Nos
tempos da faculdade de jornalismo era comum cada aluno entrar na sala de aula e
ir logo pegando a sua máquina de escrever e o seu dicionário. A gente testava a
máquina pra ver se estava boa, o carro, se tinha fita etc e, em seguida,
buscava em alguma mesa um dicionário que estivesse livre. Só depois é que cada
um sentava na sua carteira.
Quando
eu fui trabalhar em Salvador, na virada dos anos 80 para os 90, este hábito
ficou bem mais fácil porque ninguém usava os dicionários que ficavam nas mesas
da redação. Sobrava dicionário, até. Não havia computador nas redações ainda,
pelo menos não em Salvador, e lembro que cada editoria tinha o seu diagramador,
que só começava a trabalhar um pouco mais tarde, perto do fechamento da edição.
Eu
notava diariamente que os meus colegas me olhavam meio de lado quando eu
chegava e sentava na minha mesa já com o dicionário do lado. Era comum para mim
consultar o livro sempre que tinha uma dúvida, ou mesmo pra procurar um
sinônimo, sei lá, coisa do dia a dia de escrever mesmo, incentivada desde os
tempos da faculdade. Mas eu sabia que eles me olhavam esquisito.
Um
dia eu entrei na redação e esqueci de pegar o dicionário. Ao lado um colega
percebeu e me disse “pede ao garoto do SOS que ele pega pra você”, e apontou o
rapaz que transitava entre as mesas. Foi nessa hora que me deu o clique que havia
um rapaz do SOS e que este tal de SOS, que eu ouvia de vez em quando, era algo
além do que eu supunha.
O
expediente que eu fazia era das 18 horas à meia-noite, com folga somente aos
sábados. Então durante o trabalho, sempre à noite, uma das tarefas era o
fechamento da edição do jornal, no período final do turno, cuja característica
era mesmo a agitação, envolvendo a seleção das matérias que iam pra edição e as
que iriam para a chamada sexta sessão, a lixeira.
Uma
sala cercada de vidro no fundo da redação era onde ficavam as tevês ligadas nos
telejornais e onde estavam instalados os aparelhos de fax e de telex. Naquele tempo era
assim que as agências de notícias faziam o seu trabalho, enviando as notícias
urgentes, inclusive as internacionais, por fax e telex. Então era comum o
operador abrir a porta da sala de vidro e gritar “Fulano de tal, SOS pra você”.
Aí o respectivo jornalista se levantava da sua mesa e ia pra sala pegar a
notícia.
Eu
via isso acontecer o tempo todo, principalmente no final do expediente, mas
nunca me chamaram pro tal SOS. Os editores, sim, eram chamados várias vezes, e
de vez em quando até levavam junto os componentes da sua editoria. Tudo parecia
dinâmico e organizado e eu, como passei a reparar mais no SOS, acabei por ouvir
certo dia uma convocação incomum, do próprio garoto:
-
Expedito, vai lá buscar o SOS que já tá na hora – gritou o operador lá da porta
da sala.
Eu
então parei de escrever e passei a perceber tudo em volta. O rapaz convocado foi
correndo até o operador, pegou um papel da sua mão e ia saindo, quando um outro
jornalista perguntou se ele podia tirar uma xerox. Às pressas, ele só respondeu
que estava indo pegar o SOS e que quando voltasse tirava:
- É
rapidinho – disse saindo porta afora.
-
Claro, o SOS tem prioridade – respondeu baixinho o redator.
Demorou
uns minutos e quando o garoto voltou com um saco plástico nas mãos, eu consegui
ouvir o tilintar de garrafas dentro dele. Estranhei. E notei que foi uma festa o retorno
do garoto do SOS à redação. Todos o saudavam quando ele passava e acenavam,
agradecendo o seu trabalho. Dali a pouco começaram os chamados de SOS na sala
de vidro. Alternadamente, todos os jornalistas foram até lá receber as suas
notícias e um deles, que costumava sentar perto de mim, assim que voltou pra sua
mesa, levantou de novo me dizendo que ia resolver uma coisinha que não estava
certa e tornou à sala do SOS.
Quando
ele retornou imediatamente gritaram o meu nome na porta da sala. Eu olhei pra ele sem
entender e ele sorriu me dizendo pra ir lá ver. Eu cheguei na sala e o operador
prontamente abriu a porta pois estava me vendo pelo vidro desde o momento em
que me chamou. Acho que todos os editores estavam lá. Uns vendo o futebol na
tevê, outros olhando um telejornal qualquer, mas todos com um copo descartável
na mão. Um deles chegou perto e me saudou:
- E
aí carioca, finalmente um SOS pra você, né?
Claro, os cariocas também são filhos de Deus.
-
Verdade, você já trabalha aqui há algum tempo, já pode desfrutar do SOS com a
gente – disse um outro editor.
- E
vai querer o quê? – disse um terceiro saindo de perto da tevê e vindo até mim –
Temos cervejinha, uísque com gelo de água de coco, vodca e um licor de jabuticaba
recém chegado de São Paulo.
Como
é que eu ia dizer a eles que eu não bebo? No meio daquela deferência toda, toda
aquela consideração. Eu estava sendo acolhido no time de jornalistas, como
recusar aquela hospitalidade? Eu já era o sujeito estranho que não sabia
escrever sem o dicionário do lado, agora seria também um jornalista que não
bebe? Não, não podia fazer isso com
eles. Nem comigo!
Pensei
uns dois minutos, ali calado, como se estivesse analisando entre as ofertas a
melhor opção de bebida, mas na verdade eu estava era numa baita encruzilhada.
-
Me dá um licor de jabuticaba. Eu adoro esse licor – menti descaradamente,
saindo do transe.
Assim
que eu falei todos riram alto, brindaram comigo e até o garoto do SOS surgiu de
repente do outro lado do vidro. Ele apontou pra mim e depois bateu duas vezes
com a mão fechada no peito. Pronto, a partir daquele dia eu virei jornalista.
Mais que isso: jornalista com direito a SOS. Toda semana eu tomava um gole com
eles no SOS e cuidava pra disfarçar a cara torta quando bebia.