quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

A Festa


Minha tia Wanda, pode-se dizer, era uma mulher avançada para o seu tempo. Trabalhou muito tempo na Cruzeiro do Sul, uma companhia aérea que já não existe mais. Lá, era comissária de bordo, função que naquele tempo se chamava aeromoça.
Talvez pelas experiências de viagens, por conhecer outros povos, outros modos de vida, tinha uma postura de independência, o que, na época, devia incomodar muito tanto homens quanto mulheres. Alguns de seus hábitos eram considerados inadequados para as mulheres, como fumar e usar cabelos curtos, por exemplo, mas ela não se importava com os olhares de censura.
Uma cena que eu guardo na memória sobre a minha tia Wanda, que era também minha madrinha, eu só fui entender muitos anos depois do acontecido. As imagens são desassociadas dos diálogos que eu presenciei, até porque eu não entendi a real situação que se desenrolava, enquanto ela acontecia.
Eu tinha por volta dos 10 anos. Era início da década de 70. Eu estava na casa da minha avó e minha mãe conversava com minha madrinha, as duas sentadas em volta da mesa da cozinha. Alguma preocupação levava minha mãe a dizer que ela não fosse a uma festa de calça comprida. Minha mãe dizia que seria ruim sentir todos olhando pra ela, recriminando uma mulher de calça comprida, que fuma e ainda por cima é desquitada. Mas minha tia argumentava que a calça era linda e que ela gostava de usar e iria com ela, sim.
No momento a conversa não fez sentido pra mim. Depois de uns anos, quando passei a lembrar da cena, foi que passei a imaginar o que elas disseram no decorrer daquela conversa. Minha tia deve ter dito a minha mãe que estava acostumada que as pessoas desaprovassem o seu modo de vida, que o certo seria ela se comportar como todas as demais, pois que quase tudo era proibido: ir à festa com a roupa que se quer, fumar ou beber.
E minha mãe deve ter pensado tão somente em evitar que minha tia fosse foco de alguma censura, de julgamentos que, na verdade, podiam lhe trazer algum inconveniente e que, mesmo com todo o direito, não valeria a pena enfrentar. Na verdade, não é difícil supor tais alegações, pois são coisas bem típicas, que a gente vê acontecer até hoje, embora não sejam mais em torno de uma mulher fumar ou usar calça comprida.
Mas pensar na festa da minha madrinha; pensar nela lá no salão, de calça comprida, de cigarro na mão, me faz até sorrir das caras de desaprovação dos casais honoráveis, dos quatrocentistas horrorizados com tamanha audácia de uma mulher.
Se a gente pudesse pegar essas mesmas pessoas e hoje perguntar pra elas sobre o seu comportamento diante da minha tia, elas talvez se envergonhassem ou se achassem a mais ignorante dos seres e provavelmente diriam como eram atrasadas e que não entendiam como podiam ter se incomodado tanto com uma mulher fumando e usando calça comprida, coisa mais natural. Talvez hoje nem entendessem por que raios aquilo as incomodou tanto.
Historicamente já fomos uma sociedade bem intransigente com mulheres diferentes. Mas será que somos assim, ainda hoje? O que diria sobre nós minha tia Wanda, se fosse viva? Será que ela entenderia a sociedade “moderna” com tantos ou mais preconceitos, igualzinho como no início dos anos 70? Eu teria vergonha de assistir ao jornal da tevê ao lado dela: Pai e filho são espancados na Avenida Paulista porque uns machões acharam que eles eram gays. O sequestrador na Austrália prega que sua religião é a verdadeira e o seu deus é o único. Mulheres são violentadas e mortas por maridos e namorados todos os dias. Casais gays não podem casar nem adotar crianças. No mundo todo as polícias só matam negros e pobres. Os paladinos da família brasileira só defendem a família que não fuma, não bebe e nem usa calça comprida.
Então, o que praticamos em pleno século 21, de tão atrasado, que só veremos daqui uns 40 anos? O preconceito vai da religião até a cor, a posse, a origem, o gênero, o consumo, o partido político, a torcida, a música e por aí vai. E todo mundo quer mudar o mundo, mas ninguém quer começar a mudança por si próprio.
Minha madrinha tentou resistir, quebrar as correntes. As correntes da sua época. Acho que ela conseguiu - uma luta só dela. Mas o monstro da intolerância está maior e mais perverso hoje. Fico pensando se um dia, no futuro, vamos olhar pra trás de novo e vamos nos sentir ridículos por censurar uma mulher de calça comprida, cigarro na mão e cabelo curto, nos idos de 2014.
Por fim, da minha parte, não tive tempo de demonstrar à minha madrinha o meu reconhecimento por toda a sua determinação. Mas, de um jeito especial, espero estar fazendo isso agora.