segunda-feira, 31 de março de 2025

Doce de Leite

 

A novidade na padaria aqui perto de casa era que os pastéis de banana, a partir daquela semana, iam passar a ter a opção com doce de leite. Estava lá o aviso numa plaquinha bem visível, perto da balança.

Antes disso, eu jamais tive de me preocupar na hora de pedir os tais pastéis pois que eram só de banana e era só dizer a quantidade e botar na cestinha. E punto e basta, como dizem os italianos.

Mas na vida as coisas simples não são tão simples assim, como sabemos. Principalmente quando se trata de gente experiente – repare a sutileza –, tratando com gente que está começando a vida e não sabe nada de nada; gente que não sabe minimamente que a falta de uma mera indicação sobre doces e recheios pode pôr tudo a perder, aí a questão fica, digamos, um pouco delicada – com a mesma sutileza acima.

O fato é que, de frente para as duas bandejas de bananinhas – era esse o nome do nosso amigo pastel de banana – qualquer cliente não tinha a indicação de qual era a pura bananinha, a tradicional, a mais vendida, e qual a outra, a que trazia a inovação do doce de leite. Eram duas bandejas idênticas, com bananinhas idênticas, bem fritinhas, açucaradas, acaneladas, ali esperando que os seres mortais adivinhassem qual delas tinha em seu interior o famigerado doce de leite.

A pausa necessária aqui vai desnortear o prezado leitor ou a prezada leitora e, portanto, já me adianto em pedir que não me levem a mal por este pequeno desvio de caráter: é que eu não gosto de doce de leite. Tampouco de chocolate. Mas, ouso dizer, a vida tem sido normal pra mim dentro dessa anormalidade, já que aos amigos eu rogo alguns minutos e logo angario o perdão deles sem qualquer ruptura, ou esbregue, banzé, recacau ou bacafuzada. No final fica tudo bem, creiam.

Pois que, voltando ao narratório, à cotidiana atividade de ir comprar bananinha, desde o momento da famigerada inovação do capeta, pra mim somar-se-ia agora a necessidade de dizer e redizer que a tal que eu queria é a tal que não tem doce de leite. Ou seja, sem doce de leite. Ou melhor, a normal, que não tem o doce dentro, redundantemente. E, mais, ao perguntar ao atendente, acrescia-se o gesto de apontar a bandeja certa, perguntar de novo, requerer uma prudente confirmação com alguém da produção, diga-se da fritura, e ainda por cima conferir o sinal afirmativo com a moça da balança. Era esforço pra mais de metro.

Alguns episódios nessa padaria passaram a ser pitorescos. Uma vez a moça estava quase fechando o pacote quando chegou uma atendente mais antiga, que já me conhecia, e disse que estava tudo errado, tirou o saquinho da moça e trocou as bananinhas pelas certas, do jeito que eu sempre pedia. E quando a menina pensou em dizer que “era tudo a mesma coisa”, a atendente quase pulou no pescoço dela, asseverando o desastre que seria me vender as bananinhas com doce de leite, já que eu sempre pedia a comum, sem o doce, e sempre sublinhava que não gostava do ingrediente recém-chegado.

A menina ficou desajeitada com a bronca e disse um monocórdio “Tá bom, entendi. Vou prestar atenção da próxima vez”, e saiu de fininho por trás do balcão.

Mas na vida as coisas simples não são tão simples assim, como eu já escrevi ali atrás. Bem, o fato é que, para a confirmação das regras, quando se alude à bendita exceção, é nela que as questões ficam sujeitas a um rumo inesperado.

Pois foi num belo dia que eu fui comprar bananinhas para levar pra minha cunhada. Minha cunhada adora doce de leite. Na fila o rapaz da vez me viu e perguntou: quantas? Não dava pra eu responder de longe, simplesmente, pois sabia que ele sabia que eu queria, sempre, eu disse sempre, as sem doce de leite. Então eu cheguei mais perto e expliquei:

– Olha meu amigo, eu queria com doce de leite.

– Mas, como assim? O senhor não gosta de doce de leite.

– Eu sei, mas, é que essas eu vou levar pra outra pessoa, a minha cunhada, entende?

– Então hoje o senhor vai querer com doce de leite?

– Isso. Isso mesmo. Bananinha com doce de leite.

Enquanto ele fechava a portinhola e abria a outra, ao lado, onde estava a bandeja correta para o meu pedido, uma outra atendente chegou apressada.

– Ô Cassio, essas são com doce de leite. Ele leva sempre sem doce. As dele estão ali na outra porta.

– Não, ele falou que dessa vez ele quer com doce de leite. Eu sei o que eu estou fazendo.

– Mas...

– Não tem mas... Deixa comigo.

