terça-feira, 31 de março de 2015

O Despachante


Há vários tipos de despachantes. Todos se diferenciam pelo local onde atuam, a especialidade do seu trabalho, mas todos possuem uma mesma característica: são muito insistentes. Este a quem eu me refiro ficava andando na fila do passaporte da Polícia Federal, em plena Praça Mauá, Centro do Rio de Janeiro.
Tirar passaporte nos anos 90 não era uma tarefa muito fácil, pois tinha um formulário bem chatinho de entender, com os campos e espaços não muito adequados o que deixava todo mundo aflito pra não preencher errado ou não esquecer algum documento na hora de ser atendido no balcão da PF.
Eu estava na fila com o meu filho. Na verdade eram duas filas: uma dentro e outra fora do prédio. A de dentro era abrigada e tal, ar-condicionado. Já a segunda era na calçada mesmo, no sol ou na chuva, e rodeava o prédio desde a porta de entrada até dobrar a esquina.
Ali naquele espaço os despachantes eram os donos do pedaço. Ficavam circulando entre as pessoas perguntando se queriam os seus serviços, pois eles sabiam de cor todos os documentos e os erros comuns de preenchimento. Justamente porque sabiam tudo insistiam exaustivamente, avisando que a PF só aceitava a foto do tamanho xis, que a assinatura do formulário tinha que ser feita na frente da atendente, que a certidão dos menores tinha que ser autenticada e mais um monte de coisas que a gente ficava com a certeza de que algo ia dar errado na nossa vez, caso não contratássemos os seus serviços.
A todo tempo esse despachante, acho que Jorge era o seu nome, repetia a mesma coisa:
- Eu estou aqui pra ajudar o patrãozinho – dizia em alto e bom som.
E todo mundo ficava de cara amarrada na fila, com aquele sujeito agourando o nosso atendimento.
Eu nem olhava pra ele, pra não dar motivo sequer de ele falar comigo. Ficava revisando mentalmente o que eu tinha em mãos, os documentos e fotos, certo de que tudo correria bem. E assim foi. Na nossa vez, entregamos tudo certinho e o sujeito disse que no dia tal era só passar pra pegar e nos deu um protocolo. Legal. Na saída lá estava o despachante e nos perguntou se tinha dado tudo certo. O que eu respondi um tanto emburrado, dizendo que a gente não precisava de despachante algum.
No dia marcado pra buscar o passaporte eu fui sozinho, pois que não era necessário meu filho ir junto. Não me lembro a razão, mas eu não estava trabalhando naquele dia e estava bem tranquilo com o horário e relaxado, até porque o meu roteiro ali era bem simples, apenas entregar o protocolo, mostrar minha identidade e pegar o passaporte do filhão.
O cenário na PF era o já conhecido. A fila, as pessoas com os envelopes de documentos, o policial na porta organizando a entrada, os ambulantes e, claro, o despachante amedrontando todo mundo e dizendo repetidas vezes que estava ali pra ajudar o patrãozinho – que saco. Mas eu ali me mantinha calminho, calminho.
Quando eu ia entrar na fila alguém me disse que, pra buscar o passaporte podia ir direto no balcão, não precisava de fila. E eu, aliviado, fui direto pra entrada. Na porta o policial olhou pra mim, apertou os lábios e disse:
- De bermuda não é permitido entrar.
- O quê? Como assim? É comigo? Mas eu só vim buscar? – disse atônito, emendando uma pergunta na outra.
