quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

O Pequeno Motorista

por André Loureiro

Sabe aquele aniversário em que sua mãe junta as amigas, tias, primas, seus amigos, as “namoradinhas” e fica contando todas as suas histórias de quando você era pequeno? Aquelas que você já ouviu quatrocentas e cinquenta vezes e não aguenta mais, sabe? Pois é, eu tenho uma dessas. Na verdade tenho algumas, mas essa, em especial, eu acho muito legal.
Eu sempre gostei muito de carro. Desde sempre mesmo. Brincava com todo tipo, de controle remoto, que abria as portas, autorama, uns velocípedes que se esforçavam muito em parecer um carrinho e que não lembravam em nada os modelos “gourmet” de hoje... Era apaixonado por corrida, acordava todos os domingos pra ver o Senna correr, falava pra todo mundo que queria ser piloto, queria fazer kart.
Uma amiga da minha mãe tinha um Gol, daqueles mais antigos mesmo, quadradão, todo branco, horroroso o coitado. Mas ele tinha um painel bem diferente do carro da minha mãe, tinha umas luzes coloridas, e eu achava aquilo um máximo. Quando ela ia lá em casa, deixava o carro no quintal e ficava conversando por ali com a minha mãe, com outros amigos. Enquanto isso, eu passava o tempo inteiro dentro do carro dela. Ela deixava só a parte elétrica ligada, eu colocava uma mangueira por cima do teto, de forma a fazer a água cair incessantemente pelo vidro, simulando uma tempestade.
Ficava eu lá, com uns 6 anos, fechado dentro do carro, com a mangueira do quintal presa no teto do carro, jogando água no vidro e com limpador de para-brisa ligado simulando as mais diversas situações que um piloto pudesse enfrentar em Interlagos. Essa era a cena. Passei muitas horas da minha infância naquele carro. E achava o máximo.
Mais ou menos na mesma época, meu pai tinha um Chevette dourado, carinhosamente apelidado de “O Bicho Comeu”. Imagine só o quão fantástica não era a estrutura de sua carroceria para receber tal alcunha. E quando íamos na casa da minha vó, quem “estacionava” o carro era eu. Sentava no colo dele e ia virando o volante pra lá e pra cá, até entrar na garagem. Era regra.
E em meio a tantos carros que eu achava que dirigia, tinha um que era o que eu mais gostava: o carrinho de bate-bate. Gostava porque sabia que naquele lá eu mesmo que dirigia. Acelerava, freava, virava o volante pra onde eu queria. Aquele era de verdade. Era só chegar em algum parque de diversões que tivesse o tal carrinho e pronto. Podia me largar lá o dia inteiro e só buscar quando o parque estivesse fechando. Ficava doido naquele carrinho com uma antena que ia lá no teto e que saía umas luzinhas, que na minha cabeça eram tipo mini relâmpagos, e eu não fazia ideia de como ele era capaz de andar.
Pois bem. Só que a grande questão por trás do carrinho de bate-bate é que, como o nome já diz, ele foi feito pra bater nos outros que estão na pista com você. O objetivo da brincadeira era bater no maior número de carros possíveis. E eu odiava isso! Como me irritava. Eu só queria andar no meu carro, tranquilo, passeando, pegando uma brisa, fazendo umas curvas fechadas, aproveitando todo o espaço da pista, nada além disso. Não estava ali pra ficar jogando o carro em cima de ninguém. Que tipo de piloto faria um troço desses? – pensava eu. Mas pouco adiantava.
Ao ver que eu estava fugindo do propósito da brincadeira, virava o alvo preferido dos meninos mais velhos. Principalmente do meu irmão, que fazia questão de impedir que eu fizesse qualquer coisa que me levasse a acreditar que eu era um piloto de verdade. Mas eu não me abalava. Continuava sem querer causar colisões, nem abalroamentos.
Quando tinha uns 7, 8 anos, fomos no Play City, em São Paulo. Assim que chegamos, obviamente, eu já me encaminhei para a pista de bate-bate que tinha por lá. E aí aconteceu uma coisa muito legal, que eu só fui me dar conta muitos anos depois. Vou contar primeiro a versão do que eu entendi naquele dia e, em seguida, o que aconteceu nos bastidores, que eu só pude entender muito tempo depois.
