sexta-feira, 20 de dezembro de 2024

A Sala de Música

 


Não teve reunião, nem conversa, avaliação, nada. De um dia pro outro veio a ordem para que os museus passassem a abrir aos sábados. Para alguns museus Brasil afora a ideia até fazia sentido, não só em relação à visitação em si, mas pela própria programação e a proposta de mais inclusão.

No caso do nosso, em Florianópolis, era um tanto arriscado. Localizado no Centro da cidade, a área do seu entorno era um tanto deserta e despoliciada nos finais de semana, com as lojas e prédios comerciais fechados. Some-se a isso a brutal redução da oferta de ônibus nos dias entendidos como “não-úteis”, justamente aqueles que, para o trabalhador, são dias de lazer e passeio com a família. Ou pelo menos deveriam ser.

Enfim, o rodízio do trabalho no sábado era uma realidade inescapável. No início quase não tinha visita. Era uma ou outra pessoa que entrava, dava uma circulada e se ia, ou seja, nada que fizesse diferença para as planilhas mensais de frequência.

Aos sábados, somente as salas de visitação ficavam abertas, das 9 às 14 horas, e a área do setor administrativo era isolada. Nesses dias, mesmo os servidores sequer iam naquele local.

Foi numa dessas minhas manhãs de plantão no museu que entrou um senhor e começou a falar do prédio, uma casa histórica belamente restaurada. A conversa seguiu longa, eu dando as datas da aquisição e tombamento do imóvel, pelo governo, que eu sabia de cor, e ele pontuando os materiais construtivos, o telhado e as paredes, pois que não possuíam vergalhões de sustentação, como é normal nas construções atuais.

Até ajoelhar no chão o homem se dispôs a fazer, só pra constatar a qualidade das madeiras do piso, em meio a elogios também ao forro e às portas, altas e imponentes, desde os tempos em que a edificação fora erguida, com sua dupla vocação de armazém e moradia, um tipo de sobrado muito comum à época.

– Essas madeiras aqui são caríssimas e difíceis de trabalhar, por sua constituição natural – disse à certa altura, batendo com os nós dos dedos na superfície encerada do piso.

O tempo todo que o senhor ficou ali, em visita, não me lembro de ele ter olhado nenhuma obra de arte, nenhum quadro ou qualquer objeto expositivo. A sua atenção estava toda voltada para a casa em si. Ora eram as janelas, depois a íngreme escada que levava ao segundo andar e também os batentes, que ele chamou de ombreiras de portas.

Em certo momento ele ouviu o rangido de uma das madeiras do desnível da sala, formado por dois degraus que iam até a porta principal. A partir da sua observação de que abaixo daquelas madeiras havia um espaço livre, um vão de ar, e que aquilo favorecia a acústica do ambiente, um clique dentro da minha cabeça foi tão forte que quase se podia ouvir de fora. Sim, era uma sala plenamente vocacionada pela facilidade de reverberar o som e distribuí-lo uniformemente por todo o seu perímetro.

Sem dizer nada a ninguém, fiquei esperando o meu próximo sábado de plantão. Normalmente eu reclamava aos quatro ventos dessa função, e cabe aqui um parêntesis. É que eu jogava tênis com uma turma boa de amigos, e os jogos eram sempre pela manhã, justamente nos finais de semana. Claro então que ir pro museu não era muito do meu agrado. Enfim, fechada a observação, contraditoriamente, devo admitir que naqueles dias eu estava animado por ter de ir trabalhar no sábado.

Outro ponto importante a ser acrescido é que eu havia acabado de ganhar um violão de cordas de aço, um Tuner Jumbo da Tagima. Era o primeiro assim que eu tinha. Primeiro e único, pois está comigo até hoje, lindamente cuidado. O bicho falava muito alto, bem diferente do meu outro violão, de cordas de nylon. Na hora em que eu juntei os dois pensamentos, o da sala do museu e o violão novo de aço, era como se a promessa da chegada do Papai Noel estivesse bem próxima, ao alcance das mãos. Inclusive era mesmo perto do final do ano, se não me engano.

Faltava pouco mais de meia hora para o fechamento do meu sábado de plantão, quando eu tirei o violão da capa e passei a afiná-lo com o maior apuro. Eu sabia que não ia mais entrar qualquer viva alma naquele museu e comecei o dedilhado. Parecia que eu estava em um estúdio de gravação. O som vinha límpido, cada corda com sua vibração específica. A corda Ré não se confundia com a Sol, nem a Mi se sobrepunha a Si. Ou seja, a harmonia entre todas as seis era surpreendente, algo que poucas salas de concerto dispõem com tamanha qualidade.

Quando a Regina chegou pra me encontrar ao “fim do expediente”, eu já estava cantando a plenos pulmões, tendo os dois guardas de prontidão lá da porta do museu a me acompanhar, batendo com o pé no chão, marcando o compasso. Em pouco tempo éramos oito ouvidos embevecidos trocando impressões sobre aquela verdadeira sala de música e sua acústica maravilhosa. Aí teve dueto, com segunda voz e tudo, teve aplauso no final das músicas, teve promessa de trazer o Rancho do Zininho da próxima vez e teve o principal de toda essa experiência.

É que foi a partir desse dia que eu comecei a engendrar que, de alguma forma, a gente tinha que explorar a qualidade daquela sala e fazer reverberar nela os melhores sons, as melhores músicas, com os melhores instrumentistas de Florianópolis, dentro das possibilidades deles e das nossas.

O resultado daquele sábado foi que, em poucos meses, foi criado no museu o projeto Estação da Música, um projeto que cuidava de brindar com muita música, aquele excelente espaço de Cultura, com C maiúsculo.

Por fim, além da qualidade da sala de música em si, aqui já descrita e festejada, não posso deixar de registrar a imensa gratidão a todos os músicos e cantores, tanto professores como estudantes – e foram mesmo muitos – por aceitarem prontamente o nosso convite e deixarem suas marcas na nossa memória.

Evoé, jovens artistas!