quinta-feira, 20 de abril de 2017

O Enterro


O dia nem bem tinha clareado quando o telefone tocou na sala. Ainda dormindo eu fui lá atender, pronto para uma tragédia ou um xingamento. Fui arrastando os pés no assoalho até que disse um alô automático.
– Oi seu Anderson, é a Marileide – disse do outro lado a moça que fazia faxina lá em casa.
– Oi Marileide. Tá ligando pra dizer que não vem, né?
– A minha vó morreu.
– Ah, meus pêsames, Marileide. Então você não vem hoje, né? – claramente aflito pra voltar pra cama e, considerando que ela jamais tinha falado na tal avó, eu já estava antevendo um golpe. Por mim até estava tudo bem, desde que eu voltasse a dormir um pouco mais, pelo menos até o despertador tocar.
– Minha vó morreu e ela mora bem longe, no interior do estado.
– Sei, Marileide. Aí você não vem hoje.
– Eu queria muito ir no enterro, mas é muito longe.
– Ahã. Então você está ligando pra dizer que não vem.
– O enterro vai ser às 2 da tarde, o ônibus sai da rodoviária só às 11, e chega lá só depois das 3.
– Sim, entendi. Então você não vem hoje.
– Não seu Anderson, eu queria saber se o senhor me leva até lá no enterro da minha avó com o seu carro.
O que antes estava parecendo uma coisa distante, quase um sonho que fatalmente eu nem lembraria depois de dormir de novo, de repente virou realidade pura. Finalmente eu, literalmente, acordei para o fato de que a Marileide queria ir ao enterro da vó e, avisada que foi de madrugada pela família, estava querendo que eu a levasse até a cidadezinha do interior onde, por causa do horário do ônibus, não chegaria a tempo. Além disso, pensei que possivelmente eu era a pessoa mais próxima, com carro, com possibilidades de levá-la até lá ou então ela não se despediria da sua avó.
Acontece que naqueles dias eu tinha um sonho recorrente. Nesse sonho eu morria em um acidente de carro em que eu dirigia, numa estrada desconhecida. Foram alguns dias sonhando a mesma coisa e eu nem dava bola porque raramente pegava estrada dirigindo e, sempre que fazia o trajeto Salvador-Rio-Salvador, quase sempre era de ônibus e eu ia tranquilão. Quando o pedido da Marileide se construiu eu lembrei na hora do sonho. E dei uma temida nas bases.
Desligamos o telefone e dali uma hora, mais ou menos, eu encostava na esquina combinada pra pegar a Marileide, seu irmão e uma prima, os únicos que moravam na capital e eram, por assim dizer, os provedores de boa parte da família que morava com a avó na cidade de Nova Itarana, a oeste de Salvador, distante cerca de 300 quilômetros.
Temendo a morte e o acidente repetido nos sonhos eu dirigi o tempo todo tenso, agarrado ao volante e atento a tudo, aos carros, as placas, os caminhões, a estrada. Os três passageiros iam me indicando o caminho e falando das lembranças da avó, coisas difíceis de imaginar quando não se conhece as pessoas, a cidade, nem a protagonista, no caso, a avó da Marileide.
Mas a surpresa ainda estava por vir. Quando avistamos a placa de Bem-Vindo a Nova Itarana meus olhos deram um sinal, um clique, daqueles da tecla REC que tem nas câmeras, e começaram a querer gravar tudo avidamente pra não perder nada.
As poucas ruas, as poucas casas, assim como o pouco comércio, as pouquíssimas árvores, os quase inexistentes postes de iluminação e a vegetação rasteira da beira dos caminhos, tudo tinha a mesma cor do barro do chão, um marrom opaco, triste, que esmaecia as cores de tudo que havia ali e que o tempo e a poeira cuidaram de desbotar.
Assim que chegamos à casa da avó todo o velório veio nos cumprimentar. A mim com franco e emotivo agradecimento e, aos que vieram comigo, com um choro seco e sentido. Eu fiquei um bom tempo olhando aquela paisagem e as pessoas. Nas ruas estreitas e sem calçamento, cada casa tinha na frente um latão grande, tipo de óleo, com tampa, de onde as pessoas pegavam água com uma espécie de concha. As moradias eram afastadas umas das outras, mas bem parecidas nos aspectos construtivos, como se a mesma pessoa tivesse erguido cada uma delas.
De repente inicia-se uma ladainha dentro da casa do velório. Alguém disse umas palavras em tom mais alto e depois começou um cântico lindo, com vozes femininas variadas que me lembraram as músicas das cerimônias de candomblé que minha mãe e minha irmã frequentavam.
Eu fiquei do lado de fora da casa o tempo todo. Primeiro porque não me agradou a ideia de ver uma pessoa morta. Depois por um sentimento de respeito mesmo, como se eu fosse macular aquele ambiente com a minha presença, a presença de um estrangeiro, muito embora o meu sentimento, hoje eu entendo, era como se, de algum modo, eu também tivesse nascido ali.
A saída do cortejo me levou pra dentro de um filme, tamanha era a perfeição daquela cena. Todos pareciam saber o seu papel e a firmeza de cada semblante unia a todos numa só resignação. A resignação da morte. Os parentes se alternavam na cantoria, as crianças eram levadas todas juntas por um adulto designado para tal e atrás do caixão vinham os ramos de flores, de plantas dali mesmo, alguns porta-retratos e outros objetos que eu supus que fariam a decoração do túmulo.
Antes de eu começar a caminhar junto ao cortejo notei que uma mulher varria toda a casa da avó da Marileide. Ela varria e falava algo como uma reza, que eu não entendia direito. Varria em direção à rua, jogando aquele lixo invisível no sentido do cortejo que saía. Depois, voltou com um copo d’água na mão, se postou de frente pra casa e de costas pra rua fez o sinal da cruz com o copo em direção ao céu e jogou a água por cima dos ombros.
No caminho por onde o caixão passava os moradores vinham à porta ou à janela e faziam uma reverência com as mãos, curvando a cabeça ou mesmo tirando o chapéu, no caso dos mais velhos. Uma cena pra mim inesquecível e muito clara até hoje.
Da mesma forma que eu revejo tudo aquilo nitidamente, estranhamente não consigo me lembrar de nada do retorno pra Salvador. Saímos de Nova Itarana tão logo o enterro se encerrou pra podermos chegar ainda de dia, mas eu não lembro de nada desse caminho. Nem que estive nervoso, nem que o sonho de morte me acompanhou, da estrada. Nada. A volta foi bem tranquila, suponho.
De noite, quando ainda podia sentir o cansaço nos braços pelo esforço de dirigir por tanto tempo, fiquei pensando naquele dia e em tudo que eu tinha visto pela primeira vez. Estive visitando um lugar de um cenário fantástico e admiravelmente simples que é, ao mesmo tempo, feio e bonito. Como os meus sonhos preconizaram, eu morri. Morri e vi uma cidade inacreditável. Talvez aquele enterro fosse até o meu próprio. E eu revivi. Revivi e cheguei em casa são e salvo no final da tarde. Uma tarde de verão, do ano de 1992.