Minha
tia Wanda, pode-se dizer, era uma mulher avançada para o seu tempo. Trabalhou muito
tempo na Cruzeiro do Sul, uma companhia aérea que já não existe mais. Lá, era comissária
de bordo, função que naquele tempo se chamava aeromoça.
Talvez
pelas experiências de viagens, por conhecer outros povos, outros modos de vida,
tinha uma postura de independência, o que, na época, devia incomodar muito
tanto homens quanto mulheres. Alguns de seus hábitos eram considerados
inadequados para as mulheres, como fumar e usar cabelos curtos, por exemplo,
mas ela não se importava com os olhares de censura.
Uma
cena que eu guardo na memória sobre a minha tia Wanda, que era também minha
madrinha, eu só fui entender muitos anos depois do acontecido. As imagens são
desassociadas dos diálogos que eu presenciei, até porque eu não entendi a real
situação que se desenrolava, enquanto ela acontecia.
Eu
tinha por volta dos 10 anos. Era início da década de 70. Eu estava na casa da
minha avó e minha mãe conversava com minha madrinha, as duas sentadas em volta
da mesa da cozinha. Alguma preocupação levava minha mãe a dizer que ela não
fosse a uma festa de calça comprida. Minha mãe dizia que seria ruim sentir
todos olhando pra ela, recriminando uma mulher de calça comprida, que fuma e
ainda por cima é desquitada. Mas minha tia argumentava que a calça era linda e
que ela gostava de usar e iria com ela, sim.
No
momento a conversa não fez sentido pra mim. Depois de uns anos, quando passei a
lembrar da cena, foi que passei a imaginar o que elas disseram no decorrer
daquela conversa. Minha tia deve ter dito a minha mãe que estava acostumada que
as pessoas desaprovassem o seu modo de vida, que o certo seria ela se comportar
como todas as demais, pois que quase tudo era proibido: ir à festa
com a roupa que se quer, fumar ou beber.
E
minha mãe deve ter pensado tão somente em evitar que minha tia fosse foco de
alguma censura, de julgamentos que, na verdade, podiam lhe trazer algum
inconveniente e que, mesmo com todo o direito, não valeria a pena
enfrentar. Na verdade, não é difícil supor tais alegações, pois são coisas bem
típicas, que a gente vê acontecer até hoje, embora não sejam mais em torno de
uma mulher fumar ou usar calça comprida.
Mas
pensar na festa da minha madrinha; pensar nela lá no salão, de calça comprida,
de cigarro na mão, me faz até sorrir das caras de desaprovação dos casais
honoráveis, dos quatrocentistas horrorizados com tamanha audácia de uma mulher.
Se
a gente pudesse pegar essas mesmas pessoas e hoje perguntar pra elas sobre o
seu comportamento diante da minha tia, elas talvez se envergonhassem ou se
achassem a mais ignorante dos seres e provavelmente diriam como eram atrasadas
e que não entendiam como podiam ter se incomodado tanto com uma mulher fumando
e usando calça comprida, coisa mais natural. Talvez hoje nem entendessem por
que raios aquilo as incomodou tanto.
Historicamente já fomos uma sociedade bem intransigente com mulheres diferentes. Mas será que somos assim, ainda hoje? O que diria sobre nós minha tia Wanda, se fosse viva?
Será que ela entenderia a sociedade “moderna” com tantos ou mais preconceitos,
igualzinho como no início dos anos 70? Eu teria vergonha de assistir ao jornal
da tevê ao lado dela: Pai e filho são espancados na Avenida Paulista porque uns
machões acharam que eles eram gays. O sequestrador na Austrália prega que sua religião é a verdadeira e o seu deus é o único. Mulheres são violentadas
e mortas por maridos e namorados todos os dias. Casais gays não podem casar nem adotar crianças. No mundo todo as polícias só matam negros e pobres. Os paladinos da família brasileira só defendem a família que não fuma, não bebe e nem usa calça comprida.
Então,
o que praticamos em pleno século 21, de tão atrasado, que só veremos daqui uns
40 anos? O preconceito vai da religião até a cor, a posse, a
origem, o gênero, o consumo, o partido político, a torcida, a música e por aí
vai. E todo mundo quer
mudar o mundo, mas ninguém quer começar a mudança por si próprio.
Minha
madrinha tentou resistir, quebrar as correntes. As correntes da sua época. Acho
que ela conseguiu - uma luta só dela. Mas o monstro da intolerância está maior
e mais perverso hoje. Fico pensando se um dia, no futuro, vamos olhar pra trás de novo e
vamos nos sentir ridículos por censurar uma mulher de calça comprida,
cigarro na mão e cabelo curto, nos idos de 2014.
Por
fim, da minha parte, não tive tempo de demonstrar à minha
madrinha o meu reconhecimento por toda a sua determinação. Mas, de um jeito
especial, espero estar fazendo isso agora.