A menina me olhou e eu, naturalmente sem jeito, expliquei bem rápido o que já tinha dito ao outro rapaz. Ela, esperadamente, fez cara de “que gente doida essa que um dia gosta de doce de leite e no outro não”, mas eu fingi que nem tinha lido o pensamento dela e fiquei esperando o meu pote plástico, com a bananinha, ser fechado.

Do corredor que dá acesso à cozinha o piloto do fogão do mercado, que também já me conhecia de tantas vezes fritar bananinhas novas quando as da bandeja estavam antigas, surgiu com uma forma de pizza nas mãos. Me cumprimentou com os olhos e disse ao outro rapaz:

– Cássio, vem aqui dentro por favor. Eu preciso falar com você, urgente.

– Tô só acabando aqui e já vou lá.

– Não, Cássio, venha aqui. Agora.

– Vou entregar essas bananinhas e...

– Não entregue não. Essas aí são com doce de leite. Mas que raio, eu não chamei você ali dentro?

– Olha, chefe, eu sei o que o senhor ia falar. Mas foi o cliente que pediu essas com doce de leite. Ele disse que não são pra ele e que a pessoa pra quem ele vai levar, essa gosta de doce de leite.

– É isso mesmo? – me inquiriu o chef com uns olhos arregalados por cima da vitrine.

– Sim, meu amigo. Dessa vez eu vou levar com doce de leite. Tá tudo certo, obrigado pela atenção.

O atendente riu meio de lado e, vitorioso, me entregou o pote finalmente.

Na chegada ao local de pesagem, a moça inspirou pra falar alguma coisa mas logo foi cortada pela minha rápida aclaração de que eu já sabia que eram bananinhas com doce de leite e tudo o mais que a gente já sabe.

Ela então disse o que ninguém ali tinha dito antes:

– É que os pasteizinhos, senhor, têm um sinal que indica qual é o recheio. Cada um tem uma marquinha. Esse aqui tem a borda cortada, então é de banana com doce de leite. Os que não têm esse corte são só de banana. Eu já ia perguntar se eram mesmo essas que o senhor ia levar, pois vi o corte ali na borda.

Eu agradeci a explicação e fiquei pensando que doce de leite é ruim.

E punto. E basta!

 

 


quinta-feira, 20 de março de 2025

O Professor de Filosofia


Eu acordei naquela tarde e aos poucos fui tentando entender o que se passava. Eu estava numa cama de hospital, num quarto todo monitorado, muitas telas e fios ligados a mim, com dispositivos apitando e se movendo ao meu redor e uns gráficos que eram atualizados em tempo real.

Por alguma razão, talvez falta de forças mesmo, eu não me sobressaltei com o meu estado. Apenas fiquei curioso pra entender o que realmente tinha acontecido, já que não me lembrava sequer de como tinha ido parar naquele lugar.

Olhando pela janela eu percebia algo estranho que eu não sabia bem o que era. Um céu meio cinza, escuro, as nuvens com uma formação incomum, as árvores de uma tonalidade diferente de verde, enfim, tudo era novo naquele meu olhar de dentro do quarto.

Entrou uma enfermeira com vários objetos nas mãos. Ao me ver acordado, de pronto saiu novamente e retornou com um senhor de óculos redondo, cabelos grisalhos lisos e um olhar que eu teimava em tentar reconhecer. Disse boa tarde e sentou na cadeira ao meu lado, enquanto aguardava o fim do ritual desempenhado pela enfermeira, passo a passo, anotando coisas das telas, medindo líquidos pendurados, tomando a minha temperatura e pressão e, por fim, levantando o encosto da minha cama.

– Boa tarde, Anderson – disse o homem da cadeira.

– Boa tarde... eu conheço o senhor... deixa ver... claro que conheço!

– Talvez sim. Não se esforce muito. Meu nome é Severiano Alfredo...

– Laguna. Severiano Laguna, meu professor de Filosofia da faculdade de jornalismo.

– Isso mesmo. Olha, poucos alunos me reconhecem assim, dessa maneira e com tamanha rapidez. Talvez tenha sido por isso que eu fui escolhido para te recepcionar.

– Recepcionar? A mim?

– Sim. O projeto escolhe pessoas por quem os pacientes têm elevada consideração intelectual. No caso eu nem sabia que você gostava tanto de filosofia, mas sempre supus a sua admiração pelos temas das minhas aulas. Assim, quando fui convocado, já sabia quem você era.

Então o professor me fez um relato de toda a sua vida, a sua infância no Chile, a vinda pro Brasil, a atuação acadêmica e as suas atuais tarefas depois de desencarnar, fato que já fazia uns bons dez anos.

O que estava confuso, agora tinha ficado caótico de vez. Como assim, desencarnar? Mas ele não parava com a sua narração, não havia brecha pra eu o interromper e, de algum modo, eu fui me acostumando com aquele, digamos pequeno detalhe.

