Suzaninha
estava no recreio da escola. Sentados nos bancos que rodeavam o pátio, os
colegas se revezavam contando o que fizeram durante as férias. Se viajaram, onde
tinham ido, quem foi junto com eles e tudo o mais, numa típica narrativa de adolescentes
no retorno às aulas, um querendo impactar mais do que o outro, tentando
impressionar os amigos com sua própria aventura.
Quando chegou
a vez da menina ela disse simplesmente “eu ganhei uma avó carioca”. Aquilo foi
um tremendo alvoroço e todo mundo ficou curioso pela história dela, que deveria
vir logo em seguida. E veio.
“A gente saiu
de Juiz de Fora logo no início da manhã e fomos direto pro Rio, quase sem
parar. Aí ficamos hospedados na casa de uma amiga da minha mãe, no bairro de
Ramos, que fica no subúrbio da cidade, perto de Bonsucesso e Olaria.
“Um dia a
minha mãe quis fazer uma surpresa pra amiga dela e foi pra cozinha preparar um
prato que ela gostava. No meio do processo ela deu por falta de alguns
ingredientes e me pediu pra ir ao supermercado comprar. Ficava pertinho. Aliás,
no Rio de Janeiro, tudo fica pertinho, principalmente no subúrbio. As lojas vão
se espalhando pelas ruas e você encontra praticamente tudo o que precisa dentro
do mesmo bairro. Perto de onde a gente ficou se vendia de tudo, de palito de
churrasco a carro zero.
“Mas eu estava
no mercado nesse dia com a listinha que minha mãe pediu e fui botando tudo na
cestinha, já que eram produtos mais ou menos leves e em pouca quantidade. Nem
precisava de carrinho, nada. Mas o mercado estava cheio, com muitas filas e
filas grandes em todos os caixas. Avistei uma um pouco menor e foi ali que eu
entrei. E toca de demorar. Nada andava. Os velhinhos à minha frente custavam
uma eternidade pra passar os produtos e ainda por cima ficavam um dia e meio
conversando com o caixa. Este, por sua vez, ria, gesticulava e conversava com
os clientes como se estivessem todos na plataforma de uma estação ferroviária,
num domingo de sol. E olha que de trem eu entendo, né gente...?
“Pois então, depois
de muito tempo ali parada, pacientemente, eu me dei conta, de um minuto pro
outro, de que a fila que eu estava era a fila dos idosos, a fila das
prioridades, como grávidas, pessoas com crianças e, claro, idosos. A gastura
que subiu aqui no pescoço foi grande. Minha nossinhora. Como eu não
reparei aquele monte de senhorinhas e os velhinhos em volta, todos de cabelos
brancos, conversando despreocupadamente, como se o mundo todo estivesse pausado
no tempo deles? A maior placa de caixa preferencial bem na minha testa e eu não
vi? Como pode?
“Na hora eu
pensei que poderia, ou deveria, mudar de fila. Mas como elas eram enormes e em
todos os caixas, não ia resolver. A essas alturas era certo que minha mãe ia me
matar por eu ter demorado o dia todo ali. Enfim, o certo é que eu não tinha como justificar a presença naquela fila exclusiva. Ia ser
um dó de dar pena, como falam. Eu olhava pros lados, consultava o relógio, a
minha cestinha, focava lá longe, na outra ponta do mercado e, até a fila para
quem tem até 10 produtos também estava cheia. Nada enfim me trazia uma boa ideia
pra sair daquela situação aflitiva.
“Atrás de mim
uma avozinha percebeu a minha inquietação e depois de muito me escrutinar ela chegou
mais perto:
– Tu não tinha
visto que era fila de idoso, né? Menina,
olha a sinuca que tu tá agora.
– Ahã, eu só
vi que essa fila estava mais vazia e entrei. Tô lascada.
– Tu pode
tentar falar com o gerente. O seu Pedro. Ele é um cara legal.
– Não sei não.
