Não teve
reunião, nem conversa, avaliação, nada. De um dia pro outro veio a ordem para
que os museus passassem a abrir aos sábados. Para alguns museus Brasil afora a
ideia até fazia sentido, não só em relação à visitação em si, mas pela própria
programação e a proposta de mais inclusão.
No caso do
nosso, em Florianópolis, era um tanto arriscado. Localizado no Centro da
cidade, a área do seu entorno era um tanto deserta e despoliciada nos finais de
semana, com as lojas e prédios comerciais fechados. Some-se a isso a brutal
redução da oferta de ônibus nos dias entendidos como “não-úteis”, justamente aqueles
que, para o trabalhador, são dias de lazer e passeio com a família. Ou pelo
menos deveriam ser.
Enfim, o
rodízio do trabalho no sábado era uma realidade inescapável. No início quase
não tinha visita. Era uma ou outra pessoa que entrava, dava uma circulada e se
ia, ou seja, nada que fizesse diferença para as planilhas mensais de
frequência.
Aos sábados,
somente as salas de visitação ficavam abertas, das 9 às 14 horas, e a área do
setor administrativo era isolada. Nesses dias, mesmo os servidores sequer iam
naquele local.
Foi numa
dessas minhas manhãs de plantão no museu que entrou um senhor e começou a falar
do prédio, uma casa histórica belamente restaurada. A conversa seguiu longa, eu
dando as datas da aquisição e tombamento do imóvel, pelo governo, que eu sabia
de cor, e ele pontuando os materiais construtivos, o telhado e as paredes, pois
que não possuíam vergalhões de sustentação, como é normal nas construções
atuais.
Até ajoelhar
no chão o homem se dispôs a fazer, só pra constatar a qualidade das madeiras do
piso, em meio a elogios também ao forro e às portas, altas e imponentes, desde
os tempos em que a edificação fora erguida, com sua dupla vocação de armazém e
moradia, um tipo de sobrado muito comum à época.
– Essas
madeiras aqui são caríssimas e difíceis de trabalhar, por sua constituição
natural – disse à certa altura, batendo com os nós dos dedos na superfície
encerada do piso.
O tempo todo que
o senhor ficou ali, em visita, não me lembro de ele ter olhado nenhuma obra de
arte, nenhum quadro ou qualquer objeto expositivo. A sua atenção estava toda
voltada para a casa em si. Ora eram as janelas, depois a íngreme escada que
levava ao segundo andar e também os batentes, que ele chamou de ombreiras de
portas.
Em certo
momento ele ouviu o rangido de uma das madeiras do desnível da sala, formado
por dois degraus que iam até a porta principal. A partir da sua observação de
que abaixo daquelas madeiras havia um espaço livre, um vão de ar, e que aquilo
favorecia a acústica do ambiente, um clique dentro da minha cabeça foi tão
forte que quase se podia ouvir de fora. Sim, era uma sala plenamente vocacionada
pela facilidade de reverberar o som e distribuí-lo uniformemente por todo o seu
perímetro.
Sem dizer nada
a ninguém, fiquei esperando o meu próximo sábado de plantão. Normalmente eu
reclamava aos quatro ventos dessa função, e cabe aqui um parêntesis. É que eu
jogava tênis com uma turma boa de amigos, e os jogos eram sempre pela manhã,
justamente nos finais de semana. Claro então que ir pro museu não era muito do
meu agrado. Enfim, fechada a observação, contraditoriamente, devo admitir que naqueles dias eu
estava animado por ter de ir trabalhar no sábado.
Outro ponto
importante a ser acrescido é que eu havia acabado de ganhar um violão de cordas
de aço, um Tuner Jumbo da Tagima. Era o primeiro assim que eu tinha. Primeiro e
único, pois está comigo até hoje, lindamente cuidado. O bicho falava muito
alto, bem diferente do meu outro violão, de cordas de nylon. Na hora em que eu
juntei os dois pensamentos, o da sala do museu e o violão novo de aço, era como
se a promessa da chegada do Papai Noel estivesse bem próxima, ao alcance das
mãos. Inclusive era mesmo perto do final do ano, se não me engano.
Faltava pouco
mais de meia hora para o fechamento do meu sábado de plantão, quando eu tirei o
violão da capa e passei a afiná-lo com o maior apuro. Eu sabia que não ia mais entrar
qualquer viva alma naquele museu e comecei o dedilhado. Parecia que eu estava
em um estúdio de gravação. O som vinha límpido, cada corda com sua vibração
específica. A corda Ré não se confundia com a Sol, nem a Mi se sobrepunha a Si.
Ou seja, a harmonia entre todas as seis era surpreendente, algo que poucas
salas de concerto dispõem com tamanha qualidade.
Quando a
Regina chegou pra me encontrar ao “fim do expediente”, eu já estava cantando a
plenos pulmões, tendo os dois guardas de prontidão lá da porta do museu a me
acompanhar, batendo com o pé no chão, marcando o compasso. Em pouco tempo
éramos oito ouvidos embevecidos trocando impressões sobre aquela verdadeira sala
de música e sua acústica maravilhosa. Aí teve dueto, com segunda voz e tudo,
teve aplauso no final das músicas, teve promessa de trazer o Rancho do Zininho
da próxima vez e teve o principal de toda essa experiência.
É que foi a
partir desse dia que eu comecei a engendrar que, de alguma forma, a gente tinha
que explorar a qualidade daquela sala e fazer reverberar nela os melhores sons,
as melhores músicas, com os melhores instrumentistas de Florianópolis, dentro
das possibilidades deles e das nossas.
O resultado
daquele sábado foi que, em poucos meses, foi criado no museu o projeto Estação
da Música, um projeto que cuidava de brindar com muita música, aquele excelente
espaço de Cultura, com C maiúsculo.
Por fim, além
da qualidade da sala de música em si, aqui já descrita e festejada, não posso
deixar de registrar a imensa gratidão a todos os músicos e cantores, tanto professores
como estudantes – e foram mesmo muitos – por aceitarem prontamente o nosso
convite e deixarem suas marcas na nossa memória.
Evoé, jovens
artistas!
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