Meu sobrinho é vascaíno. Daquele tipo doente e
roxo. Mas eu gosto dele mesmo assim. É aquela história: ninguém é perfeito, o
guri é legal, e não teve culpa das influências que o pressionaram a escolher
aquele time. Além do mais eu sou flamenguista, talvez tão doente quanto ele, e
entendo que essas coisas aconteçam de vez em quando, de alguém muito gente boa
calhar de não torcer pelo Flamengo.
Uma tarde a gente estava vendo um jogo juntos e o Vasco até que jogava bem, mas não conseguia fazer gol. Ele percebeu os
meus comentários e perguntou se eu estava torcendo pro Vasco mesmo ou era só
impressão dele. O outro time era um mero coadjuvante no cenário nacional, nem
lembro mais qual era o nome e, por isso, eu expliquei a ele que o Vasco estava
merecendo ganhar e que o outro time só se defendia, enfeando o que ainda
restava de futebol naquela partida.
Ele me olhou um segundo, ressabiado, e propôs:
– Tio, se tu torcer pelo Vasco mesmo e se o
Vasco ganhar esse jogo aqui eu visto a camisa do Flamengo por um dia
inteirinho.
– Vamos fazer o seguinte então – eu devolvi a
bola. Se o Vasco ganhar e tu vestir a camisa do Mengão como está dizendo eu
visto a do Vasco pelo mesmo tempo, junto com você.
Depois de uma risada alta, ele esfregou as mãos
e disse um sonoro agora sim, senta aí tio, vamos empurrar esse time pra
vitória. Eu, que estava o tempo todo de pé atrás do sofá, me dei conta que
aquilo era um caminho sem volta e ele, cada vez mais animado, falava da beleza
dos cantos da torcida vascaína, as bandeiras enormes atrás do gol etc.
O Vasco ganhou o jogo e no fim da partida ficou uma
dúvida no ar se iríamos mesmo cumprir a proposta feita antes do jogo.
– Tu vai mesmo botar a camisa do Vasco? – ele começou.
– Eu vou. E tu vai vestir a do Flamengo?
– Pega lá que eu visto agora mesmo – disse um
decidido sobrinho, todo animado.
– Vamos fazer o seguinte – tentei botar uma
certa ordem naquela insanidade toda. Amanhã a gente vai buscar as suas duas
avós no aeroporto, né? Então, vamos deixar pra vestir a camisa quando formos
lá. Aí a gente vai com as camisas trocadas, um não vai poder zoar o outro e
todos os amigos vão nos ver. Que tal?
– Fechado – disse ele, embora eu tenha ficado com a sensação
de que ele não contava de ir pra rua com a camisa rubro-negra.
Enfim, na manhã seguinte estávamos nós dois na frente
do mesmo espelho, um olhando pra camisa do outro, suspirando fundo, querendo
fugir, mas ao mesmo tempo pensando que trato é trato e, afinal, ninguém ia
morrer por usar a camisa do time rival. Penteamos o cabelo e fomos pegar o
carro rumo ao aeroporto.
A gente estava visivelmente incomodado e ao
mesmo tempo tentava vencer aquele desafio, um tanto saudável. No caminho
concordamos que tivemos uma grande sorte de nenhum amigo do prédio cruzar com a
gente, “daquele jeito”.
A primeira coisa que a vó falou quando nos viu foi
um desconfiado “ué, o que houve aqui com vocês?”, nos tirando de cima a baixo.
A gente explicou no caminho a aposta e depois de contar os detalhes também para
os meninos do prédio, passamos o sábado todo cumprindo o acordo, rindo um monte
é verdade, e soltando as piadinhas provocativas de parte a parte, dizendo como
o outro ficou muito melhor com a camisa do rival.
No dia seguinte, já de manhã, meu sobrinho me
contou que levou a maior bronca do irmão mais velho, que morava em Salvador na
época. Disse que ele tinha espinafrado a ideia da nossa troca das camisas e que
aquilo não se fazia, que não era pra vestir de jeito nenhum a camisa do
Flamengo. “Podia ter apostado qualquer coisa, meu irmão, mas vestir aquela
camisa, de jeito nenhum” – ralhou o irmão, encerrando a bronca e desligando o
telefone.
A gente então ficou ali conversando sobre o
radicalismo daquela conversa, pois que era só uma brincadeira e qualquer um ia
aceitar na boa aquela aposta maluca e, no fundo, até engraçada. Achei que tudo
tinha sido muito duro e que o irmão pegou pesado ao entender daquele jeito, uma
paixão exageradamente radical, e até ri do comportamento dele. Deve ser porque ele é
vascaíno – pensei cá com o meu time de botões.
Naquela mesma tarde de domingo, no início da
noite, como sempre faço, liguei pro meu filho que mora no Rio e contei da
aposta e de termos ido ao aeroporto juntos.
– Pai, tu tá de sacanagem? Fala que tu tá de
sacanagem! Ah, tu não fez isso. Tu não vestiu a camisa do Vasco!
– O que tem de mal nisso, rapaz?
– Pai, podia apostar qualquer coisa. Qualquer
coisa menos vestir a camisa do Vasco, pô! Não tô acreditando! E alguém te viu
assim? Algum conhecido te viu na rua?
Aquela conversa foi longa. Não tinha jeito de
ele aprovar a aposta da gente. Eu achando que meu sobrinho baiano tinha sido
radical, não fazia ideia de como meu filho ia ser ainda mais que ele. Mas
enfim, eu fui tenteando a pipa, dizendo que era uma brincadeira, que ninguém
tinha morrido ou se machucado, que aquilo tinha sido uma experiência de
tolerância, de aceitar o outro como ele é... etc...
No meio do silêncio dele eu até achei que a
ligação tinha caído. Aí perguntei se ele estava lá, ainda me ouvindo, e ele
respondeu como se estivesse voltando de um longo e tortuoso pensamento:
– Me diz uma coisa: vocês não tiraram fotos com
essas camisas trocadas não, né?
– Não. Não lembramos de tirar uma única foto.
Que pena – disse eu atônito com a pergunta.
E ele finalizou:
– Ainda bem. Graças a Deus! Tirar foto, aí já
seria demais pra mim. Ainda bem – e desligamos.
Não lembro quanto tempo fiquei olhando pro
telefone, mudo, na minha mão.