sábado, 15 de junho de 2024

A Avó Carioca


Suzaninha estava no recreio da escola. Sentados nos bancos que rodeavam o pátio, os colegas se revezavam contando o que fizeram durante as férias. Se viajaram, onde tinham ido, quem foi junto com eles e tudo o mais, numa típica narrativa de adolescentes no retorno às aulas, um querendo impactar mais do que o outro, tentando impressionar os amigos com sua própria aventura.

Quando chegou a vez da menina ela disse simplesmente “eu ganhei uma avó carioca”. Aquilo foi um tremendo alvoroço e todo mundo ficou curioso pela história dela, que deveria vir logo em seguida. E veio.

 

“A gente saiu de Juiz de Fora logo no início da manhã e fomos direto pro Rio, quase sem parar. Aí ficamos hospedados na casa de uma amiga da minha mãe, no bairro de Ramos, que fica no subúrbio da cidade, perto de Bonsucesso e Olaria.

“Um dia a minha mãe quis fazer uma surpresa pra amiga dela e foi pra cozinha preparar um prato que ela gostava. No meio do processo ela deu por falta de alguns ingredientes e me pediu pra ir ao supermercado comprar. Ficava pertinho. Aliás, no Rio de Janeiro, tudo fica pertinho, principalmente no subúrbio. As lojas vão se espalhando pelas ruas e você encontra praticamente tudo o que precisa dentro do mesmo bairro. Perto de onde a gente ficou se vendia de tudo, de palito de churrasco a carro zero.

“Mas eu estava no mercado nesse dia com a listinha que minha mãe pediu e fui botando tudo na cestinha, já que eram produtos mais ou menos leves e em pouca quantidade. Nem precisava de carrinho, nada. Mas o mercado estava cheio, com muitas filas e filas grandes em todos os caixas. Avistei uma um pouco menor e foi ali que eu entrei. E toca de demorar. Nada andava. Os velhinhos à minha frente custavam uma eternidade pra passar os produtos e ainda por cima ficavam um dia e meio conversando com o caixa. Este, por sua vez, ria, gesticulava e conversava com os clientes como se estivessem todos na plataforma de uma estação ferroviária, num domingo de sol. E olha que de trem eu entendo, né gente...?

“Pois então, depois de muito tempo ali parada, pacientemente, eu me dei conta, de um minuto pro outro, de que a fila que eu estava era a fila dos idosos, a fila das prioridades, como grávidas, pessoas com crianças e, claro, idosos. A gastura que subiu aqui no pescoço foi grande. Minha nossinhora. Como eu não reparei aquele monte de senhorinhas e os velhinhos em volta, todos de cabelos brancos, conversando despreocupadamente, como se o mundo todo estivesse pausado no tempo deles? A maior placa de caixa preferencial bem na minha testa e eu não vi? Como pode?

­“Na hora eu pensei que poderia, ou deveria, mudar de fila. Mas como elas eram enormes e em todos os caixas, não ia resolver. A essas alturas era certo que minha mãe ia me matar por eu ter demorado o dia todo ali. Enfim, o certo é que eu não tinha como justificar a presença naquela fila exclusiva. Ia ser um dó de dar pena, como falam. Eu olhava pros lados, consultava o relógio, a minha cestinha, focava lá longe, na outra ponta do mercado e, até a fila para quem tem até 10 produtos também estava cheia. Nada enfim me trazia uma boa ideia pra sair daquela situação aflitiva.

“Atrás de mim uma avozinha percebeu a minha inquietação e depois de muito me escrutinar ela chegou mais perto:

– Tu não tinha visto que era fila de idoso, né?  Menina, olha a sinuca que tu tá agora.

– Ahã, eu só vi que essa fila estava mais vazia e entrei. Tô lascada.

– Tu pode tentar falar com o gerente. O seu Pedro. Ele é um cara legal.

