segunda-feira, 14 de julho de 2014

O Menino no Barbeiro


A primeira coisa que me chamou a atenção quando eu entrei no Salão do Renato foi o menino que estava cortando o cabelo, na cadeira da direita. Não era mais um menino, é verdade, pois que devia ter uns 14 anos, mas o seu jeito tímido ainda o deixava com uma aparência infantil. Eu sentei no banco de espera bem na direção da cadeira do barbeiro em que ele estava e dali ainda ficou mais evidente o que me chamou a atenção logo na minha entrada no salão, ou seja, a sua enorme cabeleira.
Era um cabelo tão alto e espesso, bem volumoso e cheio de cachos que eu desviava o olhar quando notava que ele me via mirando fixo para aquela forma negra que contrastava com a cor da sua pele, bem branca, ajudada por sua roupa também toda negra. Não sei o que estes meninos gostam tanto de se vestir de preto. Será que não enjoam de sempre andarem assim?
O Renato estava se preparando pra começar o corte do garoto e eu, ali numa posição privilegiada, podia ver a sua dúvida e sua hesitação. O grande espelho da parede inclusive fazia com que nós três cruzássemos os olhares várias vezes. Vinha um certo constrangimento mas, no segundo seguinte ele dava lugar às minhas dúvidas de como o barbeiro faria aquele trabalho, uma verdadeira aventura por uma juba, irremediavelmente sem perspectiva de ser vencida.
Minha vontade era perguntar ao menino como ele tinha deixado aquele cabelo ficar daquele jeito. Pensei também em perguntar várias coisas sobre o pai e a mãe dele, como ele dormia, tomava banho e cuidava daquela juba imensa. Claro, pentear era uma tarefa com que ele não se preocupava e isso dava pra ver de cara. E depois, ainda queria perguntar ao Renato como ele ia conseguir encarar aquilo, deixar tudo da maneira certa e fazer com que o corte ficasse ao gosto do freguês que, naturalmente tem sempre razão, mesmo quando se trata de toda aquela lã animal em cima da cabeça.
Eu sei é que o Renato começou a aparar, deslizar a sua tesoura pelas pontas, molhar em algumas partes e esticar em outras. Ia virando o menino na cadeira, mirando o ângulo pelo espelho e eu comecei a perceber que o menino me olhava, talvez querendo saber a minha impressão ante o embate envolvendo aquela tesoura, que estalava sempre que era fechada. Notei também que de dentro daquela cabeleira ia surgindo um rosto, agora com formas definidas e que antes estavam limitadas por uma moldura negra e sem forma.
Mais alguns instantes e, pronto, lá estava o Renato com uma vassourinha na mão, tirando o resto de cabelo dos ombros do cliente e sacudindo alguns panos à sua volta. O menino então se levantou, passou a mão pelo cabelo, se virou no espelho para um lado e depois pro outro e pareceu gostar do resultado. Junto com o Renato foi até o balcão e depois que pagou pelo serviço foi vestir o casaco, que estava pendurado no fundo do salão.
Ao sinal do Renato, indicando que era a minha vez, eu fui logo me sentar na cadeira em frente ao espelho. O menino então ainda arrumando o casaco e passando por trás do barbeiro parou e me disse:
- Eu estava aqui só pensando em como o Renato vai cortar o seu cabelo. Deve ser difícil pra ele cortar um cabelo assim, baixinho, com umas partes carecas. Enquanto eu estava ali cortando o meu só pensava em ficar aqui pra ver como ele vai cortar o seu. Seu cabelo é muito estranho!
E eu achando que o dele que era estranho.
No fim eu, ali sentado, estava o tempo todo pensando o mesmo que ele, só que em sentido oposto.
Porque para nós é sempre assim, o cabelo do outro que é obviamente estranho, mal arrumado e difícil de cortar.
O nosso não, oras!

