quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

O Carrinho do Parque


Por falar em carrinho do parque, minhas lembranças também remetem à infância e nelas também estão o meu irmão. Só que, no meu caso, ele é mais novo do que eu e isso fazia toda a diferença, ao menos pra minha mãe.
No parque em que a gente ia tinha uns carrinhos de verdade, que andavam numa pista de verdade, e tinham volantes de verdade: dois. Eram todos coloridos, conversíveis, tinham quatro lugares, com as rodinhas pretinhas de borracha e até tinham calotas. Eles paravam no lugar certo pras crianças embarcarem e tinham dois volantes.
Normalmente os meninos maiores iam no banco da frente, cada qual no seu volante, e os pequenos atrás, com a recomendação para que não ficassem de pé de forma alguma, pois a pista começava ao rés do chão mas, em alguns pontos, subia uma rampa e dava uma grande volta por cima do próprio parque, passando por cima das pessoas. Os pais acenavam lá de baixo; era uma coisa linda e preocupante.
Preocupante porque uma vez o meu irmão, que já estava grandinho, resolveu que queria ir dirigindo no meu volante, que era o da esquerda. E eu dizia que não, porque era minha responsabilidade dirigir no volante certo, que ficava do lado certo, como em todos os carros, do lado esquerdo. A pista era sinuosa, estreita e ele, como não sabia dirigir como eu, poderia pôr tudo em risco, sendo que o carro podia despencar lá de cima, nos machucar e até atingir as pessoas. Eu estava muito preocupado e ele teimava em querer o meu volante.
Até que minha mãe me puxou de lado, sem que meu irmão ouvisse, e me disse.
- Fica naquele volante de lá, pois é aquele que dirige. O outro é só de mentirinha.
Eu então olhei pro carro de novo e notei que aquele outro volante parecia mesmo de brinquedo e, por fim, aceitei deixar que meu irmão o dirigisse. Assumi o outro volante, o de verdade, e fiz o que sempre fazia, dirigi com toda a atenção do mundo, cuidando nas curvas pra tangenciar certinho, alinhando o carro com a pista que era bem estreita, subindo as ladeiras com cuidado, “na ponta dos dedos”, como diria um certo narrador.
Me lembro que meu irmão, quando passou na parte alta, largou o volante e deu tchauzinho pra meus pais lá embaixo e aquilo ajudou a confirmar que aquele volante era mesmo só de brincadeira. Eu, por minha vez, mal tirava o olho da pista e jamais passou pela minha cabeça largar o volante para dar tchauzinho: aquilo era coisa de criança que não tem a responsabilidade de dirigir, ainda mais conduzindo o seu irmão mais novo, veja só!
Eu não sei quando, nem de que forma eu um dia descobri que os dois volantes daqueles carrinhos eram de brinquedo. Mas sei que o meu desapontamento foi tão grande que eu mal consegui culpar a minha mãe por ter “mentido” pra mim ao dizer que um dos volantes era de verdade: o meu.
A imagem que eu ainda guardo é que, na próxima vez que voltamos ao parque eu já não quis andar no tal carrinho. Fiquei lá de baixo, emburrado, olhando o trilho por onde ele corria, as curvas certinhas que ele fazia, o ferro entre os eixos que fazia as rodinhas virarem. Tudo isso eu passei a notar e ainda fiquei mais amuado ao perceber que as outras crianças pareciam patetas gostando daquela baboseira.
Na minha cabeça aquilo foi um divisor de águas. Daquele dia em diante tudo o que meus pais me diziam eu desconfiava e avaliava atentamente pra medir se não era de novo algo como aqueles volantes; algo pra eu aceitar a palavra deles e que depois eu mesmo descobriria a verdade. Eu punha tudo então numa balança e analisava palavra por palavra. Devo ter sido um tanto quanto chato como criança, se eles notaram aquelas minhas suspeitas.
Hoje eu me pego tentando lembrar se cheguei a agir da mesma forma com meus filhos, quando eles eram pequenos. Acho que sim. No fundo acho que eu teria feito o mesmo que minha mãe. O mundo dá essas voltas maravilhosas e a gente vai tentando entender as coisas, se manter na pista, fazendo o que é melhor pros nossos filhos e, se for preciso, dirigindo os carrinhos junto com eles mesmo com volantes de mentirinha. Mas com todo o amor que temos.
Agradeço a meus pais por terem me deixado ser criança até quando eu quis ser.


quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

O Pequeno Motorista

por André Loureiro

Sabe aquele aniversário em que sua mãe junta as amigas, tias, primas, seus amigos, as “namoradinhas” e fica contando todas as suas histórias de quando você era pequeno? Aquelas que você já ouviu quatrocentas e cinquenta vezes e não aguenta mais, sabe? Pois é, eu tenho uma dessas. Na verdade tenho algumas, mas essa, em especial, eu acho muito legal.
Eu sempre gostei muito de carro. Desde sempre mesmo. Brincava com todo tipo, de controle remoto, que abria as portas, autorama, uns velocípedes que se esforçavam muito em parecer um carrinho e que não lembravam em nada os modelos “gourmet” de hoje... Era apaixonado por corrida, acordava todos os domingos pra ver o Senna correr, falava pra todo mundo que queria ser piloto, queria fazer kart.
Uma amiga da minha mãe tinha um Gol, daqueles mais antigos mesmo, quadradão, todo branco, horroroso o coitado. Mas ele tinha um painel bem diferente do carro da minha mãe, tinha umas luzes coloridas, e eu achava aquilo um máximo. Quando ela ia lá em casa, deixava o carro no quintal e ficava conversando por ali com a minha mãe, com outros amigos. Enquanto isso, eu passava o tempo inteiro dentro do carro dela. Ela deixava só a parte elétrica ligada, eu colocava uma mangueira por cima do teto, de forma a fazer a água cair incessantemente pelo vidro, simulando uma tempestade.
Ficava eu lá, com uns 6 anos, fechado dentro do carro, com a mangueira do quintal presa no teto do carro, jogando água no vidro e com limpador de para-brisa ligado simulando as mais diversas situações que um piloto pudesse enfrentar em Interlagos. Essa era a cena. Passei muitas horas da minha infância naquele carro. E achava o máximo.
Mais ou menos na mesma época, meu pai tinha um Chevette dourado, carinhosamente apelidado de “O Bicho Comeu”. Imagine só o quão fantástica não era a estrutura de sua carroceria para receber tal alcunha. E quando íamos na casa da minha vó, quem “estacionava” o carro era eu. Sentava no colo dele e ia virando o volante pra lá e pra cá, até entrar na garagem. Era regra.
E em meio a tantos carros que eu achava que dirigia, tinha um que era o que eu mais gostava: o carrinho de bate-bate. Gostava porque sabia que naquele lá eu mesmo que dirigia. Acelerava, freava, virava o volante pra onde eu queria. Aquele era de verdade. Era só chegar em algum parque de diversões que tivesse o tal carrinho e pronto. Podia me largar lá o dia inteiro e só buscar quando o parque estivesse fechando. Ficava doido naquele carrinho com uma antena que ia lá no teto e que saía umas luzinhas, que na minha cabeça eram tipo mini relâmpagos, e eu não fazia ideia de como ele era capaz de andar.
Pois bem. Só que a grande questão por trás do carrinho de bate-bate é que, como o nome já diz, ele foi feito pra bater nos outros que estão na pista com você. O objetivo da brincadeira era bater no maior número de carros possíveis. E eu odiava isso! Como me irritava. Eu só queria andar no meu carro, tranquilo, passeando, pegando uma brisa, fazendo umas curvas fechadas, aproveitando todo o espaço da pista, nada além disso. Não estava ali pra ficar jogando o carro em cima de ninguém. Que tipo de piloto faria um troço desses? – pensava eu. Mas pouco adiantava.
Ao ver que eu estava fugindo do propósito da brincadeira, virava o alvo preferido dos meninos mais velhos. Principalmente do meu irmão, que fazia questão de impedir que eu fizesse qualquer coisa que me levasse a acreditar que eu era um piloto de verdade. Mas eu não me abalava. Continuava sem querer causar colisões, nem abalroamentos.
Quando tinha uns 7, 8 anos, fomos no Play City, em São Paulo. Assim que chegamos, obviamente, eu já me encaminhei para a pista de bate-bate que tinha por lá. E aí aconteceu uma coisa muito legal, que eu só fui me dar conta muitos anos depois. Vou contar primeiro a versão do que eu entendi naquele dia e, em seguida, o que aconteceu nos bastidores, que eu só pude entender muito tempo depois.