– Não sei não. Acho que ele simplesmente vai me mandar entrar em outra fila. E eu sei que tô errada.

– Ou então, pode tentar o caixa. Ele também é um sujeito gente boa, acho que é Edinelson o nome dele. Quando chegar na sua vez você diz que se distraiu e tal. É uma tentativa.

“Eu fiquei ali calada, pensando, e nada me vinha como solução. Passou um bom tempo e já chegaria a minha vez em poucos minutos. Ah, que bosta, vou ter de ir pra outra fila mesmo – pensei. Ô vida sem jeito, já dizia o Chicó do Suassuna.

“No instante em que eu me abaixei pra pegar a minha famigerada cestinha a senhora falou:

– A gente pode fingir que você é minha neta.

– O quê?

– Sim, você é minha neta e eu sou sua avó. Claro, e a gente veio juntas ao mercado e vamos passar as nossas compras no mesmo caixa. Só isso. O que você acha?

– Será? Me dá um pouco de medo. Mas a senhora faria isso por mim?

– Ué, claro. Não sou eu que estou dando a ideia? Vamonessa!

“A gente passou as compras e eu ajudei a passar as dela, naturalmente, conversando bem normal pra disfarçar. Depois foi a vez dos meus temperos e o caixa, que não parava de falar, nem notou que fizemos duas contas e cada uma pôs os seus produtos em sacolas separadas. O legal foi que durante esse período ela me chamava de neta e eu a chamava de vó, soltando uma risada aqui, outra ali, mas tudo na maior parceria.

“O caixa desejou bom dia pra nós duas e chegando na saída do mercado ela disse:

– Ufa. Acho que conseguimos. Mas ainda tem uma coisa.

“Eu gelei dos pés à cabeça.

– Bem, pra ficar tudo certo mesmo, agora só falta você me tomar a bênção, afinal as avós gostam de abençoar as suas netinhas.

– A sua bênção, vó. E obrigada pela ajuda. Não fosse a senhora eu só sairia do mercado de noite.

“Vai com Deus – ela disse entre risos.

“Uma coisa eu digo a vocês, eu jamais podia imaginar que uma senhorinha como aquela fosse me propor uma coisa assim. Ela toda séria, uma pessoa distinta, engendrando uma mentira daquelas só pra me ajudar. Veja você!

“Depois que eu contei pra minha mãe ela adorou a história e cada vez que ia no mercado ficava imaginando encontrar a tal velhinha pra saber que cara tinha a minha avó. E ainda me pediu pra contar esse causo, tudo de novo, um monte de vezes durante as férias. A família toda já sabe que eu agora tenho uma avó muito maneira que mora no Rio de Janeiro.”

 

Tão logo a Suzaninha acabou a narrativa os colegas começaram a galhofar do episódio:

– Nossa. Parece causo de livro mineiro.

– Se fosse aqui em Minas a velhinha ia era chamar o gerente, ou a segurança. Isso sim.

– E ia achar um absurdo, um acinte, uma menina furando a fila dos idosos.

– Talvez mandasse até prender a pobre da Suzaninha.

– Mas no Rio é diferente. As pessoas são expertas. Exxxpertas, como eles dizem, carregando no xis.

– Não só as pessoas, mas as velhinhas também. Uma avozinha assim aqui nessas bandas ia ser muito massa. Ia dominar tudo.

– Pelo menos ia dominar os supermercados.

– E as filas... Ao menos a dos idosos...

E assim ficaram os estudantes ali, sugerindo toda sorte de situações, tendo como personagem a avozinha experta carioca, até bater o sinal do fim do intervalo.

Ao voltar pra sala, assim que a professora entrou e deu o seu boa tarde, um aluno, digamos, um dos mais irreverentes do grupo, respondeu:

– Benção, fessora!

Daí em diante ninguém conseguiu segurar o riso.

Nem a pobre da professora. Que apenas achou aquilo muito estranho.

 

 


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