quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Historinha de Natal


Certo dia a filha mais velha de minha cunhada Leonora, Isabela, entrou em casa de modo estranho. Era um sentimento um tanto confuso, que ela tinha de dividir com a mãe, pois que envolvia sua irmã dois anos mais nova, Érica, que contava nove anos. A menina sondou a mãe enquanto esta aprontava o almoço e disse que era uma conversa delicada, e sem que a irmã ouvisse elas haveriam de conversar, só as duas, sobre um fato que estaria prestes a acontecer e que mudaria para sempre a infância daquelas irmãs.
Combinaram que arranjariam mãe e filha um tempo pra falar, à tarde, enquanto a irmã estivesse na escola. E assim foi. Naquela tarde, como quem alerta alguém para um perigo iminente, a pequena Isabela começou, meio sem jeito.
- Mãe, a senhora tem de fazer alguma coisa.  A mana está sendo ridicularizada pelas colegas da classe e eu já não tenho como me comportar perto dela quando isso acontece. Eu chego a ficar com vergonha, mas é a senhora que tem de contar pra ela a verdade. As meninas sempre caçoam dela porque ela diz que vai escrever uma carta pro Papai Noel e que vai botar no correio, essas coisas. Mãe, ela ainda acredita em Papai Noel e as meninas ficam fazendo piadinhas com ela. Mãe, a senhora tem de contar pra ela, contar a verdade! Eu gosto da minha irmã e não quero que isso continue acontecendo com ela.  Faz alguma coisa, mãe!
Minha cunhada ficou sem ação. Um instante célere bastou pra que ela visse, como num filme, todos os cuidados, os carinhos, as ilusões que proporcionou pra que a filha, a cada Natal, recebesse o presente das mãos do próprio Noel. Era a visita ao shopping, a foto ao lado do Bom Velhinho, as cartinhas e tudo o mais. O sonho, a magia do Natal que ela se esmerou em perpetuar;  como acreditar que tudo aquilo agora pudesse se transformar em uma coisa ruim para a sua pequena Érica?
Por outro lado, como filha caçula, a menina teve todos os mimos e todos os contos de fadas que os pais puderam patrocinar. E ela retribuía a tudo com aquele seu ar angelical, fascinando toda a família, não só os pais.
Mas agora era tudo diferente. Afinal de contas, como poderia uma mãe não defender sua filha, não evitar que ela fosse vítima daquelas troças e zombarias. Pois com Leonora não foi diferente. Estava tomada a decisão!
“Minha filhinha, nós temos que conversar”, ela iniciou, assim que a menina chegou do colégio. Juntou todas as suas forças e durante aquela próxima hora e meia disse tudo. Revelou tudo e não escondeu nada. Não restou, ao fim daquelas perversas revelações, sonho sobre sonho.  Minha cunhada falou sobre as fotos nos shoppings, as cartas pedindo bonecas, os presentes escondidos na casa da avó até o Natal, tudo mesmo. No início achando-se forte e decidida em sua atitude. A seguir, nem tão forte, e ainda menos certa da sua crueldade. E depois se achando a própria Rainha Má, entregando à própria filha a maçã envenenada.
Choraram juntas as duas. A princípio só a filha e depois também a mãe, compadecida da tristeza que estava causando. Se abraçaram forte e lembraram de muitos Natais passados; das crianças pobres que ganhavam presentes de papais noéis desconhecidos, das meninas que não ganhavam as bonecas caras que pediam; uma prosa sem fim que aos poucos cuidava de ir secando as últimas lágrimas de ambas.
De repente, como se emergisse toda a sua tristeza novamente, Érica parou, levantou os olhos e perguntou para a sua – àquela altura – já sofrida mãezinha:
– Mãe, então o Coelhinho da Páscoa também não existe?
E caiu num choro lento e dolorido, que só terminou quando o sono chegou e a tomou nos braços. E quem sabe nos seus sonhos ela tenha visto - real como nós, adultos, nunca mais pudemos ver - o Papai Noel e o Coelhinho da Páscoa trocando presentes, na ilusória neve brasileira feita de algodão. 
           Um Natal Feliz para todos nós.


sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

A Aposta

Quase todo mundo nesta vida tem um tio que tem um sítio. Eu também tive o meu. Era o tio Paulo. E ele tinha um sítio grande, lindo, com quadra esportiva e piscina, na aprazível Petrópolis, cidade de serra, friazinha o ano todo, que foi escolhida por D. Pedro – e depois pelos demais cariocas – para fugir do verão infernal do Rio de Janeiro.
Quando a mulher do meu tio, a tia Neusa, ligava pra minha mãe nos chamando pra ir pro sítio, a casa da gente ficava em polvorosa, todo mundo querendo arrumar as coisas pra levar pro sítio, separando roupas, calções de banho e brinquedos, sem esquecer os jogos de tabuleiro, que a gente adorava montar pra passar horas a fio com os primos e os amigos, jogando madrugada adentro.
Numa dessas madrugadas tivemos a grata surpresa da chegada do próprio tio Paulo. Passava um pouco da meia-noite quando vimos o carro dele entrando e fomos todos pra varanda fazer festa pela sua presença. Chegou de terno, direto do trabalho e no minuto seguinte já estava de bermuda com a gente, contando algum caso interessante. Ele era bom nisso.
O sítio se chamava Maracangalha, acho que em homenagem à música famosa do Dorival, e tinha um grande salão, com muitos sofás e uma mesa de sinuca oficial, colocada embaixo de uma luminária em forma de cone, que vinha do teto até bem pertinho dela.
Naquela sala era tudo separado. As conversas dos adultos eram num lugar e as das crianças no outro, sendo que os jogos eram a oportunidade para todos estarem juntos. Nesta noite especificamente, no meio do vozerio das brincadeiras, notamos que meu tio Paulo e meu pai estavam arrumando as bolas na mesa de sinuca pra uma partida e a mesa sendo arrumada, por si só, já era motivo pra todos pararem pra ver o que estava acontecendo.
Na verdade era uma aposta. Meu pai convidou o tio Paulo e o provocou, dizendo que o bom era jogar apostando. Ao que meu tio respondeu que topava e que apostava o que ele quisesse.
- Uma garrafa de conhaque? – disse meu pai.
- Ok, mas se eu ganhar tu vai dar um mergulho na piscina no final do jogo – rebateu meu tio.
Feito o trato, lembro que nessa hora todos paramos pra ver o jogo de sinuca. Crianças, adultos, e principalmente minha tia e minha mãe, pois sabiam que ia começar algo que ficaria na lembrança de um dia no sítio, com toda a família.
O jogo então começou com aquelas provocações normais de ambos os lados. Um dizia que já sentia o cheiro do conhaque no copo e o outro dizia que a água da piscina àquela hora da madrugada devia estar mesmo boa, pois devia estar uns 10 graus na serra de Petrópolis.
Meu tio foi ganhando vantagem e, pouco antes de acabar por vencer o jogo, disse que não queria desculpa do meu pai para não pagar a aposta, que o mergulho teria que ser no final do jogo, sem choro nem vela. Aposta é aposta, lembro dele dizendo isso.
Foi então que veio a surpresa. Meu tio venceu o jogo e meu pai, com medo de cair na piscina às 2 da madrugada, começou a roer a corda.
- Sabe o que é Paulo, eu posso me gripar se mergulhar agora – começou meu pai. E tá muito frio porque agora tá mais tarde e a água ficou mais gelada ainda. Eu acho melhor cair na piscina amanhã e aí eu pago a aposta. Aliás, estou com um problema de garganta, pode até perguntar pra Jurema, que ela vai confirmar. Jurema? Onde está ela? Filha, confirma aqui pro Paulo o que eu tô dizendo – dizia meu pai, procurando a minha mãe que estava ali ao lado, até há pouco.
De repente surge a minha mãe, voltando do quarto, trazendo na mão o calção de banho do meu pai e dizendo, para surpresa de todos:
- Aposta é aposta. Tá aqui o seu calção. Se não podia cair na piscina não apostasse. Vai lá, dá o seu mergulho e depois a gente cura a sua gripe. Deixa de ser frouxo. Perdeu o jogo, agora paga a aposta.
Só deu tempo de o meu tio dar uma risada, assim como todos nós, tamanha foi a nossa surpresa. A gente esperava que minha mãe fizesse algo em defesa do meu pai, mas ela veio o calção na mão e aí não teve mais conversa. Meu tio pegou uma toalha pro meu pai, botou nas costas e, abraçando ele, foi andando pra fora da casa.
Todos nós fomos atrás, claro, e ainda pudemos ouvir meu tio dizer no caminho:
- Tá bem, pra você não chorar muito, te dou um copo daquele meu conhaque bom. Aliás, te dou duas doses: uma antes de mergulho, pra você tomar coragem, e outra pra você se aquecer de novo, enquanto se seca.
O mergulho foi um espetáculo. Depois de ligar todas as luzes da área em que ficava piscina, todo o cenário, com as árvores em volta, tudo ficou bem bonito de ver. A água estava até com aquela fumacinha por cima, de tão gelada. Meu pai então fez pose, tomou um gole, torceu um pouco a cara, mergulhou de um lado, saiu do outro e pronto. Não teve gripe, não teve choro nem vela. Mas para mim, ainda criança, a lição foi valiosa: Aposta é aposta.

