Um dos mais
cruéis efeitos colaterais das privatizações é que a conta sempre chega. E chega
para a população, o usuário do serviço, seja ele qual for.
Foi o próprio
síndico daquele condomínio de casas que anunciou, em assembleia, a mudança no
modelo de fornecimento de água, após a privatização da empresa que até então
era quem gerenciava o serviço, incluindo o aparato de esgotamento em
todo o bairro.
O fato de não
ter cobrança especificamente naquele endereço se devia ao rio que ficava bem ao
lado dos muros da propriedade, dando aos moradores o benefício, não só da
captação, mas também de todo o encanamento, desde a fonte, até chegar às
residências.
Os moradores então
se revoltaram com a nova cobrança e o síndico vinha tendo muito trabalho em
explicar a nova situação.
– Mas se o rio
continua lá; se a gente usa essa água do rio desde sempre e se os encanamentos
estão todos funcionando de acordo, porque raios agora a gente tem de pagar só
porque o serviço foi privatizado? – interpelou uma moradora.
A insatisfação
foi se alastrando e ficou pior ainda quando chegou a ordem para que todas as
casas fossem registradas na empresa e passassem a instalar um hidrômetro, como
meio de medir o consumo, claro, pra gerar uma conta, algo que jamais tinha
acontecido até então.
Muitos
condôminos se negaram a fazer o registro, assim como também não aceitaram a
instalação do tal hidrômetro. A empresa, por seu lado, informou que trabalharia
com um período de instalação do equipamento de forma gratuita, mas que após o
prazo estipulado, cada morador arcaria com os custos da colocação do instrumento, o que causou mais revolta ainda.
– Não vem
pressionar a gente, não! Nós não faremos nada obrigados. Onde já se viu? A água
continua ali correndo atrás do condomínio e agora a gente vai ter de pagar? De
jeito nenhum – esbravejou outro inquilino.
Bem, o tempo
foi passando e alguns moradores acabaram aceitando o hidrômetro. Muitos com
medo de vir uma multa ou mesmo uma retaliação, como a suspensão do fornecimento,
e vários ainda achando que a imposição da empresa era um beco sem saída, já que
ela era agora a nova gestora do serviço.
Todo dia era
possível ver uma equipe da concessionária instalando um novo hidrômetro aqui e
ali. Com isso criou-se uma divisão entre os moradores que aceitavam e os que
resistiam, estes se recusando em ceder às novas normas da companhia. Os dois
lados até que conversavam, sempre um querendo convencer o outro da melhor
estratégia. A empresa, por sua vez, esticou o período de instalação sem custos,
mas a batalha era longa e estava sendo travada dia após dia.
Houve um
momento em que começaram a chegar as denúncias de que a concessionária estaria
instalando os famigerados hidrômetros à revelia dos moradores, ou seja, que as
equipes de trabalho circulavam pelo condomínio e, diante da constatação da
ausência do morador, instalava o equipamento compulsoriamente. Quando o sujeito
chegava do trabalho já estava lá o troço todo pronto e a residência fichada na
companhia.
Foi então que
o caldo entornou de vez. Teve nova reunião com o síndico, chamaram a empresa,
denunciaram na prefeitura, no Procon e, enfim, quase teve pancadaria no salão
de festas ao encerramento do encontro.
O Maikon
chegou mais cedo do trabalho naquele dia. Era um fortão, assíduo na academia do
fim da rua, que era professor de Português da rede pública e um flamenguista
doente. Assim que embicou o carro na sua garagem se deparou com uns homens,
todos uniformizados, agachados no muro do vizinho, instalando o relógio da
água, que era como ele chamava, pois fazia referência aos relógios de luz, de
energia elétrica.
– Pode tirar.
Pode tirar tudo isso daí. O meu vizinho não quer que instale esse negócio e já
comunicou à empresa de vocês por escrito. Então pode tirar agora mesmo.
Os
trabalhadores, atônitos, se olharam e até gaguejaram, tentando explicar alguma
coisa.
– Não quero
saber se a empresa mandou. Eu estou dizendo pra não instalar nada e ponto
final. Aliás, vou dizer uma coisa pra vocês. Olha, vocês tiveram muita sorte,
sabiam? Porque se vocês estivessem instalando essa joça na minha casa eu ia
mandar bala em todos vocês. Eu garanto que não ia sobrar um vivo aqui nessa
merda. Eu passo o revólver em cada um que estiver na minha casa fazendo algo
que eu não queira. Vocês entenderam? Vocês não me conhecem e por isso estou
avisando. Se a empresa mandar botar esse negócio na minha casa eu passo é bala
em vocês. E eu não vou dar pra aleijar não. Vai ser pra mandar pro capeta de
uma vez. Entenderam?
