quinta-feira, 27 de abril de 2017

Ensaio Sobre a Cegueira de Um País


O homem entra na concessionária e logo relata ao atendente o defeito no seu carro de luxo. Quando o mecânico é chamado, chega logo avisando que não conserta mais carros de gente rica, de empresários ou políticos, pois estes acabaram com os seus direitos trabalhistas e a coisa certa a fazer é não atender qualquer demanda que venha deles. Indignado, sob uma chuva de impropérios e dedos em riste, depois de muita contrariedade, o incrédulo motorista deixa a loja um tanto confuso, sem saber o que fazer.
Depois de amarrar o seu cãozinho na entrada da delicatéssen, a senhora tem a intenção de fazer uma encomenda de pães, queijos e vinhos. A balconista informa que não estão mais fazendo entregas, nem encomendas e que os queijos importados também não serão mais vendidos ali. “Agora só temos artigos comuns e baratos e não atendemos mais os ricos, nem políticos ou empresários que promoveram as reformas trabalhistas e da previdência”, diz a moça. E continua, sublinhando que “se não somos nada pra vocês e, se não merecemos nos aposentar e nem ter direitos trabalhistas, vocês não vão ter mais os produtos. Se quiserem importem de outros países ou façam vocês mesmos nas suas casas, nas suas cozinhas, o que precisarem”.
Assim se seguiu todo aquele dia. Na escola particular os professores fizeram o mesmo com os alunos. No cinema, os bilheteiros não atendiam a burguesia, assim como nas lojas de grife, nos salões de cabeleireiros, galerias de arte, restaurantes e joalherias. Em todos os estabelecimentos os funcionários faziam o mesmo discurso e rechaçavam os clientes abastados expulsando-os dali pra fora. “Vocês posam de bonzinhos, mas só querem nos ferrar. A índole de vocês é má. O dinheiro tira a humanidade, tira o que há de compaixão em vocês, e só sobra o egoísmo”, defendia um garçom.
Certo como são as intermitências da morte, em poucos dias o noticiário dava conta da onda de absurdos que estava acontecendo com aqueles loucos trabalhadores surtados que não queriam atender as pessoas de bem por pura imposição dos sindicatos, dos comunistas, esses vândalos baderneiros. Os comentaristas, por sua vez, davam mais detalhes ao vivo dizendo que os donos das lojas estavam muito assustados e que temiam demitir os funcionários sob o risco de ter de fechar a própria loja, por falta de gente pra tocar o seu comércio. Os proprietários, dizia o colunista, é que não podem ser rebaixados e ficar ali atrás do balcão, atendendo os clientes – um absurdo.
Já começava a faltar produtos nas casas das regiões nobres da cidade. Naqueles bairros haviam diminuído consideravelmente as ofertas dos serviços de fornecimento de gás, coleta de lixo, correio, limpeza de piscina, manutenções variadas de jardins e gramados, iluminação, hidráulica, pinturas e consertos rápidos, lustração de prataria e de peças de cristal, além das conservações de mobília, de peças históricas e obras de arte. Tudo estava suspenso por falta de trabalhadores pra fazer o serviço e, nem se houvesse o homem duplicado, daria conta de tudo.
Os motoristas particulares, as babás, as cozinheiras e secretárias domésticas foram os últimos a aderir ao movimento, o que levou o caos às últimas consequências. Muitos casos de tentativas de suborno a empregados foram registrados pelo país e os apelos eram imensos, já que só os trabalhadores tinham acesso aos gêneros, remédios e serviços, e o mesmo era decisivamente negado às elites, logo depois daquela votação das reformas.
Houve casos de empresários e socialites que foram descobertos com disfarces, vestindo outras roupas e até usando uniformes de seus empregados, na tentativa de conseguir comprar gêneros no supermercado, um remédio ou uma quentinha que fosse, no restaurante da esquina. Nos aeroportos, os funcionários das empresas aéreas usavam a rede da Receita Federal pra ter acesso ao imposto de renda dos clientes e eram eles mesmos que decidiam, no balcão de vendas, quem ia viajar e quem não ia. Todos os nomes eram conferidos no sistema.
Muitos se desesperaram e tentaram fazer a viagem do elefante ou mesmo pedir asilo político em alguma embaixada, mas os guardas do consulado, já na entrada, avisavam que eram cidadãos locais e que do portão ninguém ia passar. Bradavam que nem com uma jangada de pedra eles iriam fugir do país. Alguns até deixavam a cortesia costumeira de lado e argumentavam que, com a perda da periculosidade e do adicional noturno, seus salários caíram pela metade e que esse era o resultado da ganância daquela votação maldita. “Porque não vimos isso antes? Parece que a gente estava cego”, disse um agente da segurança.  A cena, no entanto, era confusa já que quase nenhum dos postulantes ao asilo tinha ideia do que eram aquelas palavras estranhas: Periculosidade? Adicional?
Enfim, o tempo passou e a coisa só se agravou. No campo ninguém colhia a safra. Nas indústrias ninguém operava as máquinas. Nas construções o cimento endurecia dentro das betoneiras. Junto a isso, e diante da continuidade da negativa firme dos trabalhadores de barrar completamente os serviços aos mais ricos do país, o governo foi pedir arrego aos sindicatos. Diante das câmeras, em cadeia nacional, o porta-voz prometeu, levantado do chão, que as reformas seriam revogadas, todas, e que as mudanças na Constituição, dali em diante, seriam processadas somente através de plebiscitos e que novas eleições seriam marcadas brevemente com a ajuda de organismos internacionais e sob a supervisão de auditores independentes vindos do exterior.
Nesse momento uma grande alegria passou a tomar as ruas de todo o país. As pessoas festejavam nas praças, os trabalhadores cantavam versos de vitória e de união e até as igrejas começaram a bater os sinos por todo o país. Os sinos foram ficando mais altos, mais insistentes, as buzinas soando.
No meio de toda aquela festa, um homem de terno se aproximou de mim no meio da multidão. Muito sério, calvo e de fisionomia cativante por trás dos óculos grossos, ele me estendeu a sua mão com um leve sorriso. Eu o reconheci, finalmente, e nesse reconhecer não tive mais como conter as lágrimas.
Então, depois de alguns segundos eu apertei a sua mão com delicadeza e murmurei:
– Senhor José, que saudade! – E fui acordando, lentamente.


