O dia nem bem tinha clareado quando o telefone
tocou na sala. Ainda dormindo eu fui lá atender, pronto para uma tragédia ou um
xingamento. Fui arrastando os pés no assoalho até que disse um alô automático.
– Oi seu Anderson, é a Marileide – disse do
outro lado a moça que fazia faxina lá em casa.
– Oi Marileide. Tá ligando pra dizer que não
vem, né?
– A minha vó morreu.
– Ah, meus pêsames, Marileide. Então você não
vem hoje, né? – claramente aflito pra voltar pra cama e, considerando que ela
jamais tinha falado na tal avó, eu já estava antevendo um golpe. Por mim até estava
tudo bem, desde que eu voltasse a dormir um pouco mais, pelo menos até o
despertador tocar.
– Minha vó morreu e ela mora bem longe, no
interior do estado.
– Sei, Marileide. Aí você não vem hoje.
– Eu queria muito ir no enterro, mas é muito
longe.
– Ahã. Então você está ligando pra dizer que não
vem.
– O enterro vai ser às 2 da tarde, o ônibus sai
da rodoviária só às 11, e chega lá só depois das 3.
– Sim, entendi. Então você não vem hoje.
– Não seu Anderson, eu queria saber se o senhor
me leva até lá no enterro da minha avó com o seu carro.
O que antes estava parecendo uma coisa distante,
quase um sonho que fatalmente eu nem lembraria depois de dormir de novo, de repente
virou realidade pura. Finalmente eu, literalmente, acordei para o fato de que a
Marileide queria ir ao enterro da vó e, avisada que foi de madrugada pela
família, estava querendo que eu a levasse até a cidadezinha do interior onde, por
causa do horário do ônibus, não chegaria a tempo. Além disso, pensei que possivelmente
eu era a pessoa mais próxima, com carro, com possibilidades de levá-la até lá
ou então ela não se despediria da sua avó.
Acontece que naqueles dias eu tinha um sonho
recorrente. Nesse sonho eu morria em um acidente de carro em que eu dirigia,
numa estrada desconhecida. Foram alguns dias sonhando a mesma coisa e eu nem
dava bola porque raramente pegava estrada dirigindo e, sempre que fazia o trajeto
Salvador-Rio-Salvador, quase sempre era de ônibus e eu ia tranquilão. Quando o
pedido da Marileide se construiu eu lembrei na hora do sonho. E dei uma temida
nas bases.
Desligamos o telefone e dali uma hora, mais ou
menos, eu encostava na esquina combinada pra pegar a Marileide, seu irmão e uma
prima, os únicos que moravam na capital e eram, por assim dizer, os provedores
de boa parte da família que morava com a avó na cidade de Nova Itarana, a oeste
de Salvador, distante cerca de 300 quilômetros.
Temendo a morte e o acidente repetido nos sonhos
eu dirigi o tempo todo tenso, agarrado ao volante e atento a tudo, aos carros,
as placas, os caminhões, a estrada. Os três passageiros iam me indicando o
caminho e falando das lembranças da avó, coisas difíceis de imaginar quando não
se conhece as pessoas, a cidade, nem a protagonista, no caso, a avó da
Marileide.
Mas a surpresa ainda estava por vir. Quando
avistamos a placa de Bem-Vindo a Nova Itarana meus olhos deram um sinal, um
clique, daqueles da tecla REC que tem nas câmeras, e começaram a querer gravar
tudo avidamente pra não perder nada.
As poucas ruas, as poucas casas, assim como o
pouco comércio, as pouquíssimas árvores, os quase inexistentes postes de
iluminação e a vegetação rasteira da beira dos caminhos, tudo tinha a mesma cor
do barro do chão, um marrom opaco, triste, que esmaecia as cores de tudo que
havia ali e que o tempo e a poeira cuidaram de desbotar.
Assim que chegamos à casa da avó todo o velório
veio nos cumprimentar. A mim com franco e emotivo agradecimento e, aos que
vieram comigo, com um choro seco e sentido. Eu fiquei um bom tempo olhando
aquela paisagem e as pessoas. Nas ruas estreitas e sem calçamento, cada casa
tinha na frente um latão grande, tipo de óleo, com tampa, de onde as pessoas
pegavam água com uma espécie de concha. As moradias eram afastadas umas das
outras, mas bem parecidas nos aspectos construtivos, como se a mesma pessoa
tivesse erguido cada uma delas.
De repente inicia-se uma ladainha dentro da casa
do velório. Alguém disse umas palavras em tom mais alto e depois começou um
cântico lindo, com vozes femininas variadas que me lembraram as músicas das cerimônias
de candomblé que minha mãe e minha irmã frequentavam.
Eu fiquei do lado de fora da casa o tempo todo.
Primeiro porque não me agradou a ideia de ver uma pessoa morta. Depois por um
sentimento de respeito mesmo, como se eu fosse macular aquele ambiente com a
minha presença, a presença de um estrangeiro, muito embora o meu sentimento,
hoje eu entendo, era como se, de algum modo, eu também tivesse nascido ali.
A saída do cortejo me levou pra dentro de um
filme, tamanha era a perfeição daquela cena. Todos pareciam saber o seu papel e
a firmeza de cada semblante unia a todos numa só resignação. A resignação da
morte. Os parentes se alternavam na cantoria, as crianças eram levadas todas
juntas por um adulto designado para tal e atrás do caixão vinham os ramos de
flores, de plantas dali mesmo, alguns porta-retratos e outros objetos que eu
supus que fariam a decoração do túmulo.
Antes de eu começar a caminhar junto ao cortejo
notei que uma mulher varria toda a casa da avó da Marileide. Ela varria e falava algo como uma
reza, que eu não entendia direito. Varria em direção à rua, jogando aquele lixo
invisível no sentido do cortejo que saía. Depois, voltou com um copo d’água na
mão, se postou de frente pra casa e de costas pra rua fez o sinal da cruz com o
copo em direção ao céu e jogou a água por cima dos ombros.
No caminho por onde o caixão passava os
moradores vinham à porta ou à janela e faziam uma reverência com as mãos,
curvando a cabeça ou mesmo tirando o chapéu, no caso dos mais velhos. Uma cena
pra mim inesquecível e muito clara até hoje.
Da mesma forma que eu revejo tudo aquilo
nitidamente, estranhamente não consigo me lembrar de nada do retorno pra
Salvador. Saímos de Nova Itarana tão logo o enterro se encerrou pra podermos
chegar ainda de dia, mas eu não lembro de nada desse caminho. Nem que estive
nervoso, nem que o sonho de morte me acompanhou, da estrada. Nada. A volta foi
bem tranquila, suponho.
De noite, quando ainda podia sentir o cansaço
nos braços pelo esforço de dirigir por tanto tempo, fiquei pensando naquele dia
e em tudo que eu tinha visto pela primeira vez. Estive visitando um lugar de um
cenário fantástico e admiravelmente simples que é, ao mesmo tempo, feio e
bonito. Como os meus sonhos preconizaram, eu morri. Morri e vi uma cidade
inacreditável. Talvez aquele enterro fosse até o meu próprio. E eu revivi. Revivi
e cheguei em casa são e salvo no final da tarde. Uma tarde de verão, do ano de
1992.