terça-feira, 22 de março de 2016

O Origami


Aprovado na fila da adoção, o futuro pai se prepara para finalmente visitar o abrigo. Nervoso, ele pergunta a uma amiga e conselheira de anos como é essa sensação, como ele vai de um modo ou de outro escolher o filho que quer adotar? Na sua calma de conselheira e amiga ela diz pelo telefone que ele apenas fique calmo, pois quando ele cruzar o olhar com o filho ele vai saber que aquele é o seu filho. Comigo também foi assim, não tem erro – dizia ela. Ele então suspirou, apertou os lábios e ficou olhando as árvores pela janela como se olhasse o nada.
No dia marcado lá estava ele. Uma funcionária veio recebê-lo na porta e o instruiu que num primeiro momento o objetivo daquelas visitas era apenas brincar com os acolhidos, ficar no meio deles, passar um tempo, conhecer e, principalmente, estar aberto a todas as possibilidades de empatia, pois os passos a seguir viriam justamente disso.
Ele então entrou no pátio do abrigo, que ainda estava vazio, e ficou ali olhando os brinquedos, a caixa de areia, a gangorra, o balanço e notou que no banco ao lado estava um menino de uns 12 anos, bem maior do que a faixa etária do lugar. Bem vestido, de calça jeans e um casaco bonito, ele ficou olhando o menino e imaginou que devia ser alguém acompanhando os pais em visita a casa.
- É adoção? – perguntou o menino.
E o homem respondeu que sim, meio automático, meio confuso.
O menino então disse que logo os menores iriam sair para brincar. Não vai demorar nada – avisou – e foi mesmo rápido, pois no minuto seguinte já tinha um monte de crianças, monitores e brinquedos espalhados pelo pátio.
O homem passou a manhã toda ali, circulando e brincando com as crianças. De repente ele avistou o mesmo menino, afastado, com umas canetas coloridas na mão desenhando num papel. Se aproximou, resolveu puxar papo de novo e foi aí que ele percebeu que o menino também era interno. Relembrou a pergunta dele, “se era adoção”, e rapidamente entendeu tudo, o ar melancólico daquela pergunta, uma certa tristeza no ar e pensou no tempo que ele devia estar ali, vendo as crianças sendo adotadas e ele ir ficando.
- Você sabe fazer aviãozinho de papel? – animou-se o homem, sentando ao lado dele.
- Não sei não – disse o menino encabulado.
Ele pegou uma folha de papel, dobrou daqui e de lá, até que fez o aviãozinho e disse ao menino que era fácil, muito fácil. O menino então perguntou:
- Você sabe fazer um pássaro?
- Um pássaro? De papel? Claro que não. Isso é muito difícil.
O menino então pegou uma folha nova e foi ensinando ao homem cada dobra, cada volta, cada vinco. Em dois minutos surgia um belo pássaro de papel em cima da mesa. O homem ficou demais de surpreso e foi logo perguntando como ele aprendeu aquilo, como ele tinha aquela habilidade com o papel, e quis saber tudo.
- Isso se chama origami – ensinou o menino. Eu aprendi isso na internet, só olhando os vídeos mesmo. Aqui tem uma sala que tem computador, sabe?  O origami é uma coisa que os japoneses ensinam nas escolas de lá e eu achei bem legal. Como aqui eu tenho como conseguir papel, fui aprendendo, aprendendo e pronto.
Imediatamente o homem chorou. Tentou esconder o mais que pode, mas não conseguiu. As lágrimas iam saindo e ele seguia conversando com o menino, enquanto lembrava das palavras da amiga no telefone que lhe dizia “você vai saber quando encontrar”.
No final daquele ano a adoção foi legalizada. Feliz como nunca esteve antes, o pai hoje é um colaborador da causa da adoção no Brasil. Quando é convidado pra dar palestras em reuniões de adoção ele não esquece jamais de mencionar a frase da amiga, mas cuida também de somar ao seu testemunho uma singela reflexão.
Diz ele que toda a sua surpresa com a habilidade do filho para o origami, o levou a pensar nas possibilidades que ele teria se tivesse acesso a várias outras áreas do conhecimento. Ele só tinha o papel e foi com o papel que ele aprendeu o origami. Em tempos de preconceito e egoísmo, de exclusão, desigualdades e negação de direitos sociais, o que nossas crianças não fariam, e qual não seria o potencial delas se tivessem um mínimo de acesso ao esporte, à música, ao teatro, à literatura e a tantas outras coisas.
O Japão é do outro lado do mundo.
Mas ainda é o mesmo mundo.
O Japão pode ensinar origami pela internet.
Não é tão difícil aprender com o Japão.