quinta-feira, 3 de julho de 2014

O Sebo do Alexandre


Desde que comecei a aprender violão com o meu amigo e também pescador Manoel Caruncho, lá da Ilha do Governador, eu sempre comprei revistas de cifras, que traziam as letras das músicas com os acordes para violão e era uma ótima opção pra muita gente que queria aprender a tocar, principalmente considerando que era uma época que não tinha computador nem internet. Sim, houve uma época em que não existia computador!
Eu passava na banca de jornais e ficava ali olhando quais as músicas que as revistas traziam e escolhia a que eu iria levar, optando pelas músicas que pareciam mais complicadas de tirar sozinho, que é um método onde a gente descobre os acordes apenas ouvindo as canções.
O tempo foi passando e eu não só deixei de comprar as tais revistas, pois passei a achar as cifras na internet, como fui migrando as músicas daquelas publicações para o computador, aliás, coisa que eu já fazia com as novas canções que tirava de ouvido.
Pois então, o um belo dia eu não tinha mais espaço em casa e pensei o que faria com aquelas revistas. Pensei em doar pra alguém que estivesse começando a aprender violão ou para alguma escola de música, uma biblioteca, sei lá, mas sempre terminava por avaliar que com a facilidade da internet ninguém mais daria importância àquelas revistas ultrapassadas.
Foi aí que me lembrei do sebo do Alexandre, que fica pertinho do museu onde eu trabalho, e pensei que ali elas poderiam ter algum uso para algum garoto aprendiz que, folheando nas prateleiras, encontrasse alguma música que gostasse. Era isso. O sebo do Alexandre, resolvi.
Muito atencioso, o Alexandre me disse que aceitava ficar com elas, mas que era preciso avaliar o quanto me pagaria, me pegando de surpresa em uma negociação que até então, para mim, era somente uma doação, uma filantropia em prol da música e do aprendizado do violão. Mas assim foi. Eu deixei no sebo um saco grande com todas as revistas dentro e ele ficou de me dizer depois quanto me pagaria por elas.
No mesmo instante que eu saí da loja me peguei imaginando as revistas na prateleira e me deu um início de arrependimento. E eu pensei que devia ser coisa do meu apego, da minha afinidade com elas desde os tempos dos primeiros acordes e, enfim, não dei muita importância ao fato.
Passou um tempo, uns quinze dias, e deu-se o caso. Eu acordei pensando em uma música do Ivan Lins que não tocava há muito tempo. Revirei todo o computador e nada. As músicas impressas, nada. As cópias xerox antigas que eu tinha, idem. Fui na internet, nos sites de cifras, no site do Ivan Lins, em sites de partitura e, pronto, me veio à cabeça, direto, a imagem da página exata da minha revista que tinha essa música. Um frio me correu a espinha.
Quem sabe eu vou lá no Alexandre e peço emprestada a revista pra tirar uma xerox da música, pensei. Quem sabe ele até já vendeu as revistas todas ou mesmo só aquela com a música que eu quero. Aí, ferrou tudo mesmo. Mas, não tem jeito, tenho que ir lá falar com ele. Nesse pensar me lembrei de uma outra música, do Gil, que eu tenho com um arranjo não muito bom e que em uma das revistas, eu lembro que era bem melhor, tirada certinha, conforme a gravação.
No caminho de casa até o Sebo do Alexandre minha aflição só aumentava. Aumentava na mesma medida em que eu lembrava de outras músicas, de outras cifras, das imagens das páginas exatas em que elas estavam. Eu já visualizava até as propagandas de instrumentos musicais que as revistas traziam ao lado das cifras.
Entrei no sebo e fui logo explicando, meio atrapalhado, que queria tirar só uma xerox de uma música. O Alexandre então disse que as revistas estavam ainda no mesmo saco que eu tinha deixado e que não tinha qualquer resposta do seu patrão quanto ao valor a ser pago. E diante da minha visível aflição ele arrematou:
- Olha, se você quiser levar e olhar as músicas que você quer copiar, pode levar. Aliás, se você quiser fazer uma triagem e ver realmente as que você ainda precisa, faça isso e depois me traz somente as que você quiser mesmo vender. E, claro, se você quiser desistir de vender também fique à vontade, pois, como elas nem deram entrada na contabilidade da loja ainda são, legalmente, suas.
Neste exato momento eu descobri o quanto amava aquelas revistas. O quanto eu queria ficar com todas elas e o quanto eu me arrependi de tê-las levado para o sebo. Não eram só simples revistas. Eram revistas de música, das músicas antigas que eu aprendi a tocar, que o Manoel Caruncho tocou junto, que meu irmão tocou, que meus filhos ganharam cópias de muitas das suas páginas e que enfim eu era mesmo um doido varrido de ter dado este fim cruel para elas.
- Então, Alexandre, eu acho que vou aceitar a sua oferta e vou levar todas as revistas de volta pra casa. Tudo bem pra você?
- Claro, pode levar. Destes até sorte, porque eu devia ter levado todas elas pra nossa outra loja e acabei não levando. Então é porque elas deviam mesmo ficar com você.
Depois de agradecer demais ao Alexandre e dar-lhe um abraço, saí do sebo com o meu saco de revistas e levei orgulhosamente pra casa. Como quem guarda um tesouro, de vez em quando eu abro a caixa onde elas moram agora e fico ali olhando pra elas, folheando, tocando alguma música antiga, vendo os velhos anúncios, as velhas músicas e cifras e cada vez gosto mais delas.
Ao Alexandre do Sebo um obrigado do tamanho do mundo, pois nem consigo imaginar o quanto ia lamentar por não ter mais as minhas velhas revistas de violão.
A gente perde muitas coisas nesta vida. É muito bom poder recuperar algumas delas de vez em quando.
Esta lição eu aprendi.