Muitas
histórias da minha infância no bairro de Ramos eu venho contando aqui, ao longo
dos anos. Essa, em especial, eu já tinha esquecido quase por completo, e diz
respeito a uma brincadeira que a gente fazia a partir de uma singela
ocorrência, qual seja, a falta de luz na minha rua.
Não era
incomum que de tempos em tempos faltasse luz em todo o quarteirão. Era uma
sensação boa, de mudança de realidade, algo inesperado, que a gente passava a
conviver e acabava por ver imagens que só eram possíveis sem a iluminação das
lâmpadas.
Um exemplo eram
os vagalumes. Eles apareciam de todos os lados, voando em sentidos diversos, no
exato instante em que o breu dominava a nossa percepção. Era uma diversão
incontida ver aquelas figuras tremeluzentes bailando como uma linha pontilhada
ao vento, trazendo nas suas luzes o mágico poder de magnetizar os olhos de
todos nós, meninos e meninas com cerca de 10 anos de idade.
Outra imagem
marcante que me lembro é a das janelas das casas e dos apartamentos próximos. A
gente ficava horas reparando o luzir bruxuleante das velas acesas nos cômodos
vizinhos, vez por outra engolidas por sombras, talvez dos seus próprios moradores, e
depois retornando fortes, emolduradas pelo retângulo luminoso das esquadrias, que pareciam apagar e acender diante dos nossos olhos.
A Espadinha,
pois, que dá título à essa crônica, era um jogo que um dia meu pai “inventou”,
justamente numa noite de falta de luz, quando a nossa casa estava cheia de
amiguinhos a descansar do futebol, interrompido pelo apagão inesperado no nosso
estádio-rua. Todos nós, cansados de tanto jogar, sentamos na beirada do portão
lá de casa e estávamos esperando a iluminação se refazer, quando meu pai veio
nos ensinar a nova brincadeira, de nome Espadinha.
Em círculo, com
uma vela no centro, o primeiro passo era que cada um ganhava uma patente
militar. Depois, o posto mais alto, o Espadinha, iniciava dizendo: “Espadinha
passou pela guarda e notou a falta do sargento”. Aí o sargento prontamente
dizia: “O sargento não falta, quem falta é o capitão”. Este já respondia,
também de pronto, indicando que quem faltava era um outro posto, o major por
exemplo, e o major dava prosseguimento ao jogo. Bem, perdia aquele que
papava-mosca, ou seja, quem não respondia rapidamente ao chamado de falta.
Com a luz da
vela incidindo em redor do círculo de crianças, os nossos rostos e também os
gestos que a gente fazia ficavam submetidos ao movimento da chama, o que dava
um efeito fantasioso de animação, como se estivéssemos num filme ou desenho.
Aquela
brincadeira normalmente ia longe. Tarde da noite. Meu pai mesmo só ficava pra
ajudar no início e, em seguida, a gente já sabia como terminar e reiniciar cada
rodada. Quando a luz voltava todos nós fazíamos o mesmo coro de “Aaaahhh, que
pena”, e cada um seguia para a sua casa, retomando a vida com luz.
Faz um mês,
mais ou menos, eu estava na sala de casa vendo um filme e de repente a luz se
foi. Achei que ia voltar logo e nem me mexi do sofá. Tinha acabado de anoitecer
e algum pedaço de céu resistente teimava em se manter claro. A mobília dentro
de casa já não tinha cor e opacas eram também as silhuetas dos quadros na
parede e das estantes com livros de formatos confusos.
Supus ter
visto um vagalume. E me assustei. Depois ouvi alguém dizer, com um sorriso no
rosto, "quem falta é o tenente". Mas me virei e não tinha ninguém. Me dei
conta, em algum momento, de que eu não tenho sequer uma vela em casa. Talvez
fosse acolhedor rever a minha sombra de criança se mexendo entre a chama e a
cortina. Mas logo desisti.
Depois de mais
de meio século da Espadinha, intuí, sozinho, no escuro, os rostos queridos da
minha infância. Do Ednelson, do Inglês, do Marquinhos, do Renatinho, do Jorge,
do João Pimpão, do Carlinhos, da Cristina, da Anaíse... e do meu
pai.
Levantei
devagar, fui até o lado da estante e peguei o violão. Fiquei ali dedilhando um
tempo qualquer. Perdido em solfejos. Toquei as músicas que eu sabia de cor, depois as
que eu já nem lembrava mais. Ia acendendo e apagando os acordes, como a lâmpada de um flash, pontilhando no vento as notas em sequência e também os versos que voltavam
um a um, lá dos anos 70, os cantores, as bandas...
Então, já não
me assustei com o vagalume que passou.
Nem duvidei de
ter ouvido “o tenente não falta”.
Tenho saudades
do meu pai.
Como é bom
tocar o violão no escuro!
Como é bom poder tocar um instrumento... lindo texto.
ResponderExcluirQue seu pai esteja na paz de Deus! Um beijo no seu coração!
ResponderExcluirA sobrevivência dos vagalumes!
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