Acho que ele simplesmente vai me mandar entrar em outra fila. E eu sei que tô
errada.
– Ou então, pode
tentar o caixa. Ele também é um sujeito gente boa, acho que é Edinelson o nome
dele. Quando chegar na sua vez você diz que se distraiu e tal. É uma tentativa.
“Eu fiquei ali
calada, pensando, e nada me vinha como solução. Passou um bom tempo e já
chegaria a minha vez em poucos minutos. Ah, que bosta, vou ter de ir pra outra
fila mesmo – pensei. Ô vida sem jeito, já dizia o Chicó do Suassuna.
“No instante
em que eu me abaixei pra pegar a minha famigerada cestinha a senhora falou:
– A gente pode
fingir que você é minha neta.
– O quê?
– Sim, você é
minha neta e eu sou sua avó. Claro, e a gente veio juntas ao mercado e vamos
passar as nossas compras no mesmo caixa. Só isso. O que você acha?
– Será? Me dá
um pouco de medo. Mas a senhora faria isso por mim?
– Ué, claro.
Não sou eu que estou dando a ideia? Vamonessa!
“A gente
passou as compras e eu ajudei a passar as dela, naturalmente, conversando bem
normal pra disfarçar. Depois foi a vez dos meus temperos e o caixa, que não
parava de falar, nem notou que fizemos duas contas e cada uma pôs os seus
produtos em sacolas separadas. O legal foi que durante esse período ela me
chamava de neta e eu a chamava de vó, soltando uma risada aqui, outra ali, mas tudo
na maior parceria.
“O caixa
desejou bom dia pra nós duas e chegando na saída do mercado ela disse:
– Ufa. Acho
que conseguimos. Mas ainda tem uma coisa.
“Eu gelei dos
pés à cabeça.
– Bem, pra
ficar tudo certo mesmo, agora só falta você me tomar a bênção, afinal as avós
gostam de abençoar as suas netinhas.
– A sua
bênção, vó. E obrigada pela ajuda. Não fosse a senhora eu só sairia do mercado
de noite.
“Vai com Deus
– ela disse entre risos.
“Uma coisa eu
digo a vocês, eu jamais podia imaginar que uma senhorinha como aquela fosse me propor
uma coisa assim. Ela toda séria, uma pessoa distinta, engendrando uma mentira
daquelas só pra me ajudar. Veja você!
“Depois que eu
contei pra minha mãe ela adorou a história e cada vez que ia no mercado ficava
imaginando encontrar a tal velhinha pra saber que cara tinha a minha avó. E ainda
me pediu pra contar esse causo, tudo de novo, um monte de vezes durante as
férias. A família toda já sabe que eu agora tenho uma avó muito maneira que
mora no Rio de Janeiro.”
Tão logo a Suzaninha
acabou a narrativa os colegas começaram a galhofar do episódio:
– Nossa.
Parece causo de livro mineiro.
– Se fosse
aqui em Minas a velhinha ia era chamar o gerente, ou a segurança. Isso sim.
– E ia achar
um absurdo, um acinte, uma menina furando a fila dos idosos.
– Talvez
mandasse até prender a pobre da Suzaninha.
– Mas no Rio é
diferente. As pessoas são expertas. Exxxpertas, como eles dizem,
carregando no xis.
– Não só as
pessoas, mas as velhinhas também. Uma avozinha assim aqui nessas bandas ia ser
muito massa. Ia dominar tudo.
– Pelo menos ia
dominar os supermercados.
– E as
filas... Ao menos a dos idosos...
E assim
ficaram os estudantes ali, sugerindo toda sorte de situações, tendo como
personagem a avozinha experta carioca, até bater o sinal do fim do intervalo.
Ao voltar pra
sala, assim que a professora entrou e deu o seu boa tarde, um aluno, digamos, um
dos mais irreverentes do grupo, respondeu:
– Benção, fessora!
Daí em diante ninguém
conseguiu segurar o riso.
Nem a pobre da
professora. Que apenas achou aquilo muito estranho.
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