sexta-feira, 22 de agosto de 2014

O Motorista de Táxi


A chegada aos aeroportos do Rio de Janeiro é sempre confusa. Da fila das bagagens, ainda dentro da área restrita, até a fila do táxi tudo gera em mim, e acho que em muitas pessoas, uma sensação de ansiedade e de aflição que nos faz querer, o mais rápido possível, sair daquele cenário de caos.
Só que quando a gente acha que está livre, finalmente em calma, vem o trânsito completamente caótico da cidade maravilhosa a nos demonstrar que todas as alterações de sentidos das ruas, os sinais em harmoniosa dessincronização, a quantidade de guardas de trânsito apitando em pleno engarrafamento, tudo aquilo existe para o simples propósito de deixar a sua vida uma completa mixórdia.
Outro dia eu estava no aeroporto, numa dessas situações. Trazia eu apenas uma mochila e tentava descobrir onde encontrar um atalho para que eu pudesse, em poucos minutos, estar a salvo dentro de um táxi. De repente, saindo da área onde ficam as filas, notei que um táxi acabava de deixar um passageiro, coisa rara, pois ali era uma área de desembarque e a maioria dos táxis deixavam as pessoas do outro lado, no embarque, com o propósito de irem viajar. Bem, de qualquer modo eu perguntei ao motorista se ele poderia me levar, ele assentiu e eu entrei no carro.
De pronto eu notei que ele não tinha rádio comunicador, aquele aparelho que o liga a uma central e que a todo momento a gente escuta uma voz chamando para pegar passageiros variados, em locais idem. Que bom, pensei, aquilo é um estresse. E no silêncio daquela corrida eu pude até ouvir a boa música que tocava.
O trânsito não estava de todo ruim e o motorista pareceu gostar de eu não estar indo para o Centro e sim para o subúrbio, onde mora a minha mãe. Considerando que o trânsito lá para aquelas bandas é mesmo estressante, eu puxei a conversa:
– Se fosse pro Centro seria bem mais complicado, né?
– Olha, a gente não pode escolher passageiro e nem a corrida. Mas realmente eu não gosto de ir pro Centro mesmo. As pessoas, os motoristas sabem o que vão encontrar lá, mas mesmo assim se estressam, se xingam, uns fecham a passagem dos outros, uma loucura. Quando posso eu prefiro nem passar por lá.
O papo então transitou pela necessidade das grandes obras pelas quais o Rio está passando, desde a Copa até as Olimpíadas, em 2016, e tudo que estes planejamentos não planejados estão causando no dia a dia da cidade: um cotidiano insano, uma fábrica de loucos em larga escala.
Foi então que o motorista, um ator obrigatório e totalmente envolvido no caos daquela cidade grande, me confidenciou algumas de suas estratégias para não ser levado à máquina maldita que compromete o juízo de quase todos os cariocas.
– O sr. sabe que eu tenho as minhas opções. A gente tem que se preservar, né? Por exemplo, eu digo ao sr. que eu não trabalho às segundas-feiras. O caos é total, as pessoas estão sempre apressadas, atrasadas e aí, o trânsito enrolado, sobra pro motorista. Eu notei isso e resolvi que não trabalho mais às segundas.
Eu comecei a me lembrar de quando morava no Rio, de como era difícil atravessar a Avenida Brasil às segundas-feiras e como realmente eu sempre chegava atrasado e mal-humorado ao trabalho nesses dias. Pensei que se eu pudesse fazer como ele, optaria por não estar no caos das segundas-feiras, da mesma forma, e custei a entender que o caso não era só em relação àquele dia, pois eu estava na verdade diante de um filósofo do cotidiano, um pensador, um cara zen, experiente e equilibrado, um sábio da modernidade.
– Se eu posso evitar algo que me prejudica, eu faço – começou ele. Se tem uma coisa que eu sei que me aborrece, que me incomoda, eu evito aquilo. Se tem colegas da praça que dirigem com violência, desafiando os espaços nas ruas, eu nem entro nessa, dou passagem na boa e ainda digo Amém. A gente tem de procurar coisas positivas, coisas boas. O diabo dá as ruins. Então, eu evito me estressar antes que isso se torne algo inevitável. Eu saio antes de acontecer. Seja por caminhos melhores aqui ao volante, seja por gestos fraternos com os passageiros, seja pela paciência com os familiares, filhos e colegas de trabalho. Até ao ponto de trabalhar sábado, simplesmente pra evitar a maldição da segunda-feira. E depois de trabalhar, ainda vou com a minha senhora ao supermercado. Levo a minha cervejinha pra casa e tomo com ela, enquanto sai um feijão “exxperto”.
Esperto é aquele que diz que os cariocas são um povo feliz, que sabe viver. Eu conheci um carioca assim. Numa bela tarde de quinta-feira.