- De bermuda não pode entrar no prédio – repetiu calmamente.
Cara, não é possível! Mulher pode entrar de short e eu não posso de bermuda? Um calor desses no Rio? Só pode ser sacanagem. Minha cabeça rodava e eu queria assassinar com uma metralhadora uma meia dúzia de policiais federais, umas mulheres de short e um despachante corno daqueles. Como eu vou fazer agora? - pensei. O filho vai viajar com a mãe como, sem o passaporte? Que bosta, que merda... E nem dava tempo de ir em casa trocar a bermuda e voltar porque, até lá, a PF já estaria fechada.
Enquanto eu pensava fui saindo da frente da porta e dou de cara com o tal despachante, que me pergunta se foi o protocolo errado, a data errada, o formulário errado. E eu dizendo não, não e não. Até que ele perguntou se eu queria alguma ajuda, tirar foto, uma água, outra ficha.
- Eu preciso de uma calça, tem?
- Tenho, sim.
- Tá falando sério? – disse já pensando em partir pra briga se fosse brincadeira dele.
- Sério. Vamos ali na minha loja, aquela de foto ali da esquina, que lá eu tenho calça pra alugar.
Fiquei um tempo paralisado, sem acreditar que ele estava falando sério. Só me mexi quando ele atravessou a rua e do outro lado me gritou um “vem, patrãozinho”.
Depois de dizer que eu sou muito alto e de pedir desculpas por não ter uma calça do meu tamanho, o despachante foi comigo até a entrada da Polícia Federal, me ajudou a explicar ao guarda que eu tinha saído pra vestir uma calça e depois ainda ficou me esperando na saída.
Com o passaporte do meu filho na mão eu era só alegria. Nem dei bola pra aquela calça jeans cheia de rebites de metal, batendo na canela, apertada na cintura, de boca fina, feia e estranha e muito menos pros olhares desaprovadores do pessoal todo bem vestido - o público engomadinho da PF.
Voltei na loja pra tirar a calça e pagar o despachante, mas àquela altura ele era a pessoa mais legal do mundo pra mim. Atencioso, prestativo, educado, prestimoso... eu poderia escrever uma linha inteira só de elogios ao tal despachante. Mas na hora que nos despedimos, antes de lhe dar um forte abraço de agradecimento, eu fiquei pensando no duro que aquele sujeito dava ali, todo dia, no sol e na chuva, aturando gente mal-humorada, de nariz empinado, gente como eu que achava que sabia de tudo e que não precisava de nada nunca.
- Você salvou a minha vida, rapaz – disse eu – Como eu ia chegar na casa do meu filho sem o passaporte? Você me salvou mesmo. De verdade.
- Que nada. Eu sou um auxiliar. Um reles ajudante. Nada mais.
E eu, ainda me achando em dívida com ele por ter pensado as piores coisas do seu trabalho, do seu jeito e da sua postura de agourento, disse:
- De qualquer modo muito obrigado. E, olha, me desculpe se eu fui rude com você no outro dia, tá?
- Eu estou aqui pra ajudar o patrãozinho – sorriu, apertando a minha mão.
Essa frase era justamente o que mais me irritava nele. Mas entendi que o meu sentimento de gratidão já era bem maior do que a irritação de ouvi-la. Ademais, o mínimo que eu podia fazer naquele momento era ser tolerante, uma coisa bem difícil em certas ocasiões. Então, enquanto eu ia embora, acenei pra ele e respondi o mais amável que eu pude:
- E o patrãozinho aqui agradece. Um abraço.


