Nas primeiras
horas da segunda-feira, assim que eu entrei no escritório, já lá estava a Gina,
eufórica por contar as novidades do fim de semana. Ela, publicitária, e eu,
jornalista, trabalhávamos juntos no setor de Marketing e ela tinha vindo de
Sampa pra Salvador, com todo o entusiasmo de, pela primeira vez, viver fora da
sua cidade e longe da família. Estávamos no verão e o ano era 1993.
Os demais colegas
de trabalho ainda não tinham chegado e, por isso, a Gina preferiu esperar um
pouco e contar a tal novidade com todos presentes, o que foi uma tortura pra
ela, que não se continha.
– Me diz ao
menos do que se trata. Se é alguma coisa grave; se você vai pedir demissão e
voltar pra São Paulo, sei lá – eu apelei, com alguma angústia.
– Tá. Eu vou
revelar pra você. Depois conto de novo pra todo mundo. É que eu finalmente
comprei uma tevê. Encontrei uma grande liquidação numa loja ali do shopping e
não resisti. Paguei e levei pra casa na hora. Tinha um monte em promoção e
algumas, inclusive, sem controle remoto. Essas eram bem mais baratas porque com
a invenção recente do controle, as pessoas não querem mais os modelos sem a
nova tecnologia.
– Mas, Gina,
você nem gosta de ver tevê? Sempre disse que não tem nada de bom na telinha,
principalmente aqui na Bahia, onde nem os jornais locais prestam. Como que
agora passou a gostar?
Nesse momento
foram chegando outros colegas do setor e cada um ficava mais surpreso com a
compra da colega. Uns pela surpresa da aquisição em si, já que ela sempre disse
que detestava tevês, e outros pela decisão de, para pagar pouco, optar por uma
tevê sem controle remoto. “Aí já é demais”, alguém disse. Já os que estavam
longe dela apenas balbuciavam: “Essa Gina é doida de pedra. Sem controle remoto? Uma
tevê. Tevê!”.
Estando a
plateia devidamente formada a publicitária pôde finalmente fazer a sua
explanação aos colegas incrédulos, explicando as suas motivações e intenções.
– Vejam vocês,
eu tenho muitas questões em relação ao sedentarismo da vida moderna. Esse é o
mal que assola grande parte da humanidade. As pessoas não se esforçam pra nada
e tudo na vida é facilitado pra que a gente só precise apertar um botão. Além
disso, não posso dizer que sou natureba, vegana ou algo assim, mas procuro comer
alimentos saudáveis e tal. Então, tudo isso pra dizer a vocês que o que eu fiz
combina com a minha postura de não me afundar no sedentarismo e que, afinal,
levantar da cadeira pra trocar de canal vai me fazer muito bem, mental e
fisicamente, isso sim.
Como alguém
podia argumentar algo diante de um discurso daquele? A gente até entendeu o
lado dela, a partir dessas ponderações e todo o seu esforço pra não sucumbir
aos ditos maus hábitos da contemporaneidade. Ela decidiu por comprar uma tevê,
que bom, pois trata-se de uma pessoa que sempre falou negativamente do aparelho
e a gente até se animava de contar as coisas que víamos nos programas porque
tudo parecia novidade pra ela. E entre nós ela era “a colega que não tinha tevê
em casa”, uma distinção alegórica que chegava a conter alguma graça.
“Tempo, tempo,
tempo, tempo”. O tempo cantado por Caetano ouve, altivo, o elogio supremo. “És
um dos deuses mais lindos”, diz o poeta.
O tempo cuida
de nos assentar as ideias, propor novas trajetórias, mostrar outras estratégias.
Enfim, o tempo passou pra mim, pros colegas de trabalho e pra nossa amiga Gina.
Ela até resistiu um bom tempo. Um tempo até por demais elástico. Talvez pra não
dar o braço a torcer. Não reclamava abertamente, mas a gente sabia que uma hora
aquele controle remoto da tevê ia fazer uma baita falta.
Foi então que,
durante um almoço, algumas semanas depois, ela disse que vinha dormindo mal
ultimamente. Acordava muito à noite e seu sono era sempre leve. Somente depois
de muita conversa ela admitiu, quase que em segredo, que passou a dormir com a
televisão ligada e que simplesmente deixava ligada por que iluminava o quarto e
que, enquanto estava assistindo, o sono teimoso sempre chegava de mansinho. Ela
não se referia abertamente ao problema de ter de levantar pra desligá-la, mas a
gente intuía a real situação, sem pressionar muito a coitada.
Na verdade,
nem ela nem nós jamais levamos o caso da tevê sem controle remoto para o lado
da crítica ou do julgamento. Nunca alguém falou que ela estava errada ou que
foi uma loucura aquela compra. E isso ajudou a dirigir as conversas para um campo
leve, até que finalmente chegou ao ponto em que todos já estávamos rindo, junto
com ela, pelo imbróglio que aquela novela teria criado na cabeça de todos nós.
Enfim, o passo seguinte foi a rodada de sugestões, sempre bem-humoradas, no
sentido de indicar alguma solução para tudo aquilo.
A realidade de
passar as noites sem dormir direito tinha de acabar. Aquilo não era vida.
Alguma coisa devia ser feita. Era a nossa preocupação do dia a dia, a tal ponto
que as pessoas, no meio da tarde, iam até a mesa dela pra dar alguma dica,
apontar alguma saída, uma gambiarra que fosse, pra que a colega tivesse uma
relação melhor com a sua famigerada televisão.
Eis que numa singela segunda-feira chega a Gina, de novo, ávida por nos contar a
solução encontrada.
– Gente, eu
achei uma boa solução. Comprei uma extensão elétrica bem longa e aí passei a
ligar a tevê nela. A tomada fica na cabeceira da cama, onde eu ponho o rádio relógio.
Quando eu sinto sono eu puxo o fio da tomada e pronto, desliga tudo. Mesmo nas
noites em que eu esqueço e pego no sono, assim que acordo no meio da noite,
incomodada com a luz, é só me virar, puxar o fio e voltar a dormir como um
bebê.
Rolou um certo
entreolhar de indagação mas, ao final, todos nós ficamos aliviados e demos boas
risadas dela, enquanto aprovávamos a sua solução. Alguns lembraram que ela
devia aprender a lição e nunca mais comprar nada sem controle remoto. “Mesmo
que seja de graça! Onde já se viu desprezar a tecnologia assim?”
Ela ria meio
sem jeito e dizia que tinha aprendido sim, a lição.
Até que alguém
perguntou sobre a segunda parte.
– Que segunda
parte, gente?
– Ué, agora
tem que resolver como vai fazer pra trocar de canal, sem ter que levantar da
cama. Desligar já tá resolvido.
– Ah, isso não
vai ser preciso, não.
– Como assim?
Você não troca de canal?
– Bem, gente,
vou explicar: é que como eu também não tenho antena, a minha tevê só pega um único
canal. E eu digo a vocês, sinceramente: Graças a Deus que é assim!
E a gente
repetiu em coro:
– Graças a
Deus!
Gina e seu e seu jeito simples de ser. Como um copo d’agua. Já me deparei com pessoas assim. E por vezes lhes dei razão.Obrigado Anderson
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