Desde
que comecei a aprender violão com o meu amigo e também pescador Manoel Caruncho,
lá da Ilha do Governador, eu sempre comprei revistas de cifras, que traziam as
letras das músicas com os acordes para violão e era uma ótima opção pra muita
gente que queria aprender a tocar, principalmente considerando que era uma
época que não tinha computador nem internet. Sim, houve uma época em que não
existia computador!
Eu passava
na banca de jornais e ficava ali olhando quais as músicas que as revistas
traziam e escolhia a que eu iria levar, optando pelas músicas que pareciam mais
complicadas de tirar sozinho, que é um método onde a gente descobre os acordes apenas
ouvindo as canções.
O tempo
foi passando e eu não só deixei de comprar as tais revistas, pois passei a
achar as cifras na internet, como fui migrando as músicas daquelas publicações
para o computador, aliás, coisa que eu já fazia com as novas canções que tirava
de ouvido.
Pois
então, o um belo dia eu não tinha mais espaço em casa e pensei o que faria com
aquelas revistas. Pensei em doar pra alguém que estivesse começando a aprender
violão ou para alguma escola de música, uma biblioteca, sei lá, mas sempre terminava
por avaliar que com a facilidade da internet ninguém mais daria importância
àquelas revistas ultrapassadas.
Foi
aí que me lembrei do sebo do Alexandre, que fica pertinho do museu onde eu
trabalho, e pensei que ali elas poderiam ter algum uso para algum garoto
aprendiz que, folheando nas prateleiras, encontrasse alguma música que gostasse.
Era isso. O sebo do Alexandre, resolvi.
Muito
atencioso, o Alexandre me disse que aceitava ficar com elas, mas que era
preciso avaliar o quanto me pagaria, me pegando de surpresa em uma negociação
que até então, para mim, era somente uma doação, uma filantropia em prol da música
e do aprendizado do violão. Mas assim foi. Eu deixei no sebo um saco grande com
todas as revistas dentro e ele ficou de me dizer depois quanto me pagaria por
elas.
No
mesmo instante que eu saí da loja me peguei imaginando as revistas na
prateleira e me deu um início de arrependimento. E eu pensei que devia ser
coisa do meu apego, da minha afinidade com elas desde os tempos dos primeiros
acordes e, enfim, não dei muita importância ao fato.
Passou
um tempo, uns quinze dias, e deu-se o caso. Eu acordei pensando em uma música
do Ivan Lins que não tocava há muito tempo. Revirei todo o computador e nada.
As músicas impressas, nada. As cópias xerox antigas que eu tinha, idem. Fui na
internet, nos sites de cifras, no site do Ivan Lins, em sites de partitura e,
pronto, me veio à cabeça, direto, a imagem da página exata da minha revista que
tinha essa música. Um frio me correu a espinha.
Quem
sabe eu vou lá no Alexandre e peço emprestada a revista pra tirar uma xerox da
música, pensei. Quem sabe ele até já vendeu as revistas todas ou mesmo só
aquela com a música que eu quero. Aí, ferrou tudo mesmo. Mas, não tem jeito,
tenho que ir lá falar com ele. Nesse pensar me lembrei de uma outra música, do
Gil, que eu tenho com um arranjo não muito bom e que em uma das revistas, eu
lembro que era bem melhor, tirada certinha, conforme a gravação.
No
caminho de casa até o Sebo do Alexandre minha aflição só aumentava. Aumentava
na mesma medida em que eu lembrava de outras músicas, de outras cifras, das
imagens das páginas exatas em que elas estavam. Eu já visualizava até as
propagandas de instrumentos musicais que as revistas traziam ao lado das
cifras.
Entrei
no sebo e fui logo explicando, meio atrapalhado, que queria tirar só uma xerox
de uma música. O Alexandre então disse que as revistas estavam ainda no mesmo
saco que eu tinha deixado e que não tinha qualquer resposta do seu patrão
quanto ao valor a ser pago. E diante da minha visível aflição ele arrematou:
- Olha,
se você quiser levar e olhar as músicas que você quer copiar, pode levar.
Aliás, se você quiser fazer uma triagem e ver realmente as que você ainda
precisa, faça isso e depois me traz somente as que você quiser mesmo vender. E,
claro, se você quiser desistir de vender também fique à vontade, pois, como elas
nem deram entrada na contabilidade da loja ainda são, legalmente, suas.
Neste
exato momento eu descobri o quanto amava aquelas revistas. O quanto eu queria
ficar com todas elas e o quanto eu me arrependi de tê-las levado para o sebo.
Não eram só simples revistas. Eram revistas de música, das músicas antigas que
eu aprendi a tocar, que o Manoel Caruncho tocou junto, que meu irmão tocou, que
meus filhos ganharam cópias de muitas das suas páginas e que enfim eu era mesmo
um doido varrido de ter dado este fim cruel para elas.
-
Então, Alexandre, eu acho que vou aceitar a sua oferta e vou levar todas as
revistas de volta pra casa. Tudo bem pra você?
-
Claro, pode levar. Destes até sorte, porque eu devia ter levado todas elas pra nossa
outra loja e acabei não levando. Então é porque elas deviam mesmo ficar com você.
Depois
de agradecer demais ao Alexandre e dar-lhe um abraço, saí do sebo com o meu
saco de revistas e levei orgulhosamente pra casa. Como quem guarda um tesouro,
de vez em quando eu abro a caixa onde elas moram agora e fico ali olhando pra
elas, folheando, tocando alguma música antiga, vendo os velhos anúncios, as
velhas músicas e cifras e cada vez gosto mais delas.
Ao Alexandre
do Sebo um obrigado do tamanho do mundo, pois nem consigo imaginar o quanto ia
lamentar por não ter mais as minhas velhas revistas de violão.
A
gente perde muitas coisas nesta vida. É muito bom poder recuperar algumas delas
de vez em quando.
Esta
lição eu aprendi.