sábado, 30 de novembro de 2013

O Papel Picado

Na tarde de ontem, sexta-feira, 29 de novembro, uma viatura da polícia esteve aqui na frente do museu para retirar um casal de mendigos que estava dormindo debaixo da marquise. Eles dormem de dia porque de noite precisam ficar acordados e atentos para não serem violentados, queimados, roubados etc.
O guarda chegou falando alto e dizendo que eles tinham que sair logo. Deu-se uma pequena discussão entre a mulher e o policial, a partir de uma ameaça da autoridade quanto à demora na saída deles. Desta discussão o policial, dono da situação, disse que como castigo – como se os mendigos precisassem de mais castigo – iria apreender todas as roupas (trapos) e objetos deles, inclusive um papelão e um colchão, onde eles dormiam.
E assim fez. Enquanto os dois mendigos saíam em direção ao fim da rua, o guarda catou todos os pertences (?) deles e botou dentro da mala do carro da polícia e disse que era pra eles aprenderem a obedecer.
Para os que já estão indignados com este singelo fato eu alerto para preparar o estômago por que ainda tem mais: depois de tudo que ocorreu e que eu assisti estarrecido, pois havia presenciado um roubo praticado pela própria polícia sob a aprovação de todos que passavam, fiquei pensando em que tipo de pessoa chamaria a polícia pra fazer este tipo de “trabalho”.  Foi aí que me avisaram que foi o próprio MUSEU VICTOR MEIRELLES que o fez.
Não preciso dizer (ou preciso) que o nosso trabalho é em prol da educação, da inclusão social, da reflexão artística, social e política, etc etc etc...; que temos sociólogo, museólogo, antropólogo bem aqui à mão para dar as suas contribuições; que tem museus fazendo trabalhos excelentes justamente com moradores de rua; não, não preciso dizer isso pra enquadrar a minha indignação, junto com a nossa indigna nação, em algo que justifique uma ação inclassificável assim.
Ok, alguém poderá dizer que não é justo eles virem sujar aqui toda a rua do museu e a dona Alzira ter de limpar. E eu respondo: não é justo um monte de coisas. No rol das injustiças não é uma questão de a gente ver qual é a mais injusta. Vão dizer ainda que eles são drogados. Sim, mas os drogados são doentes, muito mais do que criminosos. E, ainda, digo eu, se os cachorros passam pela rua e sujam tudo aqui na frente? Aí a dona Alzira pode limpar? Na verdade o trabalho dela não inclui limpeza fora das dependências do museu. É só olhar no contrato da empresa. Ademais, podemos ainda conversar, discutir, decidir junto sobre este tipo de ação, mas nunca usar o expediente de se livrar, de espantar como se pudéssemos confundir, no nosso dia a dia, seres humanos com pombos, que a gente afugenta do nosso caminho.
Fiquei muito triste com o roubo que presenciei.  Mas fiquei ainda mais triste ao saber da autoria intelectual (?) do crime cometido.
Às vezes eu chego a acreditar que este museu ainda tem jeito, que vamos ter novamente prazer em trabalhar aqui. E cada vez que percebo um novo passo no sentido contrário disso, acho que algo ficou pelo caminho, algo não foi dito na transição de uma postura que já tivemos para esta que estamos começando a delimitar.
Cheguei aqui no museu hoje pela manhã. É um sábado chuvoso e eu vim substituir o Rafael no plantão. Em volta do museu um monte de papel picado cobria a rua, a esquina, a calçada. O aspecto era de pura sujeira, pois tinha papel por todo lado, uma sujeira diferente daquela que os mendigos deixam. Eram folhas de processos rasgadas, ofícios e outros documentos oficiais de um órgão público. No pedaço que eu recolhi tem um carimbo no alto. Nele pode-se ler Secretaria de Estado da Segurança Pública – Consultoria Jurídica. A Secretaria fica na própria Rua Victor Meirelles.
Um mendigo passou pela rua, ainda agora, no momento em que eu abria a porta. Ela falava sozinho, como sempre e, olhando em volta, eu escutei ele dizer: - Pô, que sujeira tá essa rua, irmão.
Pena que ele não pode chamar a polícia pra mandar prender o chefe da Secretaria de Segurança. Ou pode?

