domingo, 27 de novembro de 2016

Ramón


Desde adolescente, Ramón sempre ouvia do primo que o melhor era ir para os Estados Unidos. Todos os amigos acabaram indo, um a um, até que surgiu uma possibilidade real e ele se viu fortemente atraído.
Aquele era o sonho de todo mundo, pensava ele, pois as conversas na escola, no bar da esquina e nas reuniões com os amigos sempre falavam dos planos de prosperidade naquele país. Trabalhar lá, juntar um bom dinheiro e retornar à terra natal com alguma tranquilidade e, quem sabe, começar um novo e rentável negócio.
Seus pais, por sua vez, achavam tudo aquilo uma grande loucura. Ali eles tinham tudo de que precisavam e o governo supria toda a comunidade, oferecendo o melhor em educação, esportes e saúde, um exemplo para muitas nações do mundo. Só que Ramón ouvia aquilo dos pais e acreditava que tudo não passava de opinião acomodada, que talvez pela idade eles já estivessem acostumados com “aquilo” e já não tivessem mais um mínimo de ambição na vida.
No dia e hora marcados ele estava lá, ansioso. O dia amanhecia e todos foram levados a bordo, para aquele arremedo de embarcação. O primeiro adversário a ser vencido é o medo, disse o primo. E Ramón partiu rumo ao paraíso, atravessando um mar claro e que foi até fraterno com aquele estranho barco repleto de esperanças.
Quando chegaram em terra firme um outro sujeito, também da equipe responsável pelo empreendimento, esperava com um caminhão e assim eles passaram o pior pedaço que era próximo da praia, pois era uma região muito vigiada. Ele teve a sensação de que alguns guardas das vigias até os viram, mas estranhamente nada fizeram.
Os dias foram ficando mais difíceis depois daquele desembarque. As condições de vida cada vez mais precárias e Ramón sentiu na pele o que seria o pagamento por aquele esforço de mudança de vida. Na primeira semana ele teve de ficar por mais de 24 horas dentro de um barril de óleo a esperar por alguém que viria lhe buscar, depois de já ter levado alguns dos seus amigos. Completamente extenuado depois de todas essas horas ele mal conseguiu se erguer do barril pra ir com o homem.
Os meses foram passando, as dificuldades se alternando e as perspectivas eram de muito sofrimento. Lavou muito chão de muito banheiro e de muita cozinha. Passou fome muitas vezes, frios intermináveis e a vida nômade era agravada pela cotidiana falta de roupas, de cama e de higiene. Tudo isso começou a minar a sua confiança, até que um dia ele pensou em voltar.
Alquebrado e sem ânimo, as imagens de casa lhe vinham à cabeça já com certa frequência. Aquela rua pacata naquele bairro simples, seu pai saindo pra pescar perto de casa, a mãe estendendo as roupas, os amigos que vinham tocar violão e tomar cravinho juntos. Eram alegrias tristonhas que Ramón já não tinha certeza de que veria algum dia, passados quase cinco anos desde a sua chegada.
Muito trabalho e muito dinheiro foram consumidos pra conseguir um esquema, também clandestino, pra o levar de volta. Mas nada mais importava. Sua decisão era de que jamais seria fugitivo; jamais passaria fome ou frio pra conseguir permanecer em uma terra que atraía a todos pela oportunidade, mas que, na realidade, era uma espécie de tráfico de escravos moderno, sustentado por uma imposição desumana de trabalho e condições subumanas de vida.
Passou por muitos países, muitas fronteiras, até que conseguiu um navio cargueiro, de bandeira desconhecida, na direção de casa. Aliviado, tentava se alegrar a cada milha vencida até que chegou ao porto. Desceu e na mesma hora percebeu que tudo estava diferente. As pessoas com fisionomia triste andavam sem rumo, alguns grupos nas esquinas conversavam e balançavam a cabeça com desânimo.
Perto de um desses grupos notou que eles se reuniam ao redor de uma banca de jornal, com as manchetes expostas. Passou pelas pessoas e se deparou com uma grande fotografia na capa de um dos jornais. Reconheceu o homem da foto e seus joelhos fraquejaram automaticamente. Sentou no meio-fio com desalento, olhou o movimento em volta, se virou pra olhar o mar de novo e um choro triste e silencioso surgiu baixando-lhe a cabeça entre os joelhos. Naquele momento Ramón sentiu que tudo o que ele queria era o abraço da sua mãe. E antes de levantar, apenas murmurou:
- Adeus, comandante! Meu comandante eterno!