terça-feira, 17 de março de 2015

O Barbeiro de São Lourenço



A primeira vez que eu fui a São Lourenço eu era tão novo que ainda curtia a minha primeira barba. Com uma coloração meio ruiva, eu achava que ela mal podia ser notada e, assim, nunca tinha decidido deixá-la crescer a um ponto que pudesse ser vista. 
São Lourenço, uma cidade pequena de Minas Gerais, famosa pelo seu parque de águas medicinais, já foi um grande destino turístico do Brasil que conseguia aliar a comida mineira e um cenário calmo e bucólico, ótimo para famílias e, principalmente, crianças.
Assim que cheguei à cidade e estacionei no hotel, de tardinha, aproveitei o sono do meu filho, que tinha uns dois anos e dormia com a mãe, e fui dar uma avaliada na barbearia que tinha avistado, logo ali, perto de uma pracinha. A barba, mesmo ralinha e falhada, já estava me incomodando um pouco e eu achei que era hora de raspá-la no barbeiro, como manda o figurino. 
Os três barbeiros, com seus jalecos brancos, cada um com um caderno do jornal na mão, conversavam animadamente na porta da barbearia quando eu cheguei. Como estava tudo vazio, sentei na cadeira e um deles entrou pra me atender, deixando os dois outros lá fora. Quando colocou o avental em volta de mim eu disse:
- Queria tirar a barba, que já está me incomodando. 
- Qual barba? – respondeu o homem, dando uma risadinha e chamando os outros dois.
Quando chegaram perto ele repetiu, rindo: 
- O menino quer fazer a barba.
- Qual barba? – emendaram os dois, como se tudo fosse combinado. 
- Cheia assim, vai dar um trabalhão – acercou o primeiro.
- É brincadeira – adiantou o outro. 
- A gente gosta de brincar com os cariocas – explicou o terceiro.
Todo o tempo que eu fiquei ali fazendo a barba só ouvi piadas e causos, típicos de mineiros, e quase todos tinham algo a ver com cariocas. Minha sensação foi de que, não fosse eu ali, aquele dia seria de tédio total para aqueles barbeiros. Mais tarde, já voltando para o hotel, pensando na cidade, nas águas do parque, nas suas propriedades medicinais e curativas, na disposição daqueles barbeiros pra tirar sarro de todo mundo, eu disse comigo mesmo: 
- Deve ser aquela água – e comecei a rir sozinho.
No dia seguinte, um belo domingo, estava eu dentro do parque com a família quando notei uma turma de velhinhos, fazendo a maior algazarra. Era uma pista de bocha, muito concorrida por sinal, onde estava tendo uma espécie de campeonato. As equipes eram mistas, com senhorinhas faceiras e senhores distintos, todos muito bem trajados. A disputa era animada e contava com os incentivos das torcidas, cujos, digamos, brados ecoavam por todo o parque. 
Quando eu cheguei mais perto da pista, pude ver como eram organizadas as equipes. Cada time tinha o seu pessoal de apoio, pessoas que auxiliavam os jogadores com utensílios, toalhas, bonés, ajudavam no alongamento e até davam lanchinhos, além é claro de oferecer quase sempre as conhecidas garrafas d’água, algumas até com a marca do próprio parque.
Em uma das equipes estava lá o tal barbeiro do dia anterior. Chegamos a nos ver e eu até ia acenar, mas ele estava jogando e, afinal, eu não quis atrapalhar. Fiquei ali olhando o jogo e a disputa, que ficava cada vez mais acirrada, com a torcida empenhada em empurrar o time. 
Finda a sua partida o barbeiro, de repente, apareceu do meu lado. Nos cumprimentamos e eu, cordialmente, elogiei o torneio, a disposição dos jogadores, o empenho das torcidas e mencionei a sorte que devia ser ter as águas medicinais por perto, pois que devia ser uma coisa boa beber durante o jogo algo energético e saudável.
- Mas que água, nada. Esse pessoal aqui não bebe dessa água não – e ficou uns longos minutos olhando a minha fisionomia, até ter certeza de que eu tinha entendido. Depois voltou pra pista. 
E eu entendi, finalmente. Um tanto confuso, é verdade, rememorando uns lances do jogo, como num filme, enquanto o barbeiro se afastava. Bem que eu tinha achado estranho – pensei comigo – que antes do lançamento, cada jogador tomava um gole. E a torcida levando as garrafinhas de água aos jogadores justamente na hora que eles iam fazer o lançamento, como para incentivar. Realmente, era tudo muito inusitado.
Na verdade, foi daí que eu percebi que enquanto todos os visitantes entravam na estância com suas garrafas vazias e saíam com elas cheias da água do parque, os velhinhos faziam justamente o contrário, alegres e cheios de saúde. 
Nem sulfurosas, nem magnesianas. Que ferruginosas, que nada!
E saí dali balançando a cabeça e empurrando o carrinho de bebê: 
- Eu sabia que era aquela água.