Abraços e bom final de semana (sem mendigos) a todos,


segunda-feira, 25 de novembro de 2013

O Cobrador

Assim que subi naquele ônibus o cobrador me disse “bom dia, jovem”. A princípio nem achei que era comigo. Depois pensei: será que esse cara me conhece de algum lugar? E no final, depois da surpresa do cumprimento, me apressei em responder: “Bom dia, amigo”.
Meu dia não tinha começado nada bom. As coisas não iam bem, nem em casa nem no trabalho e meu carro, que era a álcool, não havia dado a partida de jeito nenhum e eu tive que me aventurar num ônibus para ir para o Centro. Rio de Janeiro, Avenida Brasil, numa sexta-feira de calor, é certeza de ruas engarrafadas e trânsito cheio, chato e viagem modorrenta. Pois minha manhã começou assim.
Sentado nos últimos bancos, eu estava bem próximo do cobrador e pude ver todas as vezes que ele dava “bom dia” a cada passageiro e podia notar também a retribuição alegre da maioria, não sem antes perceber a cara de surpresa e a desconfiança de cada um antes de responder, exatamente como eu fiz. Ora era o “bom dia, madame”, ora um “Vai com Deus, amigo”. O repertório era grande e, na verdade, tinha umas pessoas que já o conheciam e, por isso mesmo, já entravam no ônibus falando com ele, desejando um bom dia de trabalho e até ensaiando uma conversa breve enquanto cruzava a roleta.
Diferentemente de hoje, naquele tempo os ônibus tinham a roleta na parte de trás do veículo, e não na frente, ficando o motorista e o cobrador bem longe um do outro. Acho que era por isso que de vez em quando o motorista dava uma olhada pelo retrovisor, pra ver se aquelas pessoas em volta da roleta representavam algum problema para a viagem. De lá ele via o cobrador rindo e as pessoas falando em volta dele e logo dava um sorrisinho também, balançando a cabeça, já sabendo que ali não tinha nada de errado.
Uma moça que acabara de entrar e sentou perto de mim, num certo momento perguntou com ar de intrigada:
- O senhor sabe que as pessoas estranham certas coisas, né? Eu mesmo achei esquisito o jeito que o senhor fala com as pessoas. Isso não é muito comum. Me diz, o senhor é sempre assim? Sempre fala com as pessoas assim, dando bom dia, no maior bom-humor?
A pergunta dela, em tom alto já que fora feita desde o banco em que estava sentada, me possibilitou acompanhar o diálogo que viria a seguir e eu tive a sensação de que todos ali já estavam esperando por aquilo, como se todos estivessem acostumados com o fato de a cada viagem aquele cobrador ter de responder a algo parecido.
Reservei toda a minha atenção para ouvir a resposta do cobrador, que começou com toda a simplicidade:
- Eu sempre fui assim. Minhas manhãs são de muito trabalho, atenção nos trocos, e esse horário, a hora do “rusti” é complicada mesmo. Mas eu tenho que tratar bem os passageiros. Eles acordam cedo, assim como eu, passam o dia no batente e os ônibus são ruins, o trânsito é ruim e o calor é muito. Não sei o que cada um passou mais cedo, os contratempos e adversidades. É por isso eu tento ser gentil e levantar o astral, dando bom dia, surpreendendo o pessoal com uma palavra de ânimo.
- Bacana da sua parte - respondeu um rapaz que, igual a mim, estava ligado na conversa.
E então o cobrador, que já era admirado por todos nós, arrematou:
- Agora, eu posso escolher entre passar por esta manhã de trabalho despercebido ou ser uma pessoa que vai ficar na lembrança dos passageiros como um cara gentil, que quer bem a todo mundo e que, acima de tudo, finge como ninguém que é um cara feliz.
E eu pensando no meu carro enguiçado, achando que era a coisa mais importante do mundo.
Saltei do ônibus e fui pro trabalho, na boa, com nada de peso nos ombros.
Enquanto descia as escadas ainda pude ouvir alguém, dentro do coletivo, assobiando uma música, bem conhecida, cuja letra diz:
- Dizem que sou louco por pensar assim.

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Lançamento do Livro Antes de Mim



Sexta-feira
dia 22 de novembro de 2013
às 18 horas
Livrarias Catarinense
Rua Felipe Schmidt, nº 60
Centro, Florianópolis.