quinta-feira, 9 de abril de 2015

Hélio Delmiro


De todos os cinquenta violonistas que eu cultivo na minha lista dos dez melhores do mundo, certamente Hélio Delmiro é quem eu mais reverencio pela capacidade e facilidade que possui, tanto como arranjador como harmonista.
Basta dizer que compunha e acompanhava nos shows e nos discos nomes como Elizeth Cardoso e Elis Regina. E aí, claro, não é preciso citar mais nenhuma celebridade, mesmo sabendo que teria ainda Milton, Tom Jobim, Wagner Tiso e Toninho Horta nesse rol. Mas dou por entendido o naipe desse músico apenas citando as duas primeiras cantoras.
Eu tinha assistido recentemente a uma apresentação dele num lugar chamado Modern Sound, uma casa de shows que havia no Rio de Janeiro, em Copacabana. A casa era, na verdade, uma loja de Cds, especializada em mpb, jazz e blues, que em certos dias da semana, ao final do expediente, encerrava as vendas, cobria as estantes de Cds e Dvds e o ambiente se transformava em uma sala de concerto pequena, intimista, e o barzinho da loja, que funcionava em um lugar reduzido de dia, tomava conta de todo o espaço naquele horário.
Por sua vocação intimista os shows na Modern Sound eram sempre muito informais, com o artista invariavelmente convidando a plateia a participar, a cantar e mesmo a pedir músicas. Tanta era a proximidade com os músicos ou cantores que eles até pareciam, em certos momentos dos shows, pessoas normais como a gente, como eu, o que é certamente uma heresia, se considerarmos a música como a melhor das religiões entre todas, em matéria de elevar e sublimar toda a condição humana.
Entre os deuses e os mortais, eis que neste dia eu estava atravessando a rua, ali perto da Modern Soud, indo em direção a uma padaria. Eu gosto de padarias. Aquela ali muito me atraía pela quantidade de doces nas suas vitrines, que dava pra ver desde o outro lado da rua, onde eu estava. Eu gosto de doces de padaria.
Era, acho, por volta de umas 10 da manhã e dado o movimento de carros, eu só pude atravessar mesmo quando o sinal fechou. Quando comecei a andar notei uma figura toda de branco, bermuda e camisa de manga comprida, indo junto com as pessoas. Na mesma hora reconheci, embora não pudesse acreditar. Era o Hélio Delmiro.
Ele entrou na padaria junto comigo, falou com os atendentes que já o conheciam por seu Hélio, esperou pelo seu pão, queijo ou sei lá mais o que esses seres costumam comer de manhã. Eu desde a entrada fiquei paralisado, só olhando o violonista, acompanhado detalhadamente tudo que ele dizia, como ele dizia, o que ele olhava, os doces que lhe interessavam, tudo. E ele ali, como se fosse uma pessoa normal, um cara comprando pão na padaria, veja só!
Nessa hora eu olhei pros lados, quase que sacudi pelo braço uma meia dúzia de indivíduos dentro da padaria que nem atinaram para aquele homem todo de branco. A minha vontade era fazer o anúncio em alto e bom som:
- Parem tudo aí gente! Aqui, olhem aqui pra mim todos. Atenção aqui. Vocês sabem quem é esse sujeito? É o maior violonista que este país já produziu. É o Hélio Delmiro, gente! O Hélio Delmiro.
Pensei, balbuciei, mas não disse uma só palavra que fizesse sentido. Ele entrou na fila, pagou, pegou o troco, disse um carinhoso “até logo Paraíba”, a um atendente muito risonho e, puff, sumiu na multidão. Eu, parado, ali, continuava só respirando. Ou não.
É verdade que tudo pode ter sido potencializado pelo curto espaço de tempo entre o show dele na Modern Sound e aquela aparição na padaria. Num dia ele estava no palco, tocando e contando causos pra mim e no outro estava só comprando pão. Mas era como se toda a proximidade daquele show ainda não tivesse se dissipado por completo na minha memória. Daí o sentimento de incredulidade pela normalidade daquela inocente ida até a padaria.
Com um sorriso colado e estampado na boca, eu saí dali nem sei como. Minha satisfação era algo inexplicável e intraduzível. Voltando pra casa, andando pela rua, eu relembrava as cenas e aquelas emoções se confundiam.
Durante um bom tempo eu admito que fui um cara chato. Fui? Bem, é que por meses a fio, a coisa que eu mais contava a quem me encontrava era:
- Eu vi o Hélio Delmiro! Na padaria! E olha só, comprando pão!