Os coitados,
meio tontos, meio trêmulos, foram juntando o material, guardando as ferramentas
e saindo de fininho, pedindo desculpas e jurando que tinham entendido o recado,
certinho.
– Pode deixar,
senhor. A gente entendeu tudinho e aqui a gente não mexe mais não. O senhor
desculpe.
O professor
fortão entrou em casa escondendo o riso. Aos amigos, mais tarde, chegou a
confessar que se descobriu um excelente ator naquele episódio, pois, na
condição de educador jamais achou que podia se passar por bandido ou algum personagem
violento. Ele que jamais teve uma única briga no seu currículo. “O físico, sem
dúvida me ajudou a compor o personagem”, frisou o fortão, enquanto lembrava daquele dia.
A minha irmã,
que é moradora desse condomínio e conhece toda essa história e seus
personagens, contou que, dias depois, teve um complemento importante no
capítulo final dessa novela.
Do outro lado
da casa do professor havia uma outra equipe trabalhando. Um carro passou dentro
do condomínio e parou bem em frente. Os seus quatro ocupantes saíram e
começaram a perguntar sobre o andamento das instalações, se faltava muita coisa
e tal.
– Ah, ainda
falta muito, sim. Um monte de gente ainda não aceitou. Mas a gente vai devagarzinho
– disse um operário.
– Na minha
casa, que fica aqui na rua detrás, já está tudo ok. Fizeram nessa semana na
casa do meu amigo e na passada a ligação foi na minha – puxou conversa um outro passageiro.
– É verdade, bróder,
foi bem rapidinho e ficou tudo certo. Mas olha só, vou avisar uma coisa pra vocês,
na boa. Aqui nessa casa aqui não faz nada sem a autorização do morador não. O
cara é assassino de aluguel, é matador, ganha a vida matando as pessoas por
encomenda. Ele mora aqui tipo como esconderijo mesmo. Sujeito brabo do cacete e
com ele não tem conversa, vai logo metendo bala. Tem um monte de morte nas
costas. Fiquem ligados com ele.
– Vixe,
senhor. Nem fala. Outro dia a gente estava ali no vizinho dele, bem do lado
mesmo, que a casa estava vazia. Aí o sujeito chegou de carro e esculachou nós,
na moral. Disse poucas e boas, ameaçou matar todo mundo, a gente e o escambau.
– E ainda por
cima o cara é forte pra cacete, né? É um touro. A gente não vai vacilar e nem vai mais chegar perto da casa. Nada de trabalhar ali. Deus me livre.
– É isso. Com
gente assim, da maldade mesmo, a gente tem que ficar longe, bem longe. Valeu, então bom trabalho
pra vocês e boa sorte.
Posso dizer,
depois de saber desses detalhes, que os quatro conseguiram, com muito custo, segurar o riso até entrar no carro e se afastar dos trabalhadores. Cada um,
mais tarde, contou toda a conversa pro fortão e cada palavra era motivo
pra mais risadas.
E foi
justamente a minha irmã que me deu a real noção sobre aquela situação, ao relatar a
conversa que teve com o vizinho, o tal professor fortão. Ela ficou intrigada de
onde tinham saído aqueles caras do carro e como tudo aquilo aconteceu.
– Olha
vizinha, na verdade os caras são todos amigos meus, lá da academia. Eu combinei com eles
nesse dia pra falar com os operários. Assim que os vi ali agachados em outra
casa pensei: vou dar um susto neles. Aí chamei os amigos e até emprestei o meu
carro pra eles fazerem essa, digamos, abordagem, na linguagem dos canas.
A gente deu muita risada naquele dia. Eles disseram que eu era matador de
aluguel, veja só.
– Bem, pelo menos agora
eles não te incomodam mais. Se soubesse que essa estratégia ia dar certo, eu teria feito a mesma coisa, pagava de matadora e tudo. Será que os seus amigos fariam
isso de novo, dessa vez pra mim?
– Pô, vizinha!
Tá falando sério?
E os dois se olharam um tempo, depois caíram soltos na risada mais uma vez, um tripudiando do outro.
– Dois
matadores vivendo no mesmo condomínio! Já pensou?
Boa ideia!
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