quinta-feira, 10 de março de 2016

A Troca de Camisas


Meu sobrinho é vascaíno. Daquele tipo doente e roxo. Mas eu gosto dele mesmo assim. É aquela história: ninguém é perfeito, o guri é legal, e não teve culpa das influências que o pressionaram a escolher aquele time. Além do mais eu sou flamenguista, talvez tão doente quanto ele, e entendo que essas coisas aconteçam de vez em quando, de alguém muito gente boa calhar de não torcer pelo Flamengo.
Uma tarde a gente estava vendo um jogo juntos e o Vasco até que jogava bem, mas não conseguia fazer gol. Ele percebeu os meus comentários e perguntou se eu estava torcendo pro Vasco mesmo ou era só impressão dele. O outro time era um mero coadjuvante no cenário nacional, nem lembro mais qual era o nome e, por isso, eu expliquei a ele que o Vasco estava merecendo ganhar e que o outro time só se defendia, enfeando o que ainda restava de futebol naquela partida.
Ele me olhou um segundo, ressabiado, e propôs:
 Tio, se tu torcer pelo Vasco mesmo e se o Vasco ganhar esse jogo aqui eu visto a camisa do Flamengo por um dia inteirinho.
 Vamos fazer o seguinte então – eu devolvi a bola. Se o Vasco ganhar e tu vestir a camisa do Mengão como está dizendo eu visto a do Vasco pelo mesmo tempo, junto com você.
Depois de uma risada alta, ele esfregou as mãos e disse um sonoro agora sim, senta aí tio, vamos empurrar esse time pra vitória. Eu, que estava o tempo todo de pé atrás do sofá, me dei conta que aquilo era um caminho sem volta e ele, cada vez mais animado, falava da beleza dos cantos da torcida vascaína, as bandeiras enormes atrás do gol etc.
O Vasco ganhou o jogo e no fim da partida ficou uma dúvida no ar se iríamos mesmo cumprir a proposta feita antes do jogo.
 Tu vai mesmo botar a camisa do Vasco? – ele começou.
 Eu vou. E tu vai vestir a do Flamengo?
 Pega lá que eu visto agora mesmo – disse um decidido sobrinho, todo animado.
 Vamos fazer o seguinte – tentei botar uma certa ordem naquela insanidade toda. Amanhã a gente vai buscar as suas duas avós no aeroporto, né? Então, vamos deixar pra vestir a camisa quando formos lá. Aí a gente vai com as camisas trocadas, um não vai poder zoar o outro e todos os amigos vão nos ver. Que tal?
 Fechado – disse ele, embora eu tenha ficado com a sensação de que ele não contava de ir pra rua com a camisa rubro-negra.
Enfim, na manhã seguinte estávamos nós dois na frente do mesmo espelho, um olhando pra camisa do outro, suspirando fundo, querendo fugir, mas ao mesmo tempo pensando que trato é trato e, afinal, ninguém ia morrer por usar a camisa do time rival. Penteamos o cabelo e fomos pegar o carro rumo ao aeroporto.
A gente estava visivelmente incomodado e ao mesmo tempo tentava vencer aquele desafio, um tanto saudável. No caminho concordamos que tivemos uma grande sorte de nenhum amigo do prédio cruzar com a gente, “daquele jeito”.
A primeira coisa que a vó falou quando nos viu foi um desconfiado “ué, o que houve aqui com vocês?”, nos tirando de cima a baixo. A gente explicou no caminho a aposta e depois de contar os detalhes também para os meninos do prédio, passamos o sábado todo cumprindo o acordo, rindo um monte é verdade, e soltando as piadinhas provocativas de parte a parte, dizendo como o outro ficou muito melhor com a camisa do rival.
No dia seguinte, já de manhã, meu sobrinho me contou que levou a maior bronca do irmão mais velho, que morava em Salvador na época. Disse que ele tinha espinafrado a ideia da nossa troca das camisas e que aquilo não se fazia, que não era pra vestir de jeito nenhum a camisa do Flamengo. “Podia ter apostado qualquer coisa, meu irmão, mas vestir aquela camisa, de jeito nenhum”  ralhou o irmão, encerrando a bronca e desligando o telefone.
A gente então ficou ali conversando sobre o radicalismo daquela conversa, pois que era só uma brincadeira e qualquer um ia aceitar na boa aquela aposta maluca e, no fundo, até engraçada. Achei que tudo tinha sido muito duro e que o irmão pegou pesado ao entender daquele jeito, uma paixão exageradamente radical, e até ri do comportamento dele. Deve ser porque ele é vascaíno – pensei cá com o meu time de botões.
Naquela mesma tarde de domingo, no início da noite, como sempre faço, liguei pro meu filho que mora no Rio e contei da aposta e de termos ido ao aeroporto juntos.
 Pai, tu tá de sacanagem? Fala que tu tá de sacanagem! Ah, tu não fez isso. Tu não vestiu a camisa do Vasco!
 O que tem de mal nisso, rapaz?
 Pai, podia apostar qualquer coisa. Qualquer coisa menos vestir a camisa do Vasco, pô! Não tô acreditando! E alguém te viu assim? Algum conhecido te viu na rua?
Aquela conversa foi longa. Não tinha jeito de ele aprovar a aposta da gente. Eu achando que meu sobrinho baiano tinha sido radical, não fazia ideia de como meu filho ia ser ainda mais que ele. Mas enfim, eu fui tenteando a pipa, dizendo que era uma brincadeira, que ninguém tinha morrido ou se machucado, que aquilo tinha sido uma experiência de tolerância, de aceitar o outro como ele é... etc...
No meio do silêncio dele eu até achei que a ligação tinha caído. Aí perguntei se ele estava lá, ainda me ouvindo, e ele respondeu como se estivesse voltando de um longo e tortuoso pensamento:
 Me diz uma coisa: vocês não tiraram fotos com essas camisas trocadas não, né?
 Não. Não lembramos de tirar uma única foto. Que pena – disse eu atônito com a pergunta.
E ele finalizou:
 Ainda bem. Graças a Deus! Tirar foto, aí já seria demais pra mim. Ainda bem – e desligamos.
Não lembro quanto tempo fiquei olhando pro telefone, mudo, na minha mão.