Eu acordei
naquela tarde e aos poucos fui tentando entender o que se passava. Eu estava
numa cama de hospital, num quarto todo monitorado, muitas telas e fios ligados
a mim, com dispositivos apitando e se movendo ao meu redor e uns gráficos que
eram atualizados em tempo real.
Por alguma
razão, talvez falta de forças mesmo, eu não me sobressaltei com o meu estado.
Apenas fiquei curioso pra entender o que realmente tinha acontecido, já que não
me lembrava sequer de como tinha ido parar naquele lugar.
Olhando pela
janela eu percebia algo estranho que eu não sabia bem o que era. Um céu meio
cinza, escuro, as nuvens com uma formação incomum, as árvores de uma tonalidade
diferente de verde, enfim, tudo era novo naquele meu olhar de dentro do quarto.
Entrou uma
enfermeira com vários objetos nas mãos. Ao me ver acordado, de pronto saiu
novamente e retornou com um senhor de óculos redondo, cabelos grisalhos lisos e
um olhar que eu teimava em tentar reconhecer. Disse boa tarde e sentou na
cadeira ao meu lado, enquanto aguardava o fim do ritual desempenhado pela
enfermeira, passo a passo, anotando coisas das telas, medindo líquidos
pendurados, tomando a minha temperatura e pressão e, por fim, levantando o
encosto da minha cama.
– Boa tarde,
Anderson – disse o homem da cadeira.
– Boa tarde...
eu conheço o senhor... deixa ver... claro que conheço!
– Talvez sim.
Não se esforce muito. Meu nome é Severiano Alfredo...
– Laguna.
Severiano Laguna, meu professor de Filosofia da faculdade de jornalismo.
– Isso mesmo.
Olha, poucos alunos me reconhecem assim, dessa maneira e com tamanha rapidez.
Talvez tenha sido por isso que eu fui escolhido para te recepcionar.
– Recepcionar?
A mim?
– Sim. O
projeto escolhe pessoas por quem os pacientes têm elevada
consideração intelectual. No caso eu nem sabia que você gostava tanto de
filosofia, mas sempre supus a sua admiração pelos temas das minhas aulas.
Assim, quando fui convocado, já sabia quem você era.
Então o
professor me fez um relato de toda a sua vida, a sua infância no Chile, a vinda
pro Brasil, a atuação acadêmica e as suas atuais tarefas depois de desencarnar,
fato que já fazia uns bons dez anos.
O que estava
confuso, agora tinha ficado caótico de vez. Como assim, desencarnar? Mas ele
não parava com a sua narração, não havia brecha pra eu o interromper e, de
algum modo, eu fui me acostumando com aquele, digamos pequeno detalhe.
– Então, minha
primeira questão aqui é explicar o que te aconteceu. Posso?
– Claro, sim –
disse, apressado.
– Pois bem. Nesses
novos tempos as pessoas não podem, melhor, não devem ficar expostas à atmosfera
por mais de duas horas. A temperatura atual do planeta está em torno de 75,
chegando ali a picos de 80 graus Celsius em algumas regiões. O corpo humano não
suporta essa configuração, como sabemos, e por isso há uma expressa proibição
das autoridades sobre a circulação em certos horários, principalmente.
– Eu não me
lembro de nada, professor!
– Vou chegar
lá. Você foi encontrado desnorteado em uma rua da cidade e tão logo as equipes
chegaram você desmaiou, antes mesmo de ser socorrido. A mais comum das sequelas
nesse tipo de ocorrência é a perda da memória. Sua memória vai oscilar daqui
pra frente, alternando presente e passado. Mas o resgate do que foi perdido,
esse não será possível. De vez em quando você vai ter de pinçar alguma coisa lá
do fundo, pra que não seja esquecida em definitivo. E sempre que puder contar
pra outra pessoa, verbalizar essa memória, aproveite isso como um exercício
para a manutenção da sua memória.
– Foi por isso
que o professor contou toda a sua vida pra mim, ainda agora?
– Exatamente.
– É como o Fahrenheit
451, do Truffaut. Diante
da destruição da cultura, as pessoas decoravam os livros para serem publicados
no futuro.
– Exatamente,
de novo.
– E quanto
tempo faz que eu fui resgatado? Parece que estou aqui há dois dias.
– Faz pouco
mais de 4 anos. O tratamento é muito demorado em certos casos. Primeiro se
recuperam os órgãos danificados, depois os sentidos, as articulações, a
mobilidade e por último a pele. Esta sua foi totalmente trocada, segundo me
disseram. Mas o melhor disso tudo é que o paciente só recobra a consciência
quando o corpo sente que as funções mínimas estão de novo em ordem. Aí, o
espírito tem autorização para retornar ao corpo.
– Não sei se
entendi bem. O que seria exatamente retornar ao corpo? Olha, professor, nesse
momento eu nem sei o que dizer. Ou mesmo o que perguntar.
– Todo
paciente, no mesmo decurso que o seu, normalmente pergunta em que ano nós
estamos, entre outras coisas assim, mais práticas. Você não perguntou isso, mas
eu vou te dizer mesmo assim. Vejamos, o ano é 2072. A temperatura da Terra é de
76 graus. É uma temperatura global, porque não há mais áreas sem incidência de
calor extremo, ou seja, tudo foi afetado de alguma maneira. Por fim, nem os
rios, nem os ventos, nem os oceanos parecem ter forças para diminuir todo esse
quadro tenebroso.
– E como a
gente fez isso? Como viemos parar aqui? Como deixamos isso acontecer, até
chegar nesse nível?
– Eu posso
dizer, com tristeza, que sou um dos culpados.
– Mas, como, o
professor lecionava Filosofia! Não era químico, nem engenheiro, tampouco
biólogo ou físico!
– Se eu fosse capaz de incutir na consciência do homem a verdadeira
filosofia, seus princípios e seus ensinamentos... talvez fosse diferente. Veja,
na acepção do filósofo grego Pitágoras, que é mais conhecido
no ramo da matemática, a doutrina filosófica está ligada ao amor pela
sabedoria, algo que é experimentado apenas pelo ser humano consciente de sua
própria ignorância. A Filosofia preconiza a busca das verdades relativas à
natureza de Deus, da alma e do universo, divergindo da fé por utilizar
procedimentos argumentativos, lógicos e dedutivos. Esse recorte nos dá a clara
dimensão do nosso fracasso, um triste e inconteste fracasso. A filosofia não
foi capaz de mudar a humanidade, aperfeiçoar o ser humano.
Primeiramente, eu queria encontrar alguma maneira de
agradecer ao meu inesquecível professor Severiano Laguna. Não só por ter estado
neste meu sonho, conversando comigo, mas trazendo de novo a sua presença, o seu
jeito inconfundível de falar, de se expressar, as palavras que gosta de usar, o
pensamento lúcido e lúdico ao mesmo tempo. Tudo isso foi um enorme prazer e
também é o motivo desse meu agradecimento.
Naquela manhã eu acordei um tanto assustado. Fiquei
parado, deitado, olhando o teto do quarto, ouvindo as suas ponderações – como
Saramago gostava de pontuar –, pensando no ano de 2072, no aquecimento do
planeta, na notícia que li acerca dos estudos sobre a onda de calor extremo,
que fará com que algumas regiões fiquem inabitáveis em poucos anos. E, finalmente, descobri que tinha faltado luz.
O ventilador estava parado há algumas horas e eu estava
morrendo de calor.
valha-me nossa senhora!
ResponderExcluirViagem ao túnel da UGF. Adorei.
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