Marcel Marceau
é considerado o maior mímico de todos os tempos. É assim, com essa eloquente
simplicidade, que começa a maioria das biografias, quando imprimem as primeiras
definições sobre o gênio francês. O
grande ator da cena silenciosa e cheia de luz, um foco preciso em cada
expressão de seu rosto, sempre em preto e branco.
Assim que eu
soube que ia ter um espetáculo de Marceau no Rio de Janeiro, corri para a
bilheteria do Teatro Municipal pra garantir o meu ingresso. Naquele tempo, nos
idos de 1997, só se comprava entrada, pra qualquer evento, indo até as
bilheterias que ficavam na lateral do grande teatro, na Avenida Rio Branco. Me
lembro que eu fui com tanta antecedência que o rapaz teve de ir até o armário
atrás da mesa pra buscar a tabela de preços, com os horários e os dias certinhos
de cada sessão.
Trata-se de um
dos maiores teatros do Brasil, com uma enorme boca de cena, histórica e
suntuosa, assim como as paredes, os afrescos e aquele imenso lustre no centro
do teto, tal como um sol a iluminar todas as galáxias. Eu pensei em tudo isso
olhando o ingresso impresso nas minhas mãos e decidi que ia pedir emprestado o
binóculo do meu pai.
Na noite tão
esperada eu fui caminhando pelos andares, subindo as escadas, cruzando os
grandes espelhos, os mármores rosas e as estatuetas, todas a nos acolher com um
sorriso no rosto. O meu assento ficava na primeira fila da galeria, ou seja, no
piso mais alto destinado ao público. Dali se via todo o salão abaixo, as frisas
e os acessos, que não paravam de receber gente e mais gente.
Eu sabia que
minha miopia não ia me permitir uma observação detalhada – como deve ser –
daquele homem célebre e, enfim, um artista internacional reconhecido e
ovacionado pelo mundo inteiro. Por isso, assim que me acomodei saquei o
binóculo e fui conferir o foco, o centro do palco, a distância e tudo o mais,
de modo a estar preparado para quando o mestre dos mímicos iniciasse a sua performance.
Do meu lado
sentou um rapaz que não tinha mais do que 20 anos, se tanto. Enquanto eu percebia
à minha volta um certo, digamos, exame crítico em relação ao meu equipamento,
com os olhares de reprovação e desdém que se confundiam propositalmente, o
rapaz abriu um enorme sorriso e, logo em seguida, me parabenizou por ter
trazido o binóculo. Ao mesmo tempo me disse que lamentava por não ter pensado
em fazer o mesmo.
Na minha
cabeça já estava decidido que a ele ia ser ofertado o binóculo, claro, porque
minha mãe jamais aprovaria uma falta de educação da minha parte, diante de uma
oportunidade de ser gentil, como aliás o rapaz se mostrou assim que se acomodou
na sua poltrona.
Quando a
apresentação começou eu percebi, de imediato, que o binóculo não seria
necessário. Era uma nitidez tão perfeita, a sua maquiagem junto com a
iluminação cênica, que eu até me esquecia de buscá-lo apoiado no colo. O rapaz,
certamente, usou muito mais do que eu, se embevecendo com as expressões do
mímico a cada segundo.
Os olhares de
reprovação das pessoas em volta foram, perceptivelmente, se alterando aos
poucos. Em ato contínuo o rapaz, a certa altura, ofereceu o binóculo para uma
senhora ao lado dele. Subitamente, se deu conta do equívoco e me perguntou meio
sem graça:
– Desculpe,
podia emprestar?
Eu apenas ri e
fiz um gesto afirmativo, abrindo caminho para mais olhares ávidos por um
segundo de proximidade com o artista, o que foi acontecendo naturalmente dali
em diante.
O binóculo
circulou por boa parte da galeria daquele teatro. Com cada olhar que eu
cruzava, durante o espetáculo, me surpreendia com uma expressão de
agradecimento, traduzida num cumprimento formal de cabeça. Enfim, o que antes
era só reprovação, agora era amizade e gratidão.
Ao final da
apresentação os aplausos ensurdecedores se repetiram até o terceiro bis. Por
três vezes Marceau desapareceu atrás das cortinas, retornando em seguida, não
sem demonstrar alguma surpresa e até mesmo acanhamento, diante daquele imenso
auditório plenamente extasiado.
As pessoas iam
ganhando o corredor da saída e passavam por mim agradecendo o empréstimo do
binóculo. Estávamos todos felizes pela presença ali, naquela noite, naquele
teatro.
O rapaz, em
tom confessional, me segredou:
– Eu digo obrigado
também. O binóculo, afinal, me ajudou a esconder algumas lágrimas.
Eu tenho guardado
o encarte e a entrada daquele espetáculo até hoje.
No dia
seguinte, um crítico de teatro escreveu no jornal: O silêncio, a luz e o
movimento do mestre Marcel Marceau me fizeram rir e chorar e, hipnotizado e comovido,
saí daquele teatro com uma lembrança eterna e um agradecimento imenso. Para
sempre, um mestre.