quinta-feira, 20 de abril de 2017

O Enterro


O dia nem bem tinha clareado quando o telefone tocou na sala. Ainda dormindo eu fui lá atender, pronto para uma tragédia ou um xingamento. Fui arrastando os pés no assoalho até que disse um alô automático.
– Oi seu Anderson, é a Marileide – disse do outro lado a moça que fazia faxina lá em casa.
– Oi Marileide. Tá ligando pra dizer que não vem, né?
– A minha vó morreu.
– Ah, meus pêsames, Marileide. Então você não vem hoje, né? – claramente aflito pra voltar pra cama e, considerando que ela jamais tinha falado na tal avó, eu já estava antevendo um golpe. Por mim até estava tudo bem, desde que eu voltasse a dormir um pouco mais, pelo menos até o despertador tocar.
– Minha vó morreu e ela mora bem longe, no interior do estado.
– Sei, Marileide. Aí você não vem hoje.
– Eu queria muito ir no enterro, mas é muito longe.
– Ahã. Então você está ligando pra dizer que não vem.
– O enterro vai ser às 2 da tarde, o ônibus sai da rodoviária só às 11, e chega lá só depois das 3.
– Sim, entendi. Então você não vem hoje.
– Não seu Anderson, eu queria saber se o senhor me leva até lá no enterro da minha avó com o seu carro.
O que antes estava parecendo uma coisa distante, quase um sonho que fatalmente eu nem lembraria depois de dormir de novo, de repente virou realidade pura. Finalmente eu, literalmente, acordei para o fato de que a Marileide queria ir ao enterro da vó e, avisada que foi de madrugada pela família, estava querendo que eu a levasse até a cidadezinha do interior onde, por causa do horário do ônibus, não chegaria a tempo. Além disso, pensei que possivelmente eu era a pessoa mais próxima, com carro, com possibilidades de levá-la até lá ou então ela não se despediria da sua avó.
Acontece que naqueles dias eu tinha um sonho recorrente. Nesse sonho eu morria em um acidente de carro em que eu dirigia, numa estrada desconhecida. Foram alguns dias sonhando a mesma coisa e eu nem dava bola porque raramente pegava estrada dirigindo e, sempre que fazia o trajeto Salvador-Rio-Salvador, quase sempre era de ônibus e eu ia tranquilão. Quando o pedido da Marileide se construiu eu lembrei na hora do sonho. E dei uma temida nas bases.
Desligamos o telefone e dali uma hora, mais ou menos, eu encostava na esquina combinada pra pegar a Marileide, seu irmão e uma prima, os únicos que moravam na capital e eram, por assim dizer, os provedores de boa parte da família que morava com a avó na cidade de Nova Itarana, a oeste de Salvador, distante cerca de 300 quilômetros.
Temendo a morte e o acidente repetido nos sonhos eu dirigi o tempo todo tenso, agarrado ao volante e atento a tudo, aos carros, as placas, os caminhões, a estrada. Os três passageiros iam me indicando o caminho e falando das lembranças da avó, coisas difíceis de imaginar quando não se conhece as pessoas, a cidade, nem a protagonista, no caso, a avó da Marileide.
Mas a surpresa ainda estava por vir. Quando avistamos a placa de Bem-Vindo a Nova Itarana meus olhos deram um sinal, um clique, daqueles da tecla REC que tem nas câmeras, e começaram a querer gravar tudo avidamente pra não perder nada.
As poucas ruas, as poucas casas, assim como o pouco comércio, as pouquíssimas árvores, os quase inexistentes postes de iluminação e a vegetação rasteira da beira dos caminhos, tudo tinha a mesma cor do barro do chão, um marrom opaco, triste, que esmaecia as cores de tudo que havia ali e que o tempo e a poeira cuidaram de desbotar.
