quarta-feira, 28 de setembro de 2016

E.T. - O Filme


No início da década de 90 o filme ET já era um clássico do cinema mundial. Todos os anos, durante o mês de dezembro, sempre tinha um cinema no Rio de Janeiro que passava o filme novamente, o que era um atrativo para as crianças em férias escolares e também para os pais, que davam um jeito de incluir o programa no final de semana da garotada.
Quando eu vi o anúncio no jornal não tive dúvidas, tratei logo de combinar com o meu filho Daniel que a gente ia no cinema ver um filme muito legal, que eu já tinha visto há muito tempo, e que ele também ia gostar, pois tinha nave espacial, perseguição de bicicletas e muita aventura. Mostrei uma foto do ET pra ele e falei que o personagem tinha poderes especiais, mas que ele ia ver tudo com seus próprios olhos.
Logo na entrada pude perceber que, assim como eu, muitos pais estavam levando seus filhos pela primeira vez ao cinema e tinham escolhido especialmente aquele filme pra que ficasse marcada para sempre aquela primeira experiência.
O problema é que naquele tempo ainda não havia dublagem para os filmes do cinema, assim como tinha pra televisão. No cinema, quando o filme era pra criança, os pais liam as legendas em voz alta, ou melhor, em voz baixa, pra que só o seu filho ouvisse. Claro que todo esse esforço era pra garantir total atenção das crianças para que pudessem compreender o que os pais liam e para que, elas próprias, entendessem a trama. Todos na sala estavam super empenhados para que os filhos tivessem a mesma emoção que eles, quando assistiram ao filme pela primeira vez.
Assim, pais sentados, filhos no colo, começa a sessão. Mal começou o filme e o que se ouvia na sala era um coro de leitores de legendas. Todos os pais liam para os filhos ao mesmo tempo e alguns até ajustavam o tempo das palavras pra que o coral ficasse sincronizado. Gosto de lembrar daquilo até hoje. A grande sala escura e aquelas vozes todas. Era quase uma leitura dramática das legendas. Aliás, pela entonação que se ouvia, com certeza tinha gente com talento de ator ou dublador ali, o que tornava tudo muito mais legal para as crianças.
Com o desenrolar da trama, mais do que apenas ler, os pais passaram a se emocionar com o que liam e com a reação dos próprios filhos diante do filme. Às vezes, quando uma criança perguntava algo ao pai ou a mãe, que não tinha entendido, a explicação servia também pros outros meninos, já que todos podiam ouvir.
Lembro bem da cena das bicicletas voadoras, quando a plateia explodiu aos gritos vendo o cerco policial formado e no último minuto aquelas bikes alçando voo, para delírio daquele maracanã de crianças em pleno gol do seu time. Os pais se abraçavam aos filhos, davam socos no ar juntos, as pipocas caíam pra todo lado e as legendas eram gritadas por todos, a plenos pulmões. Da mesma forma, quando se deu a ressuscitação do extraterrestre, foi outro momento de euforia e alegria. Momentos antes, porém, dava pra ouvir a criançada perguntando aos pais se o ET havia morrido e os pais, sem querer estragar a surpresa, respondiam apenas com um “acho que sim”, também em coro, mas sem muita convicção.
O que mais me marcou nessa sessão, entretanto, foi, claro, o final do filme. Não era possível saber quem estava chorando mais na despedida do menino ao seu amigo de outro planeta: se os pais, vendo a emoção dos filhos, ou os filhos, irremediavelmente desolados com a partida do ET. Uma coisa é certa, os pais, assim como eu, estavam firmes até quase o final, pois sabiam o que ia acontecer. Mas na cena das despedidas um menino ali, bem no meio da sala, tentou consolar o pai em voz alta:
- Ô pai, ele vai voltar um dia! Não fica triste não!
Foi o bastante para que todos os pais desabassem em desconsolo, tentando evitar mais sofrimento ainda para aquela plateia amada que, a partir dali, só merecia um colo bem carinhoso, um grande abraço e um sorvete na saída do cinema.
Do lado de fora, os pais de olhos vermelhos eram todos tios na fila do sorvete. E em cada entreolhar desses tios dava pra identificar certinho quem ali tinha acabado de assistir ao filme ET. É como diz o poeta: através dos olhos se vê a alma.