terça-feira, 1 de novembro de 2016

O Caminho Pra Casa


Desde pequeno, uma coisa que muito me impressionava era o quanto o meu pai parava na rua pra falar com as pessoas. Às vezes, eu saia com ele pelas ruas de Ramos pra ir a algum lugar, padaria ou feira, e ele ia parando a cada 20 metros pra falar com os vizinhos, os conhecidos ou amigos. Algumas vezes eram só cumprimentos daqueles que sempre acabam com alguma pergunta do tipo “quando você aparece lá em casa?”, enquanto outros eram verdadeiras saudações que demoravam um bom tempo, e onde se contavam casos, falava-se de futebol e das últimas notícias. Enfim, eu ficava só olhando e pensando em quanta gente o meu pai conhecia.
Uma vez a gente estava indo à feira de sábado e um senhor parou um tempão com ele. Falou um bocado e sobre um monte de gente, nomes os mais diversos e até tomou caldo de cana com a gente na entrada da feira. Aí quando o amigo foi embora ele simplesmente me disse que conhecia o sujeito mas não lembrava de onde e que a maioria daquelas pessoas que ele falou meu pai não conhecia. E eu perguntei como é que ele falava um tempão com alguém que nem lembrava quem era. E ele respondeu simplesmente que o cara sabia quem ele era e isso bastava, depois ele ia tentar lembrar quem era o tal sujeito e tudo ia ficar bem.
Era sempre assim. Na companhia do meu pai o caminho de volta pra casa era inevitavelmente algo improvável e mais improvável ainda era o tempo que ia levar essa volta. Mas no fundo eu achava aquilo o máximo. Era tanta gente que gostava dele, que considerava ele e que se alegrava em vê-lo passando na rua e se dispunha a ir cumprimentar, conversar. Aquilo fazia com que eu gostasse ainda mais do meu pai e o admirasse pela atenção que ele dispensava às pessoas, uma qualidade inclusive quase sempre reciprocamente ofertada.
Outro dia, a minha irmã esteve me visitando aqui em Florianópolis. Eu saí com ela pelo Centro, fomos ao Mercado Público, à peixaria, percorremos as ruas de intenso comércio e num certo momento ela me disse que tinha lembrado do nosso pai:
- Caramba, você conhece todo mundo. Fala com todo mundo na rua. Parece até o meu pai.
E foi aí que eu me dei conta de que durante o nosso passeio eu tinha passado pelo galego que vende relógios, pelo segurança do artesanato, por um professor conhecido das reuniões do sindicato e que quando a gente foi almoçar, lá no Chico, em Santo Antônio, o gerente do restaurante me reconheceu, foi lá perto da nossa mesa e a gente ficou conversando um monte antes do almoço.
Fez total sentido pra mim a minha irmã ter lembrado do meu pai e me dizer que eu tinha causado isso. Eu é que não tinha me dado conta. Ainda. Claro que a proporção é outra, mas em certo sentido o que era característica do meu pai estava se repetindo comigo. Me surpreendeu quando essa ficha caiu.
Então, hoje, voltando do trabalho eu passei por uma amiga arqueóloga e seu marido, que tem uma turma que joga um futebol bem bacana na universidade. Nos cruzamos na esquina e paramos pra conversar um pouco, aguçando a minha intenção de voltar a jogar com eles o mais breve possível. Depois dali, atravessando a praça, vi um amigo advogado do outro lado da rua que acenava pra mim dizendo “bom feriado”. Eu disse o mesmo pra ele e seguimos com um sorriso no rosto. No final da praça passou por mim um senhor que me chamou pelo nome e me perguntou como estava o “nosso” museu, ao que eu respondi com o conhecido, apressado e automático “tá tudo bem”. Na verdade eu lembro da fisionomia dele claramente mas não sei bem de onde. Pelo jeito que ele se referiu ao museu, suponho que deve ser alguém que frequentava o extinto projeto de cinema que eu coordenava lá.
Foi o tempo de chegar em casa, ainda há pouco, e toda essa história veio à tona pra que eu sentasse no computador e escrevesse. Simples assim.
E se eu tinha alguma admiração pelo meu pai desde aquela época, ao final desta crônica fiquei imaginando ele por aqui por Floripa, andando do meu lado, vendo eu falar com as pessoas. Quem sabe acabasse por me admirar por isso, como eu a ele, ou mesmo se tornasse um velho amigo de todos os meus amigos, com a facilidade típica e incondicional que tinha para as amizades irrestritas. Enfim.
Imaginar isso tudo me dá muita saudade dele. Uma saudade pra lá de boa, como era voltar pra casa com o meu pai.