Há
vários tipos de despachantes. Todos se diferenciam pelo local onde atuam, a
especialidade do seu trabalho, mas todos possuem uma mesma característica: são
muito insistentes. Este a quem eu me refiro ficava andando na fila do
passaporte da Polícia Federal, em plena Praça Mauá, Centro do Rio de Janeiro.
Tirar
passaporte nos anos 90 não era uma tarefa muito fácil, pois tinha um formulário
bem chatinho de entender, com os campos e espaços não muito adequados o que
deixava todo mundo aflito pra não preencher errado ou não esquecer algum documento
na hora de ser atendido no balcão da PF.
Eu
estava na fila com o meu filho. Na verdade eram duas filas: uma dentro e outra
fora do prédio. A de dentro era abrigada e tal, ar-condicionado. Já a segunda
era na calçada mesmo, no sol ou na chuva, e rodeava o prédio desde a porta de
entrada até dobrar a esquina.
Ali
naquele espaço os despachantes eram os donos do pedaço. Ficavam circulando
entre as pessoas perguntando se queriam os seus serviços, pois eles sabiam de
cor todos os documentos e os erros comuns de preenchimento. Justamente porque
sabiam tudo insistiam exaustivamente, avisando que a PF só aceitava a foto do
tamanho xis, que a assinatura do formulário tinha que ser feita na frente da atendente,
que a certidão dos menores tinha que ser autenticada e mais um monte de coisas
que a gente ficava com a certeza de que algo ia dar errado na nossa vez, caso
não contratássemos os seus serviços.
A
todo tempo esse despachante, acho que Jorge era o seu nome, repetia a mesma
coisa:
-
Eu estou aqui pra ajudar o patrãozinho – dizia em alto e bom som.
E
todo mundo ficava de cara amarrada na fila, com aquele sujeito agourando o
nosso atendimento.
Eu
nem olhava pra ele, pra não dar motivo sequer de ele falar comigo. Ficava revisando
mentalmente o que eu tinha em mãos, os documentos e fotos, certo de que tudo
correria bem. E assim foi. Na nossa vez, entregamos tudo certinho e o sujeito
disse que no dia tal era só passar pra pegar e nos deu um protocolo. Legal. Na
saída lá estava o despachante e nos perguntou se tinha dado tudo certo. O que
eu respondi um tanto emburrado, dizendo que a gente não precisava de
despachante algum.
No
dia marcado pra buscar o passaporte eu fui sozinho, pois que não era necessário
meu filho ir junto. Não me lembro a razão, mas eu não estava trabalhando naquele
dia e estava bem tranquilo com o horário e relaxado, até porque o meu roteiro ali
era bem simples, apenas entregar o protocolo, mostrar minha identidade e pegar
o passaporte do filhão.
O
cenário na PF era o já conhecido. A fila, as pessoas com os envelopes de
documentos, o policial na porta organizando a entrada, os ambulantes e, claro,
o despachante amedrontando todo mundo e dizendo repetidas vezes que estava ali
pra ajudar o patrãozinho – que saco. Mas eu ali me mantinha calminho, calminho.
Quando
eu ia entrar na fila alguém me disse que, pra buscar o passaporte podia ir
direto no balcão, não precisava de fila. E eu, aliviado, fui direto pra
entrada. Na porta o policial olhou pra mim, apertou os lábios e disse:
-
De bermuda não é permitido entrar.
- O
quê? Como assim? É comigo? Mas eu só vim buscar? – disse atônito, emendando uma
pergunta na outra.
-
De bermuda não pode entrar no prédio – repetiu calmamente.
Cara,
não é possível! Mulher pode entrar de short e eu não posso de bermuda? Um calor
desses no Rio? Só pode ser sacanagem. Minha cabeça rodava e eu queria
assassinar com uma metralhadora uma meia dúzia de policiais federais, umas
mulheres de short e um despachante corno daqueles. Como eu vou fazer agora? -
pensei. O filho vai viajar com a mãe como, sem o passaporte? Que bosta, que
merda... E nem dava tempo de ir em casa trocar a bermuda e voltar porque, até
lá, a PF já estaria fechada.
Enquanto
eu pensava fui saindo da frente da porta e dou de cara com o tal despachante,
que me pergunta se foi o protocolo errado, a data errada, o formulário errado.
E eu dizendo não, não e não. Até que ele perguntou se eu queria alguma ajuda,
tirar foto, uma água, outra ficha.
-
Eu preciso de uma calça, tem?
-
Tenho, sim.
-
Tá falando sério? – disse já pensando em partir pra briga se fosse brincadeira
dele.
-
Sério. Vamos ali na minha loja, aquela de foto ali da esquina, que lá eu tenho
calça pra alugar.
Fiquei
um tempo paralisado, sem acreditar que ele estava falando sério. Só me mexi
quando ele atravessou a rua e do outro lado me gritou um “vem, patrãozinho”.
Depois
de dizer que eu sou muito alto e de pedir desculpas por não ter uma calça do
meu tamanho, o despachante foi comigo até a entrada da Polícia Federal, me
ajudou a explicar ao guarda que eu tinha saído pra vestir uma calça e depois ainda
ficou me esperando na saída.
Com
o passaporte do meu filho na mão eu era só alegria. Nem dei bola pra aquela
calça jeans cheia de rebites de metal, batendo na canela, apertada na cintura,
de boca fina, feia e estranha e muito menos pros olhares desaprovadores do
pessoal todo bem vestido - o público engomadinho da PF.
Voltei
na loja pra tirar a calça e pagar o despachante, mas àquela altura ele era a
pessoa mais legal do mundo pra mim. Atencioso, prestativo, educado,
prestimoso... eu poderia escrever uma linha inteira só de elogios ao tal
despachante. Mas na hora que nos despedimos, antes de lhe dar um forte abraço
de agradecimento, eu fiquei pensando no duro que aquele sujeito dava ali, todo
dia, no sol e na chuva, aturando gente mal-humorada, de nariz empinado, gente
como eu que achava que sabia de tudo e que não precisava de nada nunca.
-
Você salvou a minha vida, rapaz – disse eu – Como eu ia chegar na casa do meu
filho sem o passaporte? Você me salvou mesmo. De verdade.
-
Que nada. Eu sou um auxiliar. Um reles ajudante. Nada mais.
E
eu, ainda me achando em dívida com ele por ter pensado as piores coisas do seu
trabalho, do seu jeito e da sua postura de agourento, disse:
-
De qualquer modo muito obrigado. E, olha, me desculpe se eu fui rude com você
no outro dia, tá?
-
Eu estou aqui pra ajudar o patrãozinho – sorriu, apertando a minha mão.
Essa
frase era justamente o que mais me irritava nele. Mas entendi que o meu sentimento
de gratidão já era bem maior do que a irritação de ouvi-la. Ademais, o mínimo
que eu podia fazer naquele momento era ser tolerante, uma coisa bem difícil em certas
ocasiões. Então, enquanto eu ia embora, acenei pra ele e respondi o mais amável
que eu pude:
- E
o patrãozinho aqui agradece. Um abraço.