sexta-feira, 31 de outubro de 2025

Espadinha


Muitas histórias da minha infância no bairro de Ramos eu venho contando aqui, ao longo dos anos. Essa, em especial, eu já tinha esquecido quase por completo, e diz respeito a uma brincadeira que a gente fazia a partir de uma singela ocorrência, qual seja, a falta de luz na minha rua.

Não era incomum que de tempos em tempos faltasse luz em todo o quarteirão. Era uma sensação boa, de mudança de realidade, algo inesperado, que a gente passava a conviver e acabava por ver imagens que só eram possíveis sem a iluminação das lâmpadas.

Um exemplo eram os vagalumes. Eles apareciam de todos os lados, voando em sentidos diversos, no exato instante em que o breu dominava a nossa percepção. Era uma diversão incontida ver aquelas figuras tremeluzentes bailando como uma linha pontilhada ao vento, trazendo nas suas luzes o mágico poder de magnetizar os olhos de todos nós, meninos e meninas com cerca de 10 anos de idade.

Outra imagem marcante que me lembro é a das janelas das casas e dos apartamentos próximos. A gente ficava horas reparando o luzir bruxuleante das velas acesas nos cômodos vizinhos, vez por outra engolidas por sombras, talvez dos seus próprios moradores, e depois retornando fortes, emolduradas pelo retângulo luminoso das esquadrias, que pareciam apagar e acender diante dos nossos olhos.

A Espadinha, pois, que dá título à essa crônica, era um jogo que um dia meu pai “inventou”, justamente numa noite de falta de luz, quando a nossa casa estava cheia de amiguinhos a descansar do futebol, interrompido pelo apagão inesperado no nosso estádio-rua. Todos nós, cansados de tanto jogar, sentamos na beirada do portão lá de casa e estávamos esperando a iluminação se refazer, quando meu pai veio nos ensinar a nova brincadeira, de nome Espadinha.

Em círculo, com uma vela no centro, o primeiro passo era que cada um ganhava uma patente militar. Depois, o posto mais alto, o Espadinha, iniciava dizendo: “Espadinha passou pela guarda e notou a falta do sargento”. Aí o sargento prontamente dizia: “O sargento não falta, quem falta é o capitão”. Este já respondia, também de pronto, indicando que quem faltava era um outro posto, o major por exemplo, e o major dava prosseguimento ao jogo. Bem, perdia aquele que papava-mosca, ou seja, quem não respondia rapidamente ao chamado de falta.

Com a luz da vela incidindo em redor do círculo de crianças, os nossos rostos e também os gestos que a gente fazia ficavam submetidos ao movimento da chama, o que dava um efeito fantasioso de animação, como se estivéssemos num filme ou desenho.

Aquela brincadeira normalmente ia longe. Tarde da noite. Meu pai mesmo só ficava pra ajudar no início e, em seguida, a gente já sabia como terminar e reiniciar cada rodada. Quando a luz voltava todos nós fazíamos o mesmo coro de “Aaaahhh, que pena”, e cada um seguia para a sua casa, retomando a vida com luz.

Faz um mês, mais ou menos, eu estava na sala de casa vendo um filme e de repente a luz se foi. Achei que ia voltar logo e nem me mexi do sofá. Tinha acabado de anoitecer e algum pedaço de céu resistente teimava em se manter claro. A mobília dentro de casa já não tinha cor e opacas eram também as silhuetas dos quadros na parede e das estantes com livros de formatos confusos.

Supus ter visto um vagalume. E me assustei. Depois ouvi alguém dizer, com um sorriso no rosto, "quem falta é o tenente". Mas me virei e não tinha ninguém. Me dei conta, em algum momento, de que eu não tenho sequer uma vela em casa. Talvez fosse acolhedor rever a minha sombra de criança se mexendo entre a chama e a cortina. Mas logo desisti.

Depois de mais de meio século da Espadinha, intuí, sozinho, no escuro, os rostos queridos da minha infância. Do Ednelson, do Inglês, do Marquinhos, do Renatinho, do Jorge, do João Pimpão, do Carlinhos, da Cristina, da Anaíse... e do meu pai.

Levantei devagar, fui até o lado da estante e peguei o violão. Fiquei ali dedilhando um tempo qualquer. Perdido em solfejos. Toquei as músicas que eu sabia de cor, depois as que eu já nem lembrava mais. Ia acendendo e apagando os acordes, como a lâmpada de um flash, pontilhando no vento as notas em sequência e também os versos que voltavam um a um, lá dos anos 70, os cantores, as bandas...

Então, já não me assustei com o vagalume que passou.

Nem duvidei de ter ouvido “o tenente não falta”.

Tenho saudades do meu pai.

Como é bom tocar o violão no escuro!





3 comentários:

  1. Como é bom poder tocar um instrumento... lindo texto.

    ResponderExcluir
  2. Que seu pai esteja na paz de Deus! Um beijo no seu coração!

    ResponderExcluir
  3. A sobrevivência dos vagalumes!

    ResponderExcluir