terça-feira, 29 de setembro de 2015

O Caminhão


Minha casa sempre vivia cheia de gente. Funcionava como uma espécie de ponto de encontro para os amigos, os vizinhos, familiares e agregados. Era também um lugar aonde as pessoas iam apenas conversar, falar de si, trocar ideias, passar o tempo enfim.
Meu pai nunca foi um sujeito letrado. Sua pouca sabedoria vinha da vida, das suas experiências. Muitas delas na verdade eram até fracassos e os fracassos, às vezes, são bem doloridos, mas como ensinam.
Mesmo assim os amigos sempre se aconselhavam com ele, sempre gostavam de ouvir o que ele tinha a dizer. Me lembro que uma vez um desses amigos foi demitido e foi lá conversar com meu pai. Eu era pequeno, não sabia direito o que estava acontecendo, mas lembro que ele tentava confortar o amigo e a força das suas palavras era mesmo fruto daquilo que ele vivenciava.
- A gente leva uma vida com tanta dificuldade. Anda daqui pra ali procurando fazer as escolhas certas, ser correto com todo mundo. Uma hora alguém ajuda a gente – disse meu pai.
E ao ouvir isso o amigo logo lembrou de um primo seu que tinha uma loja de autopeças, em São Cristóvão, e já se animou a telefonar pra ele no dia seguinte pra ver se tinha uma vaga lá. Animou também o meu pai que dizia que ele ia conseguir sim, pois que era só o caso de levantar a cabeça.
Passaram-se alguns dias e um caminhão entrou pela nossa rua levando, e arrebentando, todos os fios que cruzavam a avenida de um poste ao outro. A confusão foi armada de imediato e o acidente tinha acabado de acontecer no momento em que eu chegava da escola. Era mesmo um caminhão imenso, alto e longo, que eu contei 18 rodas.
Todo mundo saiu pra rua, esbravejando com o motorista. Os fios de eletricidade e de telefone estavam embolados no chão e as pessoas falavam todas ao mesmo tempo, culpando sempre o motorista em variados graus de intransigência. Alguém disse inclusive que já tinha chamado a polícia e que ele iria ser preso até que os fios fossem emendados.
Era tanta gente falando junto que o motorista, tentando apaziguar, só repetia que ia pagar tudo e que as pessoas se acalmassem porque ele não queria ter feito aquilo. Na verdade ele deveria ter pego uma outra rua e, como se perdeu, procurava um retorno pra seguir o caminho certo, daí que entrou na nossa pequena rua e deu no que deu.
Quando a polícia chegou foi logo dizendo que só podia aplicar uma multa mesmo e que não era o caso de apreensão, nem do veículo, nem do motorista. Disse o guarda que a concessionária é que deveria depois mandar a conta pra empresa ressarcir o prejuízo com os fios. Dada a sentença final, as pessoas foram retornando aos poucos pras suas casas, mas a raiva pelo motorista ainda era grande.
Notei que meu pai ainda ficou conversando ali por perto com um grupo, ajudou a enrolar o fio junto ao poste pra que fosse mais fácil emendar no dia seguinte e eu fui pra casa me dando conta de que aquilo tinha durado a tarde toda e já estava até anoitecendo.
Dali a pouco entra em casa o meu pai trazendo com ele o motorista do caminhão. Apresentou a minha mãe, depois eu e meus irmãos, mostrou toda a casa e depois anunciou, num tom mais alto, que ia perguntar à dona da casa se ela permitia que ele jantasse com a gente. Minha mãe só sorriu, como se já estivesse esperando por algo do gênero.
Na verdade, como minha mãe trabalhava fora, o jantar lá em casa era preparado de modo a sobrar pro almoço do dia seguinte. Aí a gente chegava da escola e só esquentava. Nesse dia o menu era carne seca com abóbora e, claro, ela já sabia que não sobraria nadinha pro dia seguinte.
O motorista tomou banho lá em casa, trocou de roupa e quando a gente ia se sentar à mesa ele disse que ia até o caminhão buscar uma coisa. Quando voltou tinha na mão um belo cacho de banana d’água e um potente lampião já aceso. As velas espalhadas pela sala foram então apagadas e aquele lampião no centro da nossa mesa de jantar é uma das cenas mais legais de que me lembro até hoje.
Comemos ouvindo divertidas histórias de estradas que o motorista contava com detalhes. Para mim, que era uma criança, aquela vida era demais de boa. Cada dia em um lugar e com todas aquelas aventuras e façanhas, qual o menino não queria ser caminhoneiro também?
No dia seguinte, bem cedo, meu pai foi até o caminhão onde o motorista tinha dormido pra se despedir, conforme tinham combinado. Quando eu acordei dei de cara com a maior penca de bananas que eu já tinha visto. Estava pendurada por um gancho na grade da janela e pesava um bocado. Meu pai contou que o motorista tinha deixado “para as crianças”, como ele disse.
Naquele dia não se falou em outra coisa, tanto na rua como dentro de casa. De tardinha, quando um vizinho soube que meu pai tinha dado guarida ao motorista odiado por todos, veio até em casa. E meu pai com toda a calma tratou de explicar, com um argumento que me pareceu bem familiar:
- Eles, os motoristas, levam uma vida com tanta dificuldade. Andam daqui pra ali procurando fazer as escolhas certas, ser correto com todo mundo. Uma hora alguém precisa ajudar eles.
E eu sabia que já tinha ouvido aquilo.