Todo
mundo tem uma história de carros pra contar. Eu nem sou assim tão aficionado
por máquinas, mas esse foi um carro companheiro de uma certa viagem, longa, e
por isso merece a história.
Olavo
era o nome do meu Chevette. Era valente como ele só, mas só nos dias secos. Em
dias de chuva, coitado, o bicho ouvia a previsão do tempo no rádio pra amanhã e
já enguiçava hoje mesmo, com água no distribuidor. Depois de muitas
reclamações, um amigo do trabalho me indicou um mecânico especialista em fazer
dos Chevettes quase carros anfíbios, de tanto que venciam as poças e os
verdadeiros riachos, muito comuns na cidade de Salvador, onde eu morava, no
início dos anos 90.
A
mágica, pelo que eu entendi – e não foi muito – consistia em trocar a bobina de
lugar, pondo ela em um espaço mais protegido, onde a água não alcançava. Aí ele
mesmo fazia uma espécie de capa para o distribuidor, vedando as velas e todo o
sistema elétrico. Só sei que eu passava nas poças durante as chuvas e fazia questão
de abrir o vidro, pra que todo mundo visse a minha cara de felicidade
atravessando a água, enquanto os outros carros se afogavam tristemente.
Assim
era o Olavo. Quando eu voltei a morar no Rio de Janeiro, em 94, toda a mudança
veio de caminhão, menos o Olavo e os copos de cristal, pois coube a mim a
tarefa de trazê-los intactos até a cidade maravilhosa, dentro do seu próprio
porta-malas.
Saí
de Salvador antes do amanhecer. Como eu viajava sozinho, ocupava todo o banco
do carona uma caixa de madeira, onde eu levava organizadamente uma boa
quantidade de fitas cassete e uns bons pacotes de biscoito de morango. Claro,
tinha água também e uns sacos de amendoim. Minha ideia era dirigir até onde eu
conseguisse, até anoitecer. Aí eu dormia em um hotel qualquer perto da estrada
e saía no dia seguinte, também cedinho.
A
parada afinal foi em São Mateus, já no Espírito Santo. A viagem foi bem calma,
sem muito movimento de caminhões e o cansaço estava dentro do planejado. Achei
um hotel anexo a um posto de gasolina, daqueles grandes, típicos para receber
caminhões, com borracheiro, mecânico e tudo o que um caminhoneiro poderia
precisar.
Depois
de um banho eu só queria comer alguma coisa e dormir. Assim, quando eu cheguei
no restaurante o garçom me explicou que era só pedir pelo número do prato
feito. Eu escolhi o meu e perguntei o que tinha de bebida, ao que ele respondeu
que tinha tudo, que era só eu pedir. Pensei numa coca bem gelada e até salivei
pensando num copo cheio de gelo. Ele disse que ia ver, mas que achava que só
tinha de um litro. Eu aceitei, naturalmente.
O
detalhe foi que quando o garçom tirou a bandeja de cima do balcão e veio na
minha direção, todo mundo parou pra olhar onde ele ia entregar aquilo. Senti um
certo clima de alívio no ambiente quando ele botou a grande garrafa de coca e o
prato na minha mesa. No mesmo instante a pausa que havia se instalado naquela
cena logo se foi por completo e todos voltaram a comer e beber.
Então
foi a minha vez de olhar em volta e perceber que eu era o único motorista
naquele restaurante que não estava bebendo cachaça e sim Coca-Cola! Reparei que
cada bandeja que vinha do balcão trazia uma garrafa de cachaça e um copo, que
era enchido em cada mesa pelo garçom. Aí entendi que, num bar de caminhoneiros,
num ambiente onde todo mundo janta bebendo cachaça, a curiosidade torna-se
extrema quando uma coca irrompe o Saloon,
desfilando gelada em cima de uma bandeja.
Na
hora de pagar, na fila do caixa, o dono do bar com um pano de prato nos
ombros me perguntou:
- A
comida estava boa?
-
Sim, muito boa, obrigado – respondi.
- E
a sua Coca-Cola... estava... gelada? – riu e alguns em volta riram
junto.
A
sorte de todos ali era que eu estava em viagem pra casa, com pressa de dormir,
de voltar a dirigir assim que o dia raiasse e não tinha tempo suficiente pra
surrar devidamente todos eles, ali naquele recinto. Mas, na saída, eu só não cuspi
no chão. Todo o resto da cena eu cumpri à risca, inclusive saí com cara de mau
e com um palito no canto da boca, como se estivesse no velho oeste que a gente
só vê nos filmes. O saco de Jujuba que estava no meu bolso pra depois do jantar,
por via das dúvidas, eu deixei pra comer no quarto mesmo.
De
manhãzinha o Olavo estava prontinho pra seguir viagem. E dali de São Mateus nós
fomos cantando James Taylor até a entrada no Rio de Janeiro. Na verdade eu
estava chegando pelo norte e, por alguma razão, tinha esquecido que quando a
gente entra na ponte Rio-Niterói, de cara vê a silhueta do Rio ao fundo.
Assim,
quando eu acabei de subir e contornar o acesso à ponte, assim que entrei de
novo na reta, do outro lado da Baía de Guanabara avistei o Cristo Redentor.
Aquilo foi uma surpresa enorme. Depois de tantos quilômetros de estrada, eu
estava de novo sob a bênção do Cristo da minha cidade. O meu Cristo. Choramos
todos juntos. Eu, o Olavo e com certeza o James Taylor, pois sua voz também
cantava embargada por aquela emoção, por aquele reencontro.
Nem
estacionei o carro direito quando parei em frente à casa da minha mãe, na
Penha. Larguei tudo e fui direto abraçar meu pai que me esperava sozinho no
portão. Ele então bateu no teto do carro e disse:
-
Então esse é o Olavo, véio de guerra?
-
Sim, esse é o grande Olavo – respondi ainda abraçado a ele.
-
Então vamos entrar que sua mãe te espera. Eu estou aqui fora, no portão, desde
as 9 da manhã.
Só
meu pai mesmo.
Passava
das 4 da tarde.