – pensei. Ô vida sem jeito, já dizia o Chicó do Suassuna.

“No instante em que eu me abaixei pra pegar a minha famigerada cestinha a senhora falou:

– A gente pode fingir que você é minha neta.

– O quê?

– Sim, você é minha neta e eu sou sua avó. Claro, e a gente veio juntas ao mercado e vamos passar as nossas compras no mesmo caixa. Só isso. O que você acha?

– Será? Me dá um pouco de medo. Mas a senhora faria isso por mim?

– Ué, claro. Não sou eu que estou dando a ideia? Vamonessa!

“A gente passou as compras e eu ajudei a passar as dela, naturalmente, conversando bem normal pra disfarçar. Depois foi a vez dos meus temperos e o caixa, que não parava de falar, nem notou que fizemos duas contas e cada uma pôs os seus produtos em sacolas separadas. O legal foi que durante esse período ela me chamava de neta e eu a chamava de vó, soltando uma risada aqui, outra ali, mas tudo na maior parceria.

“O caixa desejou bom dia pra nós duas e chegando na saída do mercado ela disse:

– Ufa. Acho que conseguimos. Mas ainda tem uma coisa.

“Eu gelei dos pés à cabeça.

– Bem, pra ficar tudo certo mesmo, agora só falta você me tomar a bênção, afinal as avós gostam de abençoar as suas netinhas.

– A sua bênção, vó. E obrigada pela ajuda. Não fosse a senhora eu só sairia do mercado de noite.

“Vai com Deus – ela disse entre risos.

“Uma coisa eu digo a vocês, eu jamais podia imaginar que uma senhorinha como aquela fosse me propor uma coisa assim. Ela toda séria, uma pessoa distinta, engendrando uma mentira daquelas só pra me ajudar. Veja você!

“Depois que eu contei pra minha mãe ela adorou a história e cada vez que ia no mercado ficava imaginando encontrar a tal velhinha pra saber que cara tinha a minha avó. E ainda me pediu pra contar esse causo, tudo de novo, um monte de vezes durante as férias. A família toda já sabe que eu agora tenho uma avó muito maneira que mora no Rio de Janeiro.”

 

Tão logo a Suzaninha acabou a narrativa os colegas começaram a galhofar do episódio:

– Nossa. Parece causo de livro mineiro.

– Se fosse aqui em Minas a velhinha ia era chamar o gerente, ou a segurança. Isso sim.

– E ia achar um absurdo, um acinte, uma menina furando a fila dos idosos.

– Talvez mandasse até prender a pobre da Suzaninha.

– Mas no Rio é diferente. As pessoas são expertas. Exxxpertas, como eles dizem, carregando no xis.

– Não só as pessoas, mas as velhinhas também. Uma avozinha assim aqui nessas bandas ia ser muito massa. Ia dominar tudo.

– Pelo menos ia dominar os supermercados.

– E as filas... Ao menos a dos idosos...

E assim ficaram os estudantes ali, sugerindo toda sorte de situações, tendo como personagem a avozinha experta carioca, até bater o sinal do fim do intervalo.

Ao voltar pra sala, assim que a professora entrou e deu o seu boa tarde, um aluno, digamos, um dos mais irreverentes do grupo, respondeu:

– Benção, fessora!

Daí em diante ninguém conseguiu segurar o riso.

Nem a pobre da professora. Que apenas achou aquilo muito estranho.