terça-feira, 2 de dezembro de 2014

A Montanha Branca


Outro dia eu vi uma aglomeração de formigas bem no meio do chão da cozinha lá de casa. Me deparei com aquela cena e fiquei intrigado mesmo com a formação do grupo, todas elas organizadas, em círculo, e tudo enfim me pareceu muito estranho.
Foi então que ao me aproximar do tal círculo, apurei os ouvidos, os olhos míopes e fiquei bem quietinho, sentado no tapete, até que consegui ouvir o que elas conversavam. A princípio com alguma dificuldade, mas logo parecia que ficavam cada vez mais nítidos os diálogos delas.
Tinha uma que era bem maior que as outras, que bradava ao grupo que todas deveriam ter muito cuidado com a montanha branca, pois que de vez em quando a temperatura dela aumentava repentinamente, saía fogo por quatro vulcões e, nesse momento, todas deveriam dar um alerta para as outras e correr de volta ao nível do chão, ajudando e cuidando das mais lentas, para que não ficassem para trás.
Depois, outra formiga pediu a palavra e disse que além da cozinha, a sala também tinha muita comida, doce principalmente, e que todos deviam atentar para isso, de modo a planejar as comunicações e as ações de coleta durante a madrugada.
Uma terceira formiga então saiu de trás de mim, correndo, dando a volta no tapete e, numa disparada louca, irrompeu o círculo da assembleia aos gritos de “gente, gente!”. Explico aqui que gente é um eufemismo que eu uso, pois não acredito que elas se tratem por seus nomes animais. Na verdade, talvez ela gritasse para as outras algo como “formigas, formigas!” mas isso, definitivamente, não condiz.
Enfim, a tal da formiga soldado, ou vigia, entrou correndo e gritando no meio da assembleia e quando todos fizeram silêncio ela parou, olhou pro alto, por cima dos ombros e fez um sinal com o polegar, apontando pra mim. A sensação de todas as formigas olhando, juntas, de repente, na minha direção fez o meu coração tremer. Imaginei alguma ameaça, uma intenção má, algum enfrentamento tal da parte delas que me fez ficar imóvel por alguns longos instantes, o tempo suspenso no ar, todas elas me encarando.
Então eu gaguejei um pouco e disse pra elas que eu estava só olhando. Que eu nunca tinha visto uma reunião assim e que elas podiam ficar tranquilas que eu nunca mais ia acender a montanha branca sem antes verificar se tinha alguma delas em cima. Disse também que eu entendia a necessidade de elas juntarem alimento para o inverno e que os meus doces estavam à disposição, menos as Jujubas, claro, porque ficam dentro de um pote de vidro, no alto da estante, bem difícil e perigoso de escalar.
Em seguida elas, em silêncio total, abriram espaço organizadamente naquela aglomeração e surgiu uma formiga maior, postura altiva, de nome Jonas, o sociólogo, que veio ao centro da roda e disse para mim:
- Nós agradecemos a sua sensibilidade. Nossa sociedade é perene e jamais vai se extinguir, como a sua, e eu digo infelizmente, porque o homem é um ser valoroso para este planeta. Como o senhor sabe, nós somos divididos por rainhas, machos e operárias. Não temos ricos nem pobres. E sabemos nos ajudar. É um ensinamento secular esse nosso. Portanto, obrigado por sua compreensão.
O nobre Jonas deu então uma pequena tossida nas costas da mão e continuou solene:
- Só queria fazer uma última consideração, com todo o respeito. Eu tenho observado os seus hábitos e se o senhor me permite eu tenho um único e derradeiro conselho a lhe dar: Coma menos doce! – e nesse instante todas as formigas bateram em retirada, rápidas, gritando menos doce, menos doce, pra todos os lados, e gargalhando, até uivando, como os índios nos velhos filmes de bang-bang, numa agilidade tal que fez desaparecer o círculo em segundos e eu nem conseguia ver onde tantas delas tinham ido, assim tão rápido.
Paralisado, ali sentado no chão, sozinho, a sensação era de que elas estavam de algum modo me observando, em algum lugar, sem que eu pudesse vê-las. Eu, atônito, mal acreditava no que havia acontecido.
As vozes fininhas delas ainda ecoavam na minha cabeça, quando o telefone tocou na sala e me tirou daquele transe. Eu levantei autômato e fui atender. Enquanto eu falava, um pedaço de papel voou da mesa e, quando eu fui recolher, para minha surpresa total, me deparei com o meu vidro de jujubas, vazio, a tampa aberta, e todas as balas alinhadas na prateleira formando duas palavras: "Less Sugar”.
Toda noite quando eu acordo de madrugada, dou uma voltinha pela sala e pela cozinha, à procura de alguma formiga ou mesmo do Jonas, o sociólogo. Primeiro pra dizer que eu não tenho problemas com açúcar, que elas não precisam se preocupar. E depois para, quem sabe, perguntar se ele não quer bater um papinho sobre a raça humana em sua louca aventura por este planeta chamado Terra.
Depois do Jonas as minhas madrugadas nunca mais foram iguais.