Assim que chegamos à casa da avó todo o velório veio nos cumprimentar. A mim com franco e emotivo agradecimento e, aos que vieram comigo, com um choro seco e sentido. Eu fiquei um bom tempo olhando aquela paisagem e as pessoas. Nas ruas estreitas e sem calçamento, cada casa tinha na frente um latão grande, tipo de óleo, com tampa, de onde as pessoas pegavam água com uma espécie de concha. As moradias eram afastadas umas das outras, mas bem parecidas nos aspectos construtivos, como se a mesma pessoa tivesse erguido cada uma delas.
De repente inicia-se uma ladainha dentro da casa do velório. Alguém disse umas palavras em tom mais alto e depois começou um cântico lindo, com vozes femininas variadas que me lembraram as músicas das cerimônias de candomblé que minha mãe e minha irmã frequentavam.
Eu fiquei do lado de fora da casa o tempo todo. Primeiro porque não me agradou a ideia de ver uma pessoa morta. Depois por um sentimento de respeito mesmo, como se eu fosse macular aquele ambiente com a minha presença, a presença de um estrangeiro, muito embora o meu sentimento, hoje eu entendo, era como se, de algum modo, eu também tivesse nascido ali.
A saída do cortejo me levou pra dentro de um filme, tamanha era a perfeição daquela cena. Todos pareciam saber o seu papel e a firmeza de cada semblante unia a todos numa só resignação. A resignação da morte. Os parentes se alternavam na cantoria, as crianças eram levadas todas juntas por um adulto designado para tal e atrás do caixão vinham os ramos de flores, de plantas dali mesmo, alguns porta-retratos e outros objetos que eu supus que fariam a decoração do túmulo.
Antes de eu começar a caminhar junto ao cortejo notei que uma mulher varria toda a casa da avó da Marileide. Ela varria e falava algo como uma reza, que eu não entendia direito. Varria em direção à rua, jogando aquele lixo invisível no sentido do cortejo que saía. Depois, voltou com um copo d’água na mão, se postou de frente pra casa e de costas pra rua fez o sinal da cruz com o copo em direção ao céu e jogou a água por cima dos ombros.
No caminho por onde o caixão passava os moradores vinham à porta ou à janela e faziam uma reverência com as mãos, curvando a cabeça ou mesmo tirando o chapéu, no caso dos mais velhos. Uma cena pra mim inesquecível e muito clara até hoje.
Da mesma forma que eu revejo tudo aquilo nitidamente, estranhamente não consigo me lembrar de nada do retorno pra Salvador. Saímos de Nova Itarana tão logo o enterro se encerrou pra podermos chegar ainda de dia, mas eu não lembro de nada desse caminho. Nem que estive nervoso, nem que o sonho de morte me acompanhou, da estrada. Nada. A volta foi bem tranquila, suponho.
De noite, quando ainda podia sentir o cansaço nos braços pelo esforço de dirigir por tanto tempo, fiquei pensando naquele dia e em tudo que eu tinha visto pela primeira vez. Estive visitando um lugar de um cenário fantástico e admiravelmente simples que é, ao mesmo tempo, feio e bonito. Como os meus sonhos preconizaram, eu morri. Morri e vi uma cidade inacreditável. Talvez aquele enterro fosse até o meu próprio. E eu revivi. Revivi e cheguei em casa são e salvo no final da tarde. Uma tarde de verão, do ano de 1992.