Estava eu lá, dirigindo meu carrinho, procurando, como sempre, a minha paz, e sendo atrapalhado pelos meninos que usavam a brincadeira com o objetivo pelo qual ela foi criada. Dirigia tranquilo, tentando me esquivar de todos que jogavam o carro em cima do meu. Fiquei um bom tempo na pista. Enquanto dirigia, vi que na fila apareceu uma menina. Branquinha, loirinha, toda bonequinha. E todos que estavam na pista eram meninos, uns até mais velhos que eu. Todos já tinham avistado ela por ali, e aposto que muitos acharam ela tão linda quanto eu achei. Olhei pra ela e pensei:
- Caramba, coitada dessa menina! Se ela entrar aqui todo mundo vai querer bater no carro dela! Esses garotos não têm coração! Isso não vai dar certo!
Mas depois pensei que talvez ela tivesse por ali só olhando mesmo, que não fosse entrar na pista. E continuei dirigindo. Em dado momento, soou o alarme, e era o fim do tempo daquela turma que estava na pista. Eu já estava na pista há umas duas rodadas e ficaria muito mais, se dependesse de mim. Quando me preparava para sair do carrinho, eis que surge a minha mãe no meio da pista, ao lado do meu carro, com a tal menina que estava na fila. Eu, envergonhado até a última mitocôndria ribonucleica, fiquei paralisado sem entender nada. E minha mãe falou:
- Dé, essa é a fulana, ela queria brincar, mas não sabe dirigir. E ela quer ir com você no carrinho, tem problema?
Eu, já com o lado esquerdo paralisado, pensei: Oi??? Essa menina, toda branquinha, toda loirinha, vai sentar do meu lado no carrinho??? Não consegui responder nada, só balancei a cabeça.
Ela meio desajeitada, entrou no carrinho e sentou do meu lado. Nem tive coragem de olhar pra ela direito, só olhava para os outros meninos que estavam na pista, todos chocados com a cena, e morrendo de inveja. E lá fomos nós. Eu, apesar de ainda com o lado esquerdo paralisado, fui pilotando meu carrinho como se nada tivesse acontecendo. Numa tocada suave, “na ponta dos dedos”, como diria Galvão Bueno, desfilando pela pista com a menina do meu lado.
Nos primeiros minutos, a galera que levava o nome do brinquedo ao pé da letra ainda tentava nos atingir, e eu escapando de todas as formas. Fazia de tudo pra que ninguém batesse na gente. Já não gostava quando estava sozinho, agora então que tinha uma dama no mesmo veículo, eu não poderia permitir nenhum desconforto a ela!
Não me lembro exatamente, mas se bem me conheço não trocamos nenhuma palavra durante aqueles longos minutos. E assim foi, até o alarme tocar novamente. Saímos do carro e fomos até a saída. Encontrei a minha mãe, que estava ao lado do pai dela. Ele me cumprimentou, agradecendo de eu ter levado a filha dele. Eu, ainda sem graça, mal falei alguma coisa. Mas por dentro estava todo bobo, todo orgulhoso. E fui embora com a minha mãe para outro brinquedo, ainda olhando pra trás pra ver se ela viria também.
Agora, o que aconteceu nos bastidores foi o seguinte: O pai da menina, já tinha chegado aos arredores da pista há um bom tempo. Assim que eles chegaram, minha mãe, que me vigiava ali por perto, logo viu e achou curioso uma menina com os mesmos 7, 8 anos que eu, entrar naquela pista pra ficar batendo o carro um no outro. Eles ficaram perto da minha mãe por um tempo, as rodadas iam acabando e nada da menina entrar na pista. Minha mãe meio distraída, olhando também o meu irmão, continuava por ali, quando de repente o pai da menina falou:
- Aquele ali ó! Aquele branquinho de cabelo loiro. Quero que ela vá com ele! Ele não tá jogando o carro em ninguém, tá dirigindo direitinho! Ela vai com ele!
Minha mãe já imaginou que o branquinho de cabelo loiro, que não batia em ninguém, era o filho dela e se aproximou para falar com o pai da menina. O resto da história é aquele.
No final das contas, piloto eu não era, não andava com nenhuma adrenalina, não fazia manobras arriscadas, mas em matéria de segurança e conforto, eu era imbatível! Minha mãe pode até contar essa história pela quadricentésima quinquagésima primeira vez que eu nem vou me importar.
Não vou mesmo!