Nos idos de 1995 eu já tinha a minha fama de ter
sempre balas e doces na gaveta do trabalho. Essa minha, digamos, ideologia de ter sempre algo doce por perto para o caso da proximidade exagerada de pessoas
amargas, vem de muito longe e remonta aos tempos da escola primária, se bem me
lembro. Daí para a vida adulta a transição foi certamente doce, cercada de
muitas guloseimas, jujubas e afins, que eu, por via das dúvidas, cuidava pra
que não faltassem em momento algum.
Mas como eu dizia, sobre o ano de 1995, nessa
época meu irmão fez uma viagem à Dinamarca. Foi fazer uns shows de voz e violão
e ficou uns três meses por lá. Na volta, claro, pro seu irmão mais velho ele
trouxe um pacote de balas. Disse que era a bala mais famosa por lá e que embora
tivesse aparência de algo como chocolate, que eu não gosto, era de um tal de alcaçuz,
uma das mais antigas plantas a serem usadas para
fins medicinais.
Se é bala e se tem açúcar é comigo mesmo. Abri o pacote e tratei logo de
provar a dita cuja. E aí bastou 10 segundos pra eu querer cuspir longe e me
livrar daquele gosto horrível do troço. Jamais na vida eu poderia pensar que
alguém pudesse criar uma bala tão ruim e de gosto tão repulsivo. Simplesmente a
gente não conseguia deixar aquele fel na boca e a sensação era tão ruim que a pessoa
logo procurava um lugar adequado pra jogar aquilo fora.
Depois que viram a minha reação, todos que
estavam perto resolveram provar. Minha irmã primeiro, meus pais depois, a
namorada do meu irmão idem e todos, sem exceção, abominaram aquela coisa do
capeta. Minha mãe até disse que aquilo não era presente que se desse a ninguém,
quanto mais ao próprio irmão. O que fez a gente dar muita risada com a
observação crítica e não muito sutil dela.
Passamos um bom tempo rindo e depois tentando
saber mais detalhes sobre a tal bala, mas o fato de ela ser repulsiva era tão
incomum que, quando eu levei pro trabalho no dia seguinte, a coisa acabou tomando
outra dimensão.
Aos meus colegas de sala, claro, eu fui logo
anunciando as propriedades infaustas da bala, o que logo foi comprovado por
eles, um a um. E para minha surpresa logo surgiu um plano tramado em conjunto
por todos nós, eu inclusive, que se transformou na alegria da tarde. A gente
resolveu que só queria dar risada da cara dos colegas que costumavam vir na
minha sala perguntar se tinha bala. Simples.
O primeiro que a gente chamou foi o rapaz da
copiadora. Dissemos que tinha um trabalho pra copiar e logo depois de desligar
o telefone ele entrou. O saco de balas em cima da mesa. Ele olhou. Perguntou se
era bala. Se podia pegar uma e a gente disfarçando só disse hã-hã e ficou meio de
lado pra ver a reação dele. No instante seguinte o garoto não sabia o que fazer
com a bala na boca. Desconcertado, ele fez todas as caretas, tentando não demonstrar
a trava na garganta até que por fim pegou a lixeira na mão pra jogar a bala
fora.
E foi assim a tarde toda. As simulações das
pessoas eram as mais bizarras, na tentativa de esconder a vontade de cuspir a
bala, o engasgo pelo seu gosto de sei-lá-o-quê e a vergonha por querer jogar
fora ali no meio da sala mesmo. Muitos davam um jeito de sair rápido, dizendo
que tinham algo urgente, e a gente ia pra porta da sala olhar o sujeito pelo
corredor, até vê-lo se livrar da bala no cesto perto do elevador. E aí a gente
batia as palmas das mãos como adolescentes e chamávamos a próxima vítima.
Era bem legal também ver que as próprias pessoas
que caiam na pegadinha da bala de alcaçuz, depois voltavam na nossa sala e
sugeriam o nome de outro colega pra provar do mesmo veneno, algo quase literal.
Ficavam ali por perto só pra também ver a reação do outro e depois de outro. As
técnicas e suas estagiárias, todas arrumadinhas, também caíam na risada depois
de provar a bala e logo pediam pra chamar outra amiga da sala. Era um entra e
sai naquela assessoria de comunicação que só vendo.
No final da tarde, perto das 5 horas, a gente
sempre tinha uma reunião com o superintendente. Todo mundo estava na mesa
esperando por ele e conversando, claro, sobre o assunto do dia: a bala maligna.
Aí ele entrou com a secretária, sentou na cabeceira, pegou uns papéis de uma
pasta, uns processos e, antes de iniciar disse:
- Na volta do almoço eu encontrei essa bala aqui
bem na minha mesa, num pires branco. Ainda não comi porque quero agradecer a quem
me deu. Vocês sabem quem foi?
Pronto, estava acabada a reunião.
Cada um tinha uma história pra contar sobre a
sua experiência com a bala, a careta de quem provou, ao ponto que todos
começaram a falar ao mesmo tempo, num tumulto só, risadas altas, narrativas
detalhadas das estagiárias que diziam do horror que era o gosto, enfim. O fato
é que no meio daquela turba toda ninguém notou que o superintendente tinha
provado a bala e estava com ela na boca o tempo todo, ouvindo os relatos.
Quando todo mundo se deu conta e fez-se o
silêncio, ele disse:
- Eu gostei. É de alcaçuz, né? Ótima bala.
- Aaaaahhh – foi o coro geral ouvido de toda a
sala, que misturava incredulidade e espanto!