sexta-feira, 7 de abril de 2017

A Faixa de Pedestre



Paulistano, mas com o detalhe de ter nascido na cidade de Santos, Pedro é daqueles sujeitos que se regozijam diariamente, desde que chegou de mudança a Florianópolis, com a educação dos motoristas diante da faixa de pedestres. Este sentimento, me lembro bem, é idêntico ao que eu próprio tive quando vim morar aqui, nos anos longínquos de 2001.
Acostumado a ver as pessoas serem atropeladas, literalmente, em plena faixa, inclusive tendo um enorme semáforo acima das suas cabeças, o Rio de Janeiro é o tipo de selva que não considera multa, vida, nada, tendo o motorista como o dono supremo de tudo que acontece nas ruas e avenidas, esteja ele atrás de um volante ou de um guidom de moto.
Em Floripa, quando estamos na beira de uma calçada, diante da tal faixa mágica listrada de branco, nos sentimos como em uma cidade qualquer do mundo civilizado, organizada, desenvolvida, educada, das mais icônicas ou cosmopolitas dos centros europeus. E quando estamos assistindo a uma gentileza dessas, de um motorista parar e aguardar que outro cidadão cruze a rua, o bem-estar que isso parece causar em todos à volta é nítido. Pedestres e motoristas se entreolham e partilham aquele momento como um direito que, pelo viés poético, se diria transbordando de altivez e cidadania.
Imagino que Santos ou São Paulo, neste sentido, estejam naquele outro patamar de incivilidade mencionado anteriormente: o carioca. Daí porque o Pedro se alegra com este mesmo sentimento meu.
Uma tarde qualquer deste início de ano, estava o nosso rapaz caminhando na intenção de cruzar uma determinada esquina. O trânsito era pesado naquela rua e Pedro procurava uma vaga entre os carros. Vendo que mais adiante havia uma faixa foi andando até lá, resignado consigo mesmo, pois que atravessar na faixa era o certo a fazer. Assim que chegou olhou na direção do fluxo dos veículos, fez menção de se lançar, mas foi surpreendido pelo carro que vinha subindo, que inclusive pareceu acelerar ainda mais, impedindo a sua travessia.
Sem pensar, Pedro deu um grito de protesto em direção ao motorista:
 Ô, sem educação. Não está vendo a faixa, não?
Nisso, o carro parou bruscamente. Mal acabara de passar a faixa e parou. O motorista abriu a porta com pressa e veio na direção do nosso transeunte que, neste momento, já estava por certo imaginando que levaria um tiro no peito, uma facada nas costas, quem sabe uma espadada no meio do ventre a deixar todos os seus órgãos, vitais e não vitais, ali expostos a céu aberto. O instante era curtíssimo, mas deu tempo do Pedro imaginar a sua própria morte, a violência que viria, ou talvez uma descompostura pública de um convite ao engalfinhamento solene, ali mesmo na rua, quem sabe até uma promessa de impropérios que seria findado com um golpe fatal, característico de alguma luta marcial nipônica.
Enfim, atônito, ali parado, Pedro custou a entender o que estava ouvindo:
 Puxa vida, meu caro, me desculpe. De verdade, eu não vi você atravessando. Não te vi na calçada. Me perdoe, tá? Você está bem? Aconteceu alguma coisa? Está machucado? Que falha a minha. Mil desculpas tá? Não te vi mesmo.
Depois de todas as desculpas possíveis e impossíveis, o motorista entrou de novo no seu carro bacana e saiu devagarzinho. Enquanto isso o nosso amigo repetia baixinho consigo mesmo as palavras recém-ouvidas e nem se deu conta de que o trânsito estava parado e que os primeiros motoristas da fila aguardavam justamente, e pacientemente, a sua travessia afinal.
Sem jeito, as pernas ainda bambas, Pedro olhou em volta e deu um sorrisinho sem graça, iniciando o seu caminho até a calçada oposta. Caminho este que o fez parar logo a seguir, no final da praça, e se perguntar:
 E agora, será que eu já almocei ou eu estava justamente indo pro almoço?