quinta-feira, 20 de março de 2025

O Professor de Filosofia


Eu acordei naquela tarde e aos poucos fui tentando entender o que se passava. Eu estava numa cama de hospital, num quarto todo monitorado, muitas telas e fios ligados a mim, com dispositivos apitando e se movendo ao meu redor e uns gráficos que eram atualizados em tempo real.

Por alguma razão, talvez falta de forças mesmo, eu não me sobressaltei com o meu estado. Apenas fiquei curioso pra entender o que realmente tinha acontecido, já que não me lembrava sequer de como tinha ido parar naquele lugar.

Olhando pela janela eu percebia algo estranho que eu não sabia bem o que era. Um céu meio cinza, escuro, as nuvens com uma formação incomum, as árvores de uma tonalidade diferente de verde, enfim, tudo era novo naquele meu olhar de dentro do quarto.

Entrou uma enfermeira com vários objetos nas mãos. Ao me ver acordado, de pronto saiu novamente e retornou com um senhor de óculos redondo, cabelos grisalhos lisos e um olhar que eu teimava em tentar reconhecer. Disse boa tarde e sentou na cadeira ao meu lado, enquanto aguardava o fim do ritual desempenhado pela enfermeira, passo a passo, anotando coisas das telas, medindo líquidos pendurados, tomando a minha temperatura e pressão e, por fim, levantando o encosto da minha cama.

– Boa tarde, Anderson – disse o homem da cadeira.

– Boa tarde... eu conheço o senhor... deixa ver... claro que conheço!

– Talvez sim. Não se esforce muito. Meu nome é Severiano Alfredo...

– Laguna. Severiano Laguna, meu professor de Filosofia da faculdade de jornalismo.

– Isso mesmo. Olha, poucos alunos me reconhecem assim, dessa maneira e com tamanha rapidez. Talvez tenha sido por isso que eu fui escolhido para te recepcionar.

– Recepcionar? A mim?

– Sim. O projeto escolhe pessoas por quem os pacientes têm elevada consideração intelectual. No caso eu nem sabia que você gostava tanto de filosofia, mas sempre supus a sua admiração pelos temas das minhas aulas. Assim, quando fui convocado, já sabia quem você era.

Então o professor me fez um relato de toda a sua vida, a sua infância no Chile, a vinda pro Brasil, a atuação acadêmica e as suas atuais tarefas depois de desencarnar, fato que já fazia uns bons dez anos.

O que estava confuso, agora tinha ficado caótico de vez. Como assim, desencarnar? Mas ele não parava com a sua narração, não havia brecha pra eu o interromper e, de algum modo, eu fui me acostumando com aquele, digamos pequeno detalhe.

– Então, minha primeira questão aqui é explicar o que te aconteceu. Posso?

– Claro, sim – disse, apressado.

– Pois bem. Nesses novos tempos as pessoas não podem, melhor, não devem ficar expostas à atmosfera por mais de duas horas. A temperatura atual do planeta está em torno de 75, chegando ali a picos de 80 graus Celsius em algumas regiões. O corpo humano não suporta essa configuração, como sabemos, e por isso há uma expressa proibição das autoridades sobre a circulação em certos horários, principalmente.

– Eu não me lembro de nada, professor!

– Vou chegar lá. Você foi encontrado desnorteado em uma rua da cidade e tão logo as equipes chegaram você desmaiou, antes mesmo de ser socorrido. A mais comum das sequelas nesse tipo de ocorrência é a perda da memória. Sua memória vai oscilar daqui pra frente, alternando presente e passado. Mas o resgate do que foi perdido, esse não será possível. De vez em quando você vai ter de pinçar alguma coisa lá do fundo, pra que não seja esquecida em definitivo. E sempre que puder contar pra outra pessoa, verbalizar essa memória, aproveite isso como um exercício para a manutenção da sua memória.

– Foi por isso que o professor contou toda a sua vida pra mim, ainda agora?

– Exatamente.

– É como o Fahrenheit 451, do Truffaut. Diante da destruição da cultura, as pessoas decoravam os livros para serem publicados no futuro.

– Exatamente, de novo.

– E quanto tempo faz que eu fui resgatado? Parece que estou aqui há dois dias.

– Faz pouco mais de 4 anos. O tratamento é muito demorado em certos casos. Primeiro se recuperam os órgãos danificados, depois os sentidos, as articulações, a mobilidade e por último a pele. Esta sua foi totalmente trocada, segundo me disseram. Mas o melhor disso tudo é que o paciente só recobra a consciência quando o corpo sente que as funções mínimas estão de novo em ordem. Aí, o espírito tem autorização para retornar ao corpo.

– Não sei se entendi bem. O que seria exatamente retornar ao corpo? Olha, professor, nesse momento eu nem sei o que dizer. Ou mesmo o que perguntar.

– Todo paciente, no mesmo decurso que o seu, normalmente pergunta em que ano nós estamos, entre outras coisas assim, mais práticas. Você não perguntou isso, mas eu vou te dizer mesmo assim. Vejamos, o ano é 2072. A temperatura da Terra é de 76 graus. É uma temperatura global, porque não há mais áreas sem incidência de calor extremo, ou seja, tudo foi afetado de alguma maneira. Por fim, nem os rios, nem os ventos, nem os oceanos parecem ter forças para diminuir todo esse quadro tenebroso.

– E como a gente fez isso? Como viemos parar aqui? Como deixamos isso acontecer, até chegar nesse nível?

– Eu posso dizer, com tristeza, que sou um dos culpados.

– Mas, como, o professor lecionava Filosofia! Não era químico, nem engenheiro, tampouco biólogo ou físico!

Se eu fosse capaz de incutir na consciência do homem a verdadeira filosofia, seus princípios e seus ensinamentos... talvez fosse diferente. Veja, na acepção do filósofo grego Pitágoras, que é mais conhecido no ramo da matemática, a doutrina filosófica está ligada ao amor pela sabedoria, algo que é experimentado apenas pelo ser humano consciente de sua própria ignorância. A Filosofia preconiza a busca das verdades relativas à natureza de Deus, da alma e do universo, divergindo da fé por utilizar procedimentos argumentativos, lógicos e dedutivos. Esse recorte nos dá a clara dimensão do nosso fracasso, um triste e inconteste fracasso. A filosofia não foi capaz de mudar a humanidade, aperfeiçoar o ser humano.


Primeiramente, eu queria encontrar alguma maneira de agradecer ao meu inesquecível professor Severiano Laguna. Não só por ter estado neste meu sonho, conversando comigo, mas trazendo de novo a sua presença, o seu jeito inconfundível de falar, de se expressar, as palavras que gosta de usar, o pensamento lúcido e lúdico ao mesmo tempo. Tudo isso foi um enorme prazer e também é o motivo desse meu agradecimento.

Naquela manhã eu acordei um tanto assustado. Fiquei parado, deitado, olhando o teto do quarto, ouvindo as suas ponderações – como Saramago gostava de pontuar –, pensando no ano de 2072, no aquecimento do planeta, na notícia que li acerca dos estudos sobre a onda de calor extremo, que fará com que algumas regiões fiquem inabitáveis em poucos anos.  E, finalmente, descobri que tinha faltado luz.

O ventilador estava parado há algumas horas e eu estava morrendo de calor.

 

 


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