A primeira coisa que eu pensei depois que saí do
médico foi de que maneira eu ia ficar um ano sem usar lentes de contato. Meus
óculos eram de grau alto, pesados, incômodos e agora o oftalmo me diz que eu
tenho uma tal ceratite herpética, uma inflamação na córnea, e que por isso tenho
que tomar remédios e ficar sem usar as lentes por um ano para não piorar a
situação já que, na maioria dos casos, a inflamação é algo recorrente, ou seja,
vai e volta. Definitivamente, eu estava atônito.
Passado um tempo, certo dia, do nada, minha mãe
me perguntou se eu toparia ir no centro espírita do Irmão Joseph. Me disse que
tinha conseguido uma consulta lá e se eu topasse ela iria comigo. Meus dias
eram de irritação e contrariedade, tudo por causa dos óculos que eu era
obrigado a usar. Então eu disse automaticamente que sim e ela também não me deu
mais detalhes.
No dia marcado estávamos eu e minha mãe na sala
de espera de uma grande casa que ficava no bairro da Glória, no Rio de Janeiro.
Tinha todas as características de um posto de atendimento médico e aquela sala também
seguia este padrão, com as pessoas vestidas de branco, os consultórios de
atendimento numerados etc. A duas coisas que a diferenciavam dos hospitais
convencionais eram uma música erudita tocando baixinho e a luz tremeluzente que
acalmava e acolhia todo o ambiente. As pessoas ali falavam quase que
sussurrando e, de vez em quando, um trabalhador da casa vinha conversar com um
dos pacientes. Sentava-se no banco ao lado para, em seguida, o acompanhar até
uma das salas de atendimento.
Quando chegou a minha vez uma moça me orientou a
entrar na tal sala e a deitar na cama tipo hospitalar, até que o Irmão Joseph fosse
falar comigo. Pediu que eu ficasse calmo e que tudo ia ficar bem. Assim que eu
deitei entrou um homem baixinho. Foi tudo o que eu pude ver pois, logo em
seguida, ele mandou que as pessoas da equipe, que o auxiliavam, botassem um
pano branco, dobrado, por cima dos meus olhos.
Todo o movimento que ele fez, e que eu pude
sentir, foi o tato das suas mãos através do pano colocado nos meus olhos, como
uma venda, e a pressão dos seus dedos, principalmente no olho esquerdo, o acometido
pela ceratite. Intuo que ele falava algo com a sua equipe e talvez pedisse alguns
instrumentos, mas eu só sentia mesmo o tato e a pressão. De repente ele fez um
movimento brusco e disse:
– Sem sangue. Eu não quero sangue!
Ao ouvir aquilo eu já me imaginei totalmente
ensanguentado, moribundo e cego, embora minha percepção estranhamente não
tivesse acusado qualquer tipo de dor. Uma voz então voltou a pedir pra eu ficar
calmo e que tudo já estava acabando.
No minuto seguinte todos saíram da sala e só
ficou a mesma pessoa que havia me trazido. Ela me conduziu até um outro local, pediu
que eu mantivesse a venda nos olhos e que ela mesma retornaria em breve pra me
liberar. Antes de sair me deu um copo d’água e pediu que eu bebesse devagar.
Minha mãe chegou em seguida e assim que pegou
nas minhas mãos eu soube que era ela. Me perguntou se estava tudo bem e que a
enfermeira lhe havia dito que tudo correu muito bem e que a cirurgia foi
perfeita.
– Então eu fiz uma cirurgia? – temi.
– Sim. Quando o Irmão Joseph fez a consulta, na
hora já determinou que o caso era de cirurgia e ele mesmo fez ali na sala. Mas
foi uma cirurgia espiritual, não fica nervoso que está tudo bem.
– Lá dentro ele falou que meu olho estava sangrando
e que ele não queria sangue – alertei.
– O que a equipe do irmão Joseph vê, só eles
veem. É tudo diferente do que a gente vê.
