De
todos os cinquenta violonistas que eu cultivo na minha lista dos dez melhores
do mundo, certamente Hélio Delmiro é quem eu mais reverencio pela capacidade e
facilidade que possui, tanto como arranjador como harmonista.
Basta
dizer que compunha e acompanhava nos shows e nos discos nomes como Elizeth
Cardoso e Elis Regina. E aí, claro, não é preciso citar mais nenhuma
celebridade, mesmo sabendo que teria ainda Milton, Tom Jobim, Wagner Tiso e
Toninho Horta nesse rol. Mas dou por entendido o naipe desse músico apenas
citando as duas primeiras cantoras.
Eu
tinha assistido recentemente a uma apresentação dele num lugar chamado Modern
Sound, uma casa de shows que havia no Rio de Janeiro, em Copacabana. A casa era,
na verdade, uma loja de Cds, especializada em mpb, jazz e blues, que em certos
dias da semana, ao final do expediente, encerrava as vendas, cobria as estantes
de Cds e Dvds e o ambiente se transformava em uma sala de concerto pequena, intimista,
e o barzinho da loja, que funcionava em um lugar reduzido de dia, tomava conta
de todo o espaço naquele horário.
Por
sua vocação intimista os shows na Modern Sound eram sempre muito informais, com
o artista invariavelmente convidando a plateia a participar, a cantar e mesmo a
pedir músicas. Tanta era a proximidade com os músicos ou cantores que eles até pareciam, em
certos momentos dos shows, pessoas normais como a gente, como eu, o que é
certamente uma heresia, se considerarmos a música como a melhor das religiões entre
todas, em matéria de elevar e sublimar toda a condição humana.
Entre
os deuses e os mortais, eis que neste dia eu estava atravessando a rua, ali
perto da Modern Soud, indo em direção a uma padaria. Eu gosto de padarias. Aquela
ali muito me atraía pela quantidade de doces nas suas vitrines, que dava pra
ver desde o outro lado da rua, onde eu estava. Eu gosto de doces de padaria.
Era,
acho, por volta de umas 10 da manhã e dado o movimento de carros, eu só pude
atravessar mesmo quando o sinal fechou. Quando comecei a andar notei uma figura
toda de branco, bermuda e camisa de manga comprida, indo junto com as pessoas. Na
mesma hora reconheci, embora não pudesse acreditar. Era o Hélio Delmiro.
Ele
entrou na padaria junto comigo, falou com os atendentes que já o conheciam por
seu Hélio, esperou pelo seu pão, queijo ou sei lá mais o que esses seres costumam
comer de manhã. Eu desde a entrada fiquei paralisado, só olhando o violonista,
acompanhado detalhadamente tudo que ele dizia, como ele dizia, o que ele
olhava, os doces que lhe interessavam, tudo. E ele ali, como se fosse uma pessoa
normal, um cara comprando pão na padaria, veja só!
Nessa
hora eu olhei pros lados, quase que sacudi pelo braço uma meia dúzia de
indivíduos dentro da padaria que nem atinaram para aquele homem todo de branco.
A minha vontade era fazer o anúncio em alto e bom som:
-
Parem tudo aí gente! Aqui, olhem aqui pra mim todos. Atenção aqui. Vocês sabem
quem é esse sujeito? É o maior violonista que este país já produziu. É o Hélio
Delmiro, gente! O Hélio Delmiro.
Pensei,
balbuciei, mas não disse uma só palavra que fizesse sentido. Ele entrou na
fila, pagou, pegou o troco, disse um carinhoso “até logo Paraíba”, a um
atendente muito risonho e, puff, sumiu
na multidão. Eu, parado, ali, continuava só respirando. Ou não.
É
verdade que tudo pode ter sido potencializado pelo curto espaço de tempo entre
o show dele na Modern Sound e aquela aparição na padaria. Num dia
ele estava no palco, tocando e contando causos pra mim e no outro estava só
comprando pão. Mas era como se toda a proximidade daquele show ainda não
tivesse se dissipado por completo na minha memória. Daí o sentimento de incredulidade
pela normalidade daquela inocente ida até a padaria.
Com
um sorriso colado e estampado na boca, eu saí dali nem sei como. Minha
satisfação era algo inexplicável e intraduzível. Voltando pra casa,
andando pela rua, eu relembrava as cenas e aquelas emoções se confundiam.
Durante
um bom tempo eu admito que fui um cara chato. Fui? Bem, é que por meses a fio, a
coisa que eu mais contava a quem me encontrava era:
-
Eu vi o Hélio Delmiro! Na padaria! E olha só, comprando pão!