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

A Janela


Minha tia Iracema nos deixou há algumas semanas. Era a mais nova dos cinco irmãos da minha mãe e, dentre os tios, aquela com quem eu mais convivi. Eu estive recentemente no Rio de Janeiro, na metade do mês de julho, e uma das minhas intenções era visitá-la, pois todos sabíamos que estava muito doente. Mas não deu tempo.
Nas minhas lembranças de menino moram muitas passagens suas, todas ótimas, impulsivas e sensíveis, a começar pela sorte que tive de ter a minha tia Iracema como minha primeira professora. Ela dava aulas particulares em casa para uma pequena turma e eu ficava ali por perto, sentado à mesa junto com os alunos e já começava a desenhar as primeiras letras e os números, imitando os colegas.
Foi graças a minha tia que, a partir dos meus cinco anos, a professora da escola primária me pulou de ano duas vezes. Assim, eu fiz o primeiro ano, depois pulei para o terceiro e mais tarde pulei a sexta série, indo pro ginasial com a ventura de ser o mais novo da turma. Por um lado foi ótimo aquele sentimento de ser quase um gênio, já que era precoce, com dois anos a menos que todos.  Mas com as meninas aquilo era, naturalmente, trágico.
Mas lembro que uma vez teve uma festa lá em casa. Era aniversário da minha prima Teresa, eu acho, e por ser pleno verão as pessoas, os amigos do bairro, ficavam brincando até tarde na rua e dormiam também muito tarde. Em dia de festa então isso era, realmente, uma festa!  Havia ainda um primo da gente, da nossa idade, que não era muito próximo da família, mas que estava passando uns dias lá em casa também. 
Eu tinha então uns 10 anos e a garotada da rua estava toda brincando na calçada, todo mundo de férias da escola. Aquilo parecia até uma colônia de férias, na verdade. Uma dada hora minha mãe veio dizer pra mim, meu irmão e meu primo que a gente podia ficar lá fora, que não tinha problema, mas que cuidasse pra não fazer muito barulho quando fosse dormir porque alguns convidados da festa tinham pernoitado em nossa casa e, por isso, tinha gente dormindo na sala, no quarto do meu avô, que trabalhava de noite, e que o menor barulho nosso poderia incomodar a todos.
Claro, a gente jurou que não ia fazer barulho e ficou até tarde lá fora brincando. Um pouco mais tarde todos os amigos se foram e a gente também entrou pra ir dormir. Nessa hora deu uma fome de cão em nós três. A gente estava quase chegando na cozinha quando minha mãe nos surpreendeu, e repreendeu, dizendo que não podíamos fazer barulho de jeito nenhum, que a gente comesse um biscoito lá mesmo no quarto só pra espantar a fome e amanhã tomaríamos um café reforçado.
Na verdade, o biscoito só fez aumentar a nossa fome. Mas fazer o quê? Na inquietação típica dos meninos em férias a gente passou então a planejar o dia seguinte, se ia ter futebol na rua, se a gente ia andar de bicicleta, jogar pingue-pongue, isso tudo esperando o sono chegar.
De repente alguém bateu na nossa janela, que dava para uma área coberta nos fundos da casa, junto da cozinha. A gente se entreolhou automático e foi junto abrir. Simplesmente do outro lado estava a minha tia Iracema. Ela trazia na mão uma bandeja grande com três enormes sanduíches de queijo e presunto e mais três copos de leite com chocolate. Surgiu no parapeito fazendo o sinal típico de silêncio, com o dedo em riste na frente da boca e dava pra ver também, por trás do dedo esticado, o seu sorriso e seus olhos azuis, que brilharam ainda mais com a nossa satisfação.
Quando trouxemos a bandeja pra dentro do quarto ela nos disse baixinho:
– Olha, não façam barulho. Depois de comer deixem a bandeja aí dentro do quarto mesmo que amanhã eu pego. Boa noite pra vocês – e retornou, até sumir no escuro da cozinha.
Posso dizer que aquele sanduíche caiu do céu, naquela noite. E eu lembrei imediatamente daquela cena quando minha mãe me telefonou falando do passamento da minha tia Iracema. Me lembro tão bem de tudo aquilo que, inclusive, tenho a certeza de que nunca a agradeci pelo sanduíche que veio do céu naquela noite.
Mas ela sabe. Agora ela sabe de tudo.
Tia Iracema, receba um grande beijo. O meu beijo agradecido.
Muita paz.