Com a explicação da minha mãe e diante da calma
dela eu só podia ficar calmo também. Até porque dali a poucos minutos a
enfermeira veio me dar alta. Ela chegou, sentou do meu lado e foi tirando a minha
venda até que a vista fosse acostumando com as poucas luzes e ficasse em condições
de eu ir pra casa.
No caminho, naturalmente, minha mãe foi me
explicando muitas coisas sobre o Irmão Joseph, a casa de atendimento e as
cirurgias espirituais. E eu fiquei com vontade de saber mais sobre tudo aquilo.
A orientação de praxe da Casa é que o paciente
ali tratado sempre retorne ao seu médico, de modo que ele possa verificar se
houve alguma mudança, possivelmente a cura ou se o tratamento deve continuar da
mesma forma ou com outros remédios. Na verdade quem deve dar a palavra final
sobre como o paciente deve proceder é o seu médico. E isso é repetido em todos
os tratamentos, no meu inclusive.
Dentro de poucos dias, de novo junto com a minha
mãe, eu estava numa consulta com o meu oftalmo. Me lembro direitinho de como
ele me colocou no aparelho e olhou, olhou. Depois verificou a sua ficha com os
meus dados, mudou de olho, ligou a luzinha forte do instrumento, olhou, tornou
ao olho esquerdo e por fim chamou um colega do consultório ao lado. Os dois
então concluíram algo juntos e logo o outro saiu.
– Olha – ele iniciou – parece que a sua córnea
foi lixada. Se é que uma córnea pode ser lixada, ela foi lixada com uma lixa muito
fina, que não existe no equipamento médico, e essa lixa lixou de um modo tão
suave todo o campo que todas as cicatrizes da ceratite, que normalmente deixam algum
tipo de ulceração, não existem mais. Tem umas marcas bem pequenas, mas sem
qualquer relevo.
– Eu fiz uma consulta espírita há uns meses. O
senhor quer saber o que foi feito?
– Para o bem da continuidade do meu trabalho é
melhor que eu não saiba, não é mesmo? Na minha profissão eu não posso acreditar
em certas coisas que a ciência não me habilita a tal.
– Eu entendo. Mas eu queria saber do senhor se
eu vou poder voltar a usar lente de contato. Isso é o que mais me preocupa
nesse momento – perguntei olhando pra minha mãe.
– Claro que pode. Pelo que eu vi aqui você está
liberadíssimo. Pode usar sim, principalmente as descartáveis que são mais finas
e de melhor assepsia. Pode voltar a usar já e continuamente. Não tem nada aí
que impeça.
Minha mãe então deu aquele típico sorriso dela
de quem diz “mas isso eu já sabia” e nós saímos do consultório os dois só
pensando em comprar novas lentes de contato.
Dessa vez, no caminho pra casa, a gente pouco se
falou. É que eu estava longe dali, lembrando das palavras da enfermeira da Casa
Irmão Joseph. Depois que eu saí da cirurgia a gente conversou na sala de
recuperação sobre os procedimentos da Casa e ela me dizia como funcionava, para
a espiritualidade, a questão do merecimento. Disse que as pessoas se inscrevem para
a consulta e que, desde então, todo o processo já se inicia; que os espíritos
que atuam nos atendimentos fazem parte de uma rede de cura, mas que o paciente
também é parte do processo, pois é importante que ele tenha merecimento para
receber os benefícios de melhoria e regeneração.
Aí eu lembrei que nesse momento eu disse pra
ela:
– Mas eu não me inscrevi para esta consulta. Não
tenho merecimento algum, mal tenho religião.
– Isso a gente não sabe. Quem sabe são eles, os
espíritos. Pode ser merecimento seu, do paciente, mas pode ser também alguém
que pede o benefício a partir do seu próprio merecimento.
E foi então que eu disse baixinho:
– Minha mãe!
Dona Jurema nos deixou há pouco mais de um mês.
E desde então eu tenho a sensação de que ainda terei muitas vidas a agradecer.
E eu vou aproveitar cada uma delas. Porque agradecer sempre será pouco.