quinta-feira, 10 de março de 2016

A Troca de Camisas


Meu sobrinho é vascaíno. Daquele tipo doente e roxo. Mas eu gosto dele mesmo assim. É aquela história: ninguém é perfeito, o guri é legal, e não teve culpa das influências que o pressionaram a escolher aquele time. Além do mais eu sou flamenguista, talvez tão doente quanto ele, e entendo que essas coisas aconteçam de vez em quando, de alguém muito gente boa calhar de não torcer pelo Flamengo.
Uma tarde a gente estava vendo um jogo juntos e o Vasco até que jogava bem, mas não conseguia fazer gol. Ele percebeu os meus comentários e perguntou se eu estava torcendo pro Vasco mesmo ou era só impressão dele. O outro time era um mero coadjuvante no cenário nacional, nem lembro mais qual era o nome e, por isso, eu expliquei a ele que o Vasco estava merecendo ganhar e que o outro time só se defendia, enfeando o que ainda restava de futebol naquela partida.
Ele me olhou um segundo, ressabiado, e propôs:
 Tio, se tu torcer pelo Vasco mesmo e se o Vasco ganhar esse jogo aqui eu visto a camisa do Flamengo por um dia inteirinho.
 Vamos fazer o seguinte então – eu devolvi a bola. Se o Vasco ganhar e tu vestir a camisa do Mengão como está dizendo eu visto a do Vasco pelo mesmo tempo, junto com você.
Depois de uma risada alta, ele esfregou as mãos e disse um sonoro agora sim, senta aí tio, vamos empurrar esse time pra vitória. Eu, que estava o tempo todo de pé atrás do sofá, me dei conta que aquilo era um caminho sem volta e ele, cada vez mais animado, falava da beleza dos cantos da torcida vascaína, as bandeiras enormes atrás do gol etc.
O Vasco ganhou o jogo e no fim da partida ficou uma dúvida no ar se iríamos mesmo cumprir a proposta feita antes do jogo.
 Tu vai mesmo botar a camisa do Vasco? – ele começou.
 Eu vou. E tu vai vestir a do Flamengo?
 Pega lá que eu visto agora mesmo – disse um decidido sobrinho, todo animado.
 Vamos fazer o seguinte – tentei botar uma certa ordem naquela insanidade toda. Amanhã a gente vai buscar as suas duas avós no aeroporto, né? Então, vamos deixar pra vestir a camisa quando formos lá. Aí a gente vai com as camisas trocadas, um não vai poder zoar o outro e todos os amigos vão nos ver. Que tal?
 Fechado – disse ele, embora eu tenha ficado com a sensação de que ele não contava de ir pra rua com a camisa rubro-negra.
Enfim, na manhã seguinte estávamos nós dois na frente do mesmo espelho, um olhando pra camisa do outro, suspirando fundo, querendo fugir, mas ao mesmo tempo pensando que trato é trato e, afinal, ninguém ia morrer por usar a camisa do time rival. Penteamos o cabelo e fomos pegar o carro rumo ao aeroporto.
A gente estava visivelmente incomodado e ao mesmo tempo tentava vencer aquele desafio, um tanto saudável. No caminho concordamos que tivemos uma grande sorte de nenhum amigo do prédio cruzar com a gente, “daquele jeito”.
A primeira coisa que a vó falou quando nos viu foi um desconfiado “ué, o que houve aqui com vocês?”, nos tirando de cima a baixo. A gente explicou no caminho a aposta e depois de contar os detalhes também para os meninos do prédio, passamos o sábado todo cumprindo o acordo, rindo um monte é verdade, e soltando as piadinhas provocativas de parte a parte, dizendo como o outro ficou muito melhor com a camisa do rival.
No dia seguinte, já de manhã, meu sobrinho me contou que levou a maior bronca do irmão mais velho, que morava em Salvador na época. Disse que ele tinha espinafrado a ideia da nossa troca das camisas e que aquilo não se fazia, que não era pra vestir de jeito nenhum a camisa do Flamengo. “Podia ter apostado qualquer coisa, meu irmão, mas vestir aquela camisa, de jeito nenhum”  ralhou o irmão, encerrando a bronca e desligando o telefone.
A gente então ficou ali conversando sobre o radicalismo daquela conversa, pois que era só uma brincadeira e qualquer um ia aceitar na boa aquela aposta maluca e, no fundo, até engraçada. Achei que tudo tinha sido muito duro e que o irmão pegou pesado ao entender daquele jeito, uma paixão exageradamente radical, e até ri do comportamento dele. Deve ser porque ele é vascaíno – pensei cá com o meu time de botões.
Naquela mesma tarde de domingo, no início da noite, como sempre faço, liguei pro meu filho que mora no Rio e contei da aposta e de termos ido ao aeroporto juntos.
 Pai, tu tá de sacanagem? Fala que tu tá de sacanagem! Ah, tu não fez isso. Tu não vestiu a camisa do Vasco!
 O que tem de mal nisso, rapaz?
 Pai, podia apostar qualquer coisa. Qualquer coisa menos vestir a camisa do Vasco, pô! Não tô acreditando! E alguém te viu assim? Algum conhecido te viu na rua?
Aquela conversa foi longa. Não tinha jeito de ele aprovar a aposta da gente. Eu achando que meu sobrinho baiano tinha sido radical, não fazia ideia de como meu filho ia ser ainda mais que ele. Mas enfim, eu fui tenteando a pipa, dizendo que era uma brincadeira, que ninguém tinha morrido ou se machucado, que aquilo tinha sido uma experiência de tolerância, de aceitar o outro como ele é... etc...
No meio do silêncio dele eu até achei que a ligação tinha caído. Aí perguntei se ele estava lá, ainda me ouvindo, e ele respondeu como se estivesse voltando de um longo e tortuoso pensamento:
 Me diz uma coisa: vocês não tiraram fotos com essas camisas trocadas não, né?
 Não. Não lembramos de tirar uma única foto. Que pena – disse eu atônito com a pergunta.
E ele finalizou:
 Ainda bem. Graças a Deus! Tirar foto, aí já seria demais pra mim. Ainda bem – e desligamos.
Não lembro quanto tempo fiquei olhando pro telefone, mudo, na minha mão.