quarta-feira, 14 de setembro de 2016

A Galinha


Naquele sábado de sol a tarefa doméstica do Nestor era somente ir à feira e comprar uma galinha para o almoço. Combinou com a mulher no dia anterior que daria uma varrida no quintal, de manhã, e depois iria direto pra feira, aproveitando o dia lindo e o calorão do Rio de Janeiro, e escolheria uma galinha grande, na barraca do amigo feirante, o único que vendia a ave viva, “sem aqueles químicos que a indústria coloca nelas”, conforme ele mesmo se vangloriava.
Só que, às vezes, tem situações onde as mais simples tarefas se tornam um problemão, difícil de resolver. Chegar na feira não foi complexo. Nem comprar a galinha depois de um papo saudável com o feirante, antigo conhecido, vascaíno da Barreira. Mas a coisa ficou mesmo intrincada justamente na volta, pois, quis o destino que no trajeto houvesse vários bares no caminho, cheios de amigos e conhecidos que ele só via nos finais de semana e o destino... bem o destino... o destino é algo ingovernável, imprevisível, como todos sabem.
Uma cervejinha aqui, um papinho ali, uma provocação sobre futebol e outra sobre política no bar da esquina e o resultado foi que o Nestor voltou pra casa às 3 da tarde e, pior, sem a bendita galinha.
Assim que entrou a mulher o fitou de cima embaixo e, de pronto, com as mãos nas cadeiras soltou o indefectível “eu sabia”. Ele percebeu, também de pronto, que aquilo era a justa comprovação de que ele realmente tinha feito algo imperdoável e que a tendência da coisa era só piorar.
– Cadê a galinha, Nestor? – perguntou ela, juntando a ponta de todos os dedos da mão.
– Ué. Eu comprei. Eu sei que eu comprei a galinha. Mas não sei onde ela foi parar.
Arrependida de não ter ido com o marido à feira, a mulher se deu conta de que tinha perdido não só o passeio naquela feira livre do subúrbio, que tem caldo de cana no início e todas as folhas para tempero no final, como ainda perdeu a cervejinha com o marido e os amigos, os mesmos que ela agora tentava se lembrar pra poder saber o paradeiro do raio da galinha perdida.
Alguns bares, os mais perto de casa, a mulher tinha até o número e assim foi pro telefone com o caderninho na mão. Ligou pro Bar do Mineiro, depois pro Vamoagir e nada de galinha. O Bar Vamoagir era na verdade Vamos Agir, que era uma frase que o dono sempre repetia, qualquer que fosse o pedido dos clientes. As pessoas marcavam de fazer churrasco lá, feijoada, levavam bolo de aniversário, de batizado, aí combinavam os eventos com o dono e ele, da sua parte, não respondia nem sim nem não, só dizia o famoso “vamos agir”. De tanto ele repetir isso o Vamoagir passou a ser o nome informal do bar.
Enfim, a virtual dona da galinha perguntou nos bares e depois passou a ligar pros amigos. Perguntava a eles se haviam visto o marido e se por acaso sabiam onde ele poderia ter esquecido uma galinha viva enrolada em jornal. Do outro lado da linha os amigos pareciam ter bebido as mesmas cervejas que o marido e, com vozes incertas, respondiam de igual modo, sem a menor precisão dos fatos, o que é deveras natural para a ocasião etílica em que se dava aquela investigação.
Um deles disse que o Nestor já tinha chegado no Mineiro sem galinha nenhuma nas mãos. O outro disse que viu, sim, um embrulho de jornal com ele, no Vamoagir, mas não podia afirmar se aquilo era uma galinha. O terceiro relatou que tinha certeza que a galinha tinha ficado no balcão e que tinha até uma sacola com temperos e que podia jurar que, naquele dia, o amigão Nestor não havia bebido uma só gota, pois que estava com pressa de voltar pra casa, sabendo que a esposa o esperava – que lindo.
A mulher então resolveu, como última tentativa, ligar pro seu Dosdival, marido da dona Cotinha, que era o sujeito mais justo e equilibrado de toda a turma que frequentava o Vamoagir. Dono de curiós e canários premiados, seu Dosdival era abstêmio e, na qualidade de aposentado, passava o dia ali na esquina, só mesmo mudando de calçada ou de bar pra manter os seus animais sempre na sombra, com água e frutas fresquinhas que eram, para ele, o segredo dos belos cantos dos seus passarinhos.
– Alô, seu Dosdival, aqui é a mulher do Nestor. Por acaso o senhor o viu hoje no bar? Sabe dizer se ele estava com uma galinha?
– Olha dona, a senhora vai me desculpar, mas eu tenho os meus amigos ante o maior respeito e não vou ficar aqui falando se eles estavam com essa ou aquela pessoa. Na verdade o seu Nestor é um homem sério e eu posso afirmar que ele não anda com mulheres de jeito nenhum. Sabe que é um dos poucos por quem eu ponho a minha mão no fogo. Ele jamais andaria com esse tipo de mulheres, fique sabendo a senhora.
– Não! Seu Dosdival! Não é mulher, não. Não é nada disso. Eu estou falando de galinha mesmo, de bicho, cocorocó. Ai, meus Deus! Olha, quer saber? Eu desisto. Chega! – e bateu o telefone.