Minha
tia Iracema nos deixou há algumas semanas. Era a mais nova dos cinco irmãos da minha
mãe e, dentre os tios, aquela com quem eu mais convivi. Eu estive recentemente no
Rio de Janeiro, na metade do mês de julho, e uma das minhas intenções era visitá-la,
pois todos sabíamos que estava muito doente. Mas não deu tempo.
Nas
minhas lembranças de menino moram muitas passagens suas, todas ótimas, impulsivas
e sensíveis, a começar pela sorte que tive de ter a minha tia Iracema como
minha primeira professora. Ela dava aulas particulares em casa para uma pequena
turma e eu ficava ali por perto, sentado à mesa junto com os alunos e já
começava a desenhar as primeiras letras e os números, imitando os colegas.
Foi
graças a minha tia que, a partir dos meus cinco anos, a professora da escola primária
me pulou de ano duas vezes. Assim, eu fiz o primeiro ano, depois pulei para o
terceiro e mais tarde pulei a sexta série, indo pro ginasial com a ventura de
ser o mais novo da turma. Por um lado foi ótimo aquele sentimento de ser quase
um gênio, já que era precoce, com dois anos a menos que todos. Mas com as meninas aquilo era, naturalmente,
trágico.
Mas
lembro que uma vez teve uma festa lá em casa. Era aniversário da minha prima
Teresa, eu acho, e por ser pleno verão as pessoas, os amigos do bairro, ficavam
brincando até tarde na rua e dormiam também muito tarde. Em dia de festa então
isso era, realmente, uma festa! Havia
ainda um primo da gente, da nossa idade, que não era muito próximo da família,
mas que estava passando uns dias lá em casa também.
Eu
tinha então uns 10 anos e a garotada da rua estava toda brincando na calçada,
todo mundo de férias da escola. Aquilo parecia até uma colônia de férias, na
verdade. Uma dada hora minha mãe veio dizer pra mim, meu irmão e meu primo que
a gente podia ficar lá fora, que não tinha problema, mas que cuidasse pra não
fazer muito barulho quando fosse dormir porque alguns convidados da festa
tinham pernoitado em nossa casa e, por isso, tinha gente dormindo na sala, no
quarto do meu avô, que trabalhava de noite, e que o menor barulho nosso poderia
incomodar a todos.
Claro,
a gente jurou que não ia fazer barulho e ficou até tarde lá fora brincando. Um
pouco mais tarde todos os amigos se foram e a gente também entrou pra ir dormir.
Nessa hora deu uma fome de cão em nós três. A gente estava quase chegando na
cozinha quando minha mãe nos surpreendeu, e repreendeu, dizendo que não
podíamos fazer barulho de jeito nenhum, que a gente comesse um biscoito lá
mesmo no quarto só pra espantar a fome e amanhã tomaríamos um café reforçado.
Na
verdade, o biscoito só fez aumentar a nossa fome. Mas fazer o quê? Na inquietação
típica dos meninos em férias a gente passou então a planejar o dia seguinte, se
ia ter futebol na rua, se a gente ia andar de bicicleta, jogar pingue-pongue,
isso tudo esperando o sono chegar.
De
repente alguém bateu na nossa janela, que dava para uma área coberta nos fundos
da casa, junto da cozinha. A gente se entreolhou automático e foi junto abrir. Simplesmente
do outro lado estava a minha tia Iracema. Ela trazia na mão uma bandeja grande
com três enormes sanduíches de queijo e presunto e mais três copos de leite com
chocolate. Surgiu no parapeito fazendo o sinal típico de silêncio, com o dedo em
riste na frente da boca e dava pra ver também, por trás do dedo esticado, o seu
sorriso e seus olhos azuis, que brilharam ainda mais com a nossa satisfação.
Quando
trouxemos a bandeja pra dentro do quarto ela nos disse baixinho:
– Olha,
não façam barulho. Depois de comer deixem a bandeja aí dentro do quarto mesmo que
amanhã eu pego. Boa noite pra vocês – e retornou, até sumir no escuro da
cozinha.
Posso
dizer que aquele sanduíche caiu do céu, naquela noite. E eu lembrei imediatamente
daquela cena quando minha mãe me telefonou falando do passamento da minha tia
Iracema. Me lembro tão bem de tudo aquilo que, inclusive, tenho a certeza de
que nunca a agradeci pelo sanduíche que veio do céu naquela noite.
Mas
ela sabe. Agora ela sabe de tudo.
Tia
Iracema, receba um grande beijo. O meu beijo agradecido.
Muita
paz.