quinta-feira, 23 de abril de 2015

O Chevette


Todo mundo tem uma história de carros pra contar. Eu nem sou assim tão aficionado por máquinas, mas esse foi um carro companheiro de uma certa viagem, longa, e por isso merece a história.
Olavo era o nome do meu Chevette. Era valente como ele só, mas só nos dias secos. Em dias de chuva, coitado, o bicho ouvia a previsão do tempo no rádio pra amanhã e já enguiçava hoje mesmo, com água no distribuidor. Depois de muitas reclamações, um amigo do trabalho me indicou um mecânico especialista em fazer dos Chevettes quase carros anfíbios, de tanto que venciam as poças e os verdadeiros riachos, muito comuns na cidade de Salvador, onde eu morava, no início dos anos 90.
A mágica, pelo que eu entendi – e não foi muito – consistia em trocar a bobina de lugar, pondo ela em um espaço mais protegido, onde a água não alcançava. Aí ele mesmo fazia uma espécie de capa para o distribuidor, vedando as velas e todo o sistema elétrico. Só sei que eu passava nas poças durante as chuvas e fazia questão de abrir o vidro, pra que todo mundo visse a minha cara de felicidade atravessando a água, enquanto os outros carros se afogavam tristemente.
Assim era o Olavo. Quando eu voltei a morar no Rio de Janeiro, em 94, toda a mudança veio de caminhão, menos o Olavo e os copos de cristal, pois coube a mim a tarefa de trazê-los intactos até a cidade maravilhosa, dentro do seu próprio porta-malas.
Saí de Salvador antes do amanhecer. Como eu viajava sozinho, ocupava todo o banco do carona uma caixa de madeira, onde eu levava organizadamente uma boa quantidade de fitas cassete e uns bons pacotes de biscoito de morango. Claro, tinha água também e uns sacos de amendoim. Minha ideia era dirigir até onde eu conseguisse, até anoitecer. Aí eu dormia em um hotel qualquer perto da estrada e saía no dia seguinte, também cedinho.
A parada afinal foi em São Mateus, já no Espírito Santo. A viagem foi bem calma, sem muito movimento de caminhões e o cansaço estava dentro do planejado. Achei um hotel anexo a um posto de gasolina, daqueles grandes, típicos para receber caminhões, com borracheiro, mecânico e tudo o que um caminhoneiro poderia precisar.
Depois de um banho eu só queria comer alguma coisa e dormir. Assim, quando eu cheguei no restaurante o garçom me explicou que era só pedir pelo número do prato feito. Eu escolhi o meu e perguntei o que tinha de bebida, ao que ele respondeu que tinha tudo, que era só eu pedir. Pensei numa coca bem gelada e até salivei pensando num copo cheio de gelo. Ele disse que ia ver, mas que achava que só tinha de um litro. Eu aceitei, naturalmente.
O detalhe foi que quando o garçom tirou a bandeja de cima do balcão e veio na minha direção, todo mundo parou pra olhar onde ele ia entregar aquilo. Senti um certo clima de alívio no ambiente quando ele botou a grande garrafa de coca e o prato na minha mesa. No mesmo instante a pausa que havia se instalado naquela cena logo se foi por completo e todos voltaram a comer e beber.
Então foi a minha vez de olhar em volta e perceber que eu era o único motorista naquele restaurante que não estava bebendo cachaça e sim Coca-Cola! Reparei que cada bandeja que vinha do balcão trazia uma garrafa de cachaça e um copo, que era enchido em cada mesa pelo garçom. Aí entendi que, num bar de caminhoneiros, num ambiente onde todo mundo janta bebendo cachaça, a curiosidade torna-se extrema quando uma coca irrompe o Saloon, desfilando gelada em cima de uma bandeja.
Na hora de pagar, na fila do caixa, o dono do bar com um pano de prato nos ombros me perguntou:
- A comida estava boa?
- Sim, muito boa, obrigado – respondi.
- E a sua Coca-Cola... estava... gelada? – riu e alguns em volta riram junto.
A sorte de todos ali era que eu estava em viagem pra casa, com pressa de dormir, de voltar a dirigir assim que o dia raiasse e não tinha tempo suficiente pra surrar devidamente todos eles, ali naquele recinto. Mas, na saída, eu só não cuspi no chão. Todo o resto da cena eu cumpri à risca, inclusive saí com cara de mau e com um palito no canto da boca, como se estivesse no velho oeste que a gente só vê nos filmes. O saco de Jujuba que estava no meu bolso pra depois do jantar, por via das dúvidas, eu deixei pra comer no quarto mesmo.
De manhãzinha o Olavo estava prontinho pra seguir viagem. E dali de São Mateus nós fomos cantando James Taylor até a entrada no Rio de Janeiro. Na verdade eu estava chegando pelo norte e, por alguma razão, tinha esquecido que quando a gente entra na ponte Rio-Niterói, de cara vê a silhueta do Rio ao fundo.
Assim, quando eu acabei de subir e contornar o acesso à ponte, assim que entrei de novo na reta, do outro lado da Baía de Guanabara avistei o Cristo Redentor. Aquilo foi uma surpresa enorme. Depois de tantos quilômetros de estrada, eu estava de novo sob a bênção do Cristo da minha cidade. O meu Cristo. Choramos todos juntos. Eu, o Olavo e com certeza o James Taylor, pois sua voz também cantava embargada por aquela emoção, por aquele reencontro.
Nem estacionei o carro direito quando parei em frente à casa da minha mãe, na Penha. Larguei tudo e fui direto abraçar meu pai que me esperava sozinho no portão. Ele então bateu no teto do carro e disse:
- Então esse é o Olavo, véio de guerra?
- Sim, esse é o grande Olavo – respondi ainda abraçado a ele.
- Então vamos entrar que sua mãe te espera. Eu estou aqui fora, no portão, desde as 9 da manhã.
Só meu pai mesmo.
Passava das 4 da tarde.