Estava eu lá, dirigindo meu carrinho, procurando, como sempre, a minha paz, e sendo atrapalhado pelos meninos que usavam a brincadeira com o objetivo pelo qual ela foi criada. Dirigia tranquilo, tentando me esquivar de todos que jogavam o carro em cima do meu. Fiquei um bom tempo na pista. Enquanto dirigia, vi que na fila apareceu uma menina. Branquinha, loirinha, toda bonequinha. E todos que estavam na pista eram meninos, uns até mais velhos que eu. Todos já tinham avistado ela por ali, e aposto que muitos acharam ela tão linda quanto eu achei. Olhei pra ela e pensei:
- Caramba, coitada dessa menina! Se ela entrar aqui todo mundo vai querer bater no carro dela! Esses garotos não têm coração! Isso não vai dar certo!
Mas depois pensei que talvez ela tivesse por ali só olhando mesmo, que não fosse entrar na pista. E continuei dirigindo. Em dado momento, soou o alarme, e era o fim do tempo daquela turma que estava na pista. Eu já estava na pista há umas duas rodadas e ficaria muito mais, se dependesse de mim. Quando me preparava para sair do carrinho, eis que surge a minha mãe no meio da pista, ao lado do meu carro, com a tal menina que estava na fila. Eu, envergonhado até a última mitocôndria ribonucleica, fiquei paralisado sem entender nada. E minha mãe falou:
- Dé, essa é a fulana, ela queria brincar, mas não sabe dirigir. E ela quer ir com você no carrinho, tem problema?
Eu, já com o lado esquerdo paralisado, pensei: Oi??? Essa menina, toda branquinha, toda loirinha, vai sentar do meu lado no carrinho??? Não consegui responder nada, só balancei a cabeça.
Ela meio desajeitada, entrou no carrinho e sentou do meu lado. Nem tive coragem de olhar pra ela direito, só olhava para os outros meninos que estavam na pista, todos chocados com a cena, e morrendo de inveja. E lá fomos nós. Eu, apesar de ainda com o lado esquerdo paralisado, fui pilotando meu carrinho como se nada tivesse acontecendo. Numa tocada suave, “na ponta dos dedos”, como diria Galvão Bueno, desfilando pela pista com a menina do meu lado.
Nos primeiros minutos, a galera que levava o nome do brinquedo ao pé da letra ainda tentava nos atingir, e eu escapando de todas as formas. Fazia de tudo pra que ninguém batesse na gente. Já não gostava quando estava sozinho, agora então que tinha uma dama no mesmo veículo, eu não poderia permitir nenhum desconforto a ela!
Não me lembro exatamente, mas se bem me conheço não trocamos nenhuma palavra durante aqueles longos minutos. E assim foi, até o alarme tocar novamente. Saímos do carro e fomos até a saída. Encontrei a minha mãe, que estava ao lado do pai dela. Ele me cumprimentou, agradecendo de eu ter levado a filha dele. Eu, ainda sem graça, mal falei alguma coisa. Mas por dentro estava todo bobo, todo orgulhoso. E fui embora com a minha mãe para outro brinquedo, ainda olhando pra trás pra ver se ela viria também.
Agora, o que aconteceu nos bastidores foi o seguinte: O pai da menina, já tinha chegado aos arredores da pista há um bom tempo. Assim que eles chegaram, minha mãe, que me vigiava ali por perto, logo viu e achou curioso uma menina com os mesmos 7, 8 anos que eu, entrar naquela pista pra ficar batendo o carro um no outro. Eles ficaram perto da minha mãe por um tempo, as rodadas iam acabando e nada da menina entrar na pista. Minha mãe meio distraída, olhando também o meu irmão, continuava por ali, quando de repente o pai da menina falou:
- Aquele ali ó! Aquele branquinho de cabelo loiro. Quero que ela vá com ele! Ele não tá jogando o carro em ninguém, tá dirigindo direitinho! Ela vai com ele!
Minha mãe já imaginou que o branquinho de cabelo loiro, que não batia em ninguém, era o filho dela e se aproximou para falar com o pai da menina. O resto da história é aquele.
No final das contas, piloto eu não era, não andava com nenhuma adrenalina, não fazia manobras arriscadas, mas em matéria de segurança e conforto, eu era imbatível! Minha mãe pode até contar essa história pela quadricentésima quinquagésima primeira vez que eu nem vou me importar.
Não vou mesmo!


quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

A Cirurgia


A primeira coisa que eu pensei depois que saí do médico foi de que maneira eu ia ficar um ano sem usar lentes de contato. Meus óculos eram de grau alto, pesados, incômodos e agora o oftalmo me diz que eu tenho uma tal ceratite herpética, uma inflamação na córnea, e que por isso tenho que tomar remédios e ficar sem usar as lentes por um ano para não piorar a situação já que, na maioria dos casos, a inflamação é algo recorrente, ou seja, vai e volta. Definitivamente, eu estava atônito.
Passado um tempo, certo dia, do nada, minha mãe me perguntou se eu toparia ir no centro espírita do Irmão Joseph. Me disse que tinha conseguido uma consulta lá e se eu topasse ela iria comigo. Meus dias eram de irritação e contrariedade, tudo por causa dos óculos que eu era obrigado a usar. Então eu disse automaticamente que sim e ela também não me deu mais detalhes.
No dia marcado estávamos eu e minha mãe na sala de espera de uma grande casa que ficava no bairro da Glória, no Rio de Janeiro. Tinha todas as características de um posto de atendimento médico e aquela sala também seguia este padrão, com as pessoas vestidas de branco, os consultórios de atendimento numerados etc. A duas coisas que a diferenciavam dos hospitais convencionais eram uma música erudita tocando baixinho e a luz tremeluzente que acalmava e acolhia todo o ambiente. As pessoas ali falavam quase que sussurrando e, de vez em quando, um trabalhador da casa vinha conversar com um dos pacientes. Sentava-se no banco ao lado para, em seguida, o acompanhar até uma das salas de atendimento.
Quando chegou a minha vez uma moça me orientou a entrar na tal sala e a deitar na cama tipo hospitalar, até que o Irmão Joseph fosse falar comigo. Pediu que eu ficasse calmo e que tudo ia ficar bem. Assim que eu deitei entrou um homem baixinho. Foi tudo o que eu pude ver pois, logo em seguida, ele mandou que as pessoas da equipe, que o auxiliavam, botassem um pano branco, dobrado, por cima dos meus olhos.
Todo o movimento que ele fez, e que eu pude sentir, foi o tato das suas mãos através do pano colocado nos meus olhos, como uma venda, e a pressão dos seus dedos, principalmente no olho esquerdo, o acometido pela ceratite. Intuo que ele falava algo com a sua equipe e talvez pedisse alguns instrumentos, mas eu só sentia mesmo o tato e a pressão. De repente ele fez um movimento brusco e disse:
– Sem sangue. Eu não quero sangue!
Ao ouvir aquilo eu já me imaginei totalmente ensanguentado, moribundo e cego, embora minha percepção estranhamente não tivesse acusado qualquer tipo de dor. Uma voz então voltou a pedir pra eu ficar calmo e que tudo já estava acabando.
No minuto seguinte todos saíram da sala e só ficou a mesma pessoa que havia me trazido. Ela me conduziu até um outro local, pediu que eu mantivesse a venda nos olhos e que ela mesma retornaria em breve pra me liberar. Antes de sair me deu um copo d’água e pediu que eu bebesse devagar.
Minha mãe chegou em seguida e assim que pegou nas minhas mãos eu soube que era ela. Me perguntou se estava tudo bem e que a enfermeira lhe havia dito que tudo correu muito bem e que a cirurgia foi perfeita.
– Então eu fiz uma cirurgia? – temi.
– Sim. Quando o Irmão Joseph fez a consulta, na hora já determinou que o caso era de cirurgia e ele mesmo fez ali na sala. Mas foi uma cirurgia espiritual, não fica nervoso que está tudo bem.
– Lá dentro ele falou que meu olho estava sangrando e que ele não queria sangue – alertei.
– O que a equipe do irmão Joseph vê, só eles veem. É tudo diferente do que a gente vê.