– Então, minha primeira questão aqui é explicar o que te aconteceu. Posso?

– Claro, sim – disse, apressado.

– Pois bem. Nesses novos tempos as pessoas não podem, melhor, não devem ficar expostas à atmosfera por mais de duas horas. A temperatura atual do planeta está em torno de 75, chegando ali a picos de 80 graus Celsius em algumas regiões. O corpo humano não suporta essa configuração, como sabemos, e por isso há uma expressa proibição das autoridades sobre a circulação em certos horários, principalmente.

– Eu não me lembro de nada, professor!

– Vou chegar lá. Você foi encontrado desnorteado em uma rua da cidade e tão logo as equipes chegaram você desmaiou, antes mesmo de ser socorrido. A mais comum das sequelas nesse tipo de ocorrência é a perda da memória. Sua memória vai oscilar daqui pra frente, alternando presente e passado. Mas o resgate do que foi perdido, esse não será possível. De vez em quando você vai ter de pinçar alguma coisa lá do fundo, pra que não seja esquecida em definitivo. E sempre que puder contar pra outra pessoa, verbalizar essa memória, aproveite isso como um exercício para a manutenção da sua memória.

– Foi por isso que o professor contou toda a sua vida pra mim, ainda agora?

– Exatamente.

– É como o Fahrenheit 451, do Truffaut. Diante da destruição da cultura, as pessoas decoravam os livros para serem publicados no futuro.

– Exatamente, de novo.

– E quanto tempo faz que eu fui resgatado? Parece que estou aqui há dois dias.

– Faz pouco mais de 4 anos. O tratamento é muito demorado em certos casos. Primeiro se recuperam os órgãos danificados, depois os sentidos, as articulações, a mobilidade e por último a pele. Esta sua foi totalmente trocada, segundo me disseram. Mas o melhor disso tudo é que o paciente só recobra a consciência quando o corpo sente que as funções mínimas estão de novo em ordem. Aí, o espírito tem autorização para retornar ao corpo.

– Não sei se entendi bem. O que seria exatamente retornar ao corpo? Olha, professor, nesse momento eu nem sei o que dizer. Ou mesmo o que perguntar.

– Todo paciente, no mesmo decurso que o seu, normalmente pergunta em que ano nós estamos, entre outras coisas assim, mais práticas. Você não perguntou isso, mas eu vou te dizer mesmo assim. Vejamos, o ano é 2072. A temperatura da Terra é de 76 graus. É uma temperatura global, porque não há mais áreas sem incidência de calor extremo, ou seja, tudo foi afetado de alguma maneira. Por fim, nem os rios, nem os ventos, nem os oceanos parecem ter forças para diminuir todo esse quadro tenebroso.

– E como a gente fez isso? Como viemos parar aqui? Como deixamos isso acontecer, até chegar nesse nível?

– Eu posso dizer, com tristeza, que sou um dos culpados.

– Mas, como, o professor lecionava Filosofia! Não era químico, nem engenheiro, tampouco biólogo ou físico!

Se eu fosse capaz de incutir na consciência do homem a verdadeira filosofia, seus princípios e seus ensinamentos... talvez fosse diferente. Veja, na acepção do filósofo grego Pitágoras, que é mais conhecido no ramo da matemática, a doutrina filosófica está ligada ao amor pela sabedoria, algo que é experimentado apenas pelo ser humano consciente de sua própria ignorância. A Filosofia preconiza a busca das verdades relativas à natureza de Deus, da alma e do universo, divergindo da fé por utilizar procedimentos argumentativos, lógicos e dedutivos. Esse recorte nos dá a clara dimensão do nosso fracasso, um triste e inconteste fracasso. A filosofia não foi capaz de mudar a humanidade, aperfeiçoar o ser humano.


Primeiramente, eu queria encontrar alguma maneira de agradecer ao meu inesquecível professor Severiano Laguna. Não só por ter estado neste meu sonho, conversando comigo, mas trazendo de novo a sua presença, o seu jeito inconfundível de falar, de se expressar, as palavras que gosta de usar, o pensamento lúcido e lúdico ao mesmo tempo. Tudo isso foi um enorme prazer e também é o motivo desse meu agradecimento.

Naquela manhã eu acordei um tanto assustado. Fiquei parado, deitado, olhando o teto do quarto, ouvindo as suas ponderações – como Saramago gostava de pontuar –, pensando no ano de 2072, no aquecimento do planeta, na notícia que li acerca dos estudos sobre a onda de calor extremo, que fará com que algumas regiões fiquem inabitáveis em poucos anos.  E, finalmente, descobri que tinha faltado luz.

O ventilador estava parado há algumas horas e eu estava morrendo de calor.