Com a explicação da minha mãe e diante da calma dela eu só podia ficar calmo também. Até porque dali a poucos minutos a enfermeira veio me dar alta. Ela chegou, sentou do meu lado e foi tirando a minha venda até que a vista fosse acostumando com as poucas luzes e ficasse em condições de eu ir pra casa.
No caminho, naturalmente, minha mãe foi me explicando muitas coisas sobre o Irmão Joseph, a casa de atendimento e as cirurgias espirituais. E eu fiquei com vontade de saber mais sobre tudo aquilo.
A orientação de praxe da Casa é que o paciente ali tratado sempre retorne ao seu médico, de modo que ele possa verificar se houve alguma mudança, possivelmente a cura ou se o tratamento deve continuar da mesma forma ou com outros remédios. Na verdade quem deve dar a palavra final sobre como o paciente deve proceder é o seu médico. E isso é repetido em todos os tratamentos, no meu inclusive.
Dentro de poucos dias, de novo junto com a minha mãe, eu estava numa consulta com o meu oftalmo. Me lembro direitinho de como ele me colocou no aparelho e olhou, olhou. Depois verificou a sua ficha com os meus dados, mudou de olho, ligou a luzinha forte do instrumento, olhou, tornou ao olho esquerdo e por fim chamou um colega do consultório ao lado. Os dois então concluíram algo juntos e logo o outro saiu.
– Olha – ele iniciou – parece que a sua córnea foi lixada. Se é que uma córnea pode ser lixada, ela foi lixada com uma lixa muito fina, que não existe no equipamento médico, e essa lixa lixou de um modo tão suave todo o campo que todas as cicatrizes da ceratite, que normalmente deixam algum tipo de ulceração, não existem mais. Tem umas marcas bem pequenas, mas sem qualquer relevo.
– Eu fiz uma consulta espírita há uns meses. O senhor quer saber o que foi feito?
– Para o bem da continuidade do meu trabalho é melhor que eu não saiba, não é mesmo? Na minha profissão eu não posso acreditar em certas coisas que a ciência não me habilita a tal.
– Eu entendo. Mas eu queria saber do senhor se eu vou poder voltar a usar lente de contato. Isso é o que mais me preocupa nesse momento – perguntei olhando pra minha mãe.
– Claro que pode. Pelo que eu vi aqui você está liberadíssimo. Pode usar sim, principalmente as descartáveis que são mais finas e de melhor assepsia. Pode voltar a usar já e continuamente. Não tem nada aí que impeça.
Minha mãe então deu aquele típico sorriso dela de quem diz “mas isso eu já sabia” e nós saímos do consultório os dois só pensando em comprar novas lentes de contato.
Dessa vez, no caminho pra casa, a gente pouco se falou. É que eu estava longe dali, lembrando das palavras da enfermeira da Casa Irmão Joseph. Depois que eu saí da cirurgia a gente conversou na sala de recuperação sobre os procedimentos da Casa e ela me dizia como funcionava, para a espiritualidade, a questão do merecimento. Disse que as pessoas se inscrevem para a consulta e que, desde então, todo o processo já se inicia; que os espíritos que atuam nos atendimentos fazem parte de uma rede de cura, mas que o paciente também é parte do processo, pois é importante que ele tenha merecimento para receber os benefícios de melhoria e regeneração.
Aí eu lembrei que nesse momento eu disse pra ela:
– Mas eu não me inscrevi para esta consulta. Não tenho merecimento algum, mal tenho religião.
– Isso a gente não sabe. Quem sabe são eles, os espíritos. Pode ser merecimento seu, do paciente, mas pode ser também alguém que pede o benefício a partir do seu próprio merecimento.
E foi então que eu disse baixinho:
– Minha mãe!




Dona Jurema nos deixou há pouco mais de um mês. E desde então eu tenho a sensação de que ainda terei muitas vidas a agradecer. E eu vou aproveitar cada uma delas. Porque agradecer sempre será pouco.