segunda-feira, 22 de maio de 2017

A Calçada


Já faz um tempo que eu vou para o trabalho a pé. Desde que passei a morar no Centro nunca mais tive de pegar ônibus pra isso e ainda me dou ao luxo de, a depender do clima, optar por ir de bicicleta pro batente, tirando a maior onda da urbanidade reinante nessa minha cidade adotada.
O trajeto é bem bonito seja qual for o caminho que eu escolher. Tanto pela ciclovia quanto a pé, nos dois trechos tem uma alameda bem arborizada e uma praça grande e bem cuidada, não pela prefeitura, mas sim por uma empresa que adota a tal praça. Assim, de bike eu dou uma volta pra não subir ladeira e a pé, mesmo com a ladeira, o caminho é mais curto.
Acontece que, andando, eu passo por uma calçada que tem duas peculiaridades: é bem estreita, só cabendo uma pessoa de cada vez e é encostada em um muro todo de hera. Por causa desse muro, e sua textura natural, com as folhas crescendo para fora em direção ao passeio, a calçada parece que fica ainda menor, o que dificulta a passagem das pessoas.
Toda vez que eu vou a pé pro trabalho e entro nessa calçada, sempre de manhãzinha, logo procuro avistar quem vem no outro sentido porque sei que em um dado momento um dos dois vai ter que andar na rua, pra dar passagem ao outro. Eu sempre tomo essa iniciativa, principalmente quando é uma mulher, criança ou ainda um idoso, já que o meu sentido de caminhar é contrário ao trânsito, o que me possibilita ver se vem algum carro no momento em que tenho de dar uns poucos passos na rua, para que o outro pedestre possa prosseguir.
De uns tempos pra cá tenho visto que muitas pessoas, ao me verem dar passagem na calçada, nem se tocam, nem me olham, como se aquilo fosse a minha total obrigação. Passam com seus narizes empinados, quase não tocam o chão de tão superiores a mim. E confesso que isso tem me causado um certo incômodo. Não que eu queira um agradecimento formal, uma saudação especial pela minha gentileza. Mas daí a pessoa achar que eu sou um ser qualquer inferior e que o meu papel é dar-lhe o lugar na calçada estreita, já é uma distância muito grande.
Enfim, como eu dizia, de uns tempos pra cá a minha estratégia tem sido olhar bem a cara da pessoa que vem no sentido oposto. Se tiver cara de gente boa eu saio pra rua e deixo a calçada livre. Já se é alguém que tem ou parece ter o rei na barriga, o que me faz pensar que deve ter o cetro e a coroa em um outro lugar do corpo, eu não saio do meu caminho e fico firme ali até o sujeito passar de lado, nas pontas dos pés, ou até mesmo pelo meio-fio. “Ele que se vire”, é o que eu falo baixinho pra mim mesmo.
Na verdade eu gosto quando do outro lado vem alguém com carrinho de bebê, ou com uma criança pela mão, pois as crianças sempre me olham com muita amizade. Inclusive, quase sempre com um sorriso. É muito comum. Um dia ainda vou escrever sobre isso. E gosto também quando, desde longe, um rosto sereno e fotogênico conquista a sua passagem com a naturalidade típica das almas boas. Nesses casos eu faço a maior questão de ceder todo o espaço, com alegria e boa vontade.
Nas últimas semanas, entretanto, tenho passado ali com certo receio. Por duas vezes cedi o lugar  e minha educação – e, em troca, recebi o contrário. Na primeira vez eram duas mulheres e, uma delas, ao me ver aproximando dela ficou na dúvida se saía da calçada. No mesmo momento em que eu dei passagem a outra disse a ela “não sai não, ele que dê um jeito”, como se a obrigação fosse minha, sem qualquer palavra de agradecimento dela. A outra foi um casal que, ao me ver, se encostou no muro e parou lado a lado, como se fechasse a passagem. Eu dei dois ou três passos na rua, desviando, e notei que eles se sentiram vitoriosos com aquilo.
Outro dia, assim que entrei na tal calçada vi um homem surgindo lá na outra ponta. Com cara amarrada, ele parecia um cavaleiro medieval vestindo armadura com aquelas lanças na mão. Achei que ele aumentou o passo e pensei que eu não ia sair dali de jeito nenhum. Um cabelo grande e desgrenhado, de roupas escuras parecendo trapos soltos, uma bolsa transpassada no peito e um casaco enorme. Quanto mais próximo, mais cara de mal-encarado ele tinha. Um sujeito medonho, todo cheio de si, se achando o dono da calçada e do mundo, se calhar.
Fiquei firme até chegar bem perto. E foi então que ele disse:
– O senhor faça o favor de passar, por gentileza – disse, apontando o passeio.
– Não, o senhor primeiro, por favor – eu falei automaticamente.
– É muita gentileza da sua parte. Então, obrigado e tenha um bom dia – e foi andando com aquele seu passo leve e delicado, quase teatral, como se fosse um arquiteto da renascença francesa.
Eu fiquei ali, atônito, olhando o sujeito sumir no fim da rua e nem me dei conta da velocidade com que minhas impressões sobre a rudeza do cavaleiro medieval iam mudando. De repente aquele dócil cavalheiro tinha sido muito mais educado que eu, muito mais civilizado que eu e as suas roupas, farfalhando em solto movimento, percebi afinal, eram de uma imponência estética admirável, a ponto de eu notar o seu corte altamente preciso e até mesmo fashion, porque não dizer?
Desde então, sempre que a inusitada calçada precisa ser dividida com alguém, eu me apresso em tomar a dianteira e ceder o lugar. Mesmo que o sujeito tenha a cara assim ou assada. Mesmo que seja um ogro a vir do outro lado ou uma mulher esnobe. É surpreendente quando a gentileza vem de onde a gente menos espera. E eu acho, enfim, que isso pode fazer toda a diferença.

quarta-feira, 10 de maio de 2017

O Vendedor de Coco


Sérgio e Roque ficaram amigos no mesmo dia em que se tornaram vizinhos, muro com muro, na praia de Nazaré, na paradisíaca Ilha de Itaparica. Não sei quem comprou a casa primeiro mas, assim que se viram dentro do mesmo condomínio, donos de imóveis contíguos, a conversa começou a fluir como se fossem colegas desde a escola primária.
As duas casas tinham uma entrada pela rua asfaltada, por onde se chegava de carro, e uma outra que ficava no lado oposto, literalmente dando na areia da praia, com um portãozinho baixo, num muro idem, e toda aquela vista belíssima da praia em que o olhar se perde, não importa o lado pra onde se olha.
Não tinha um único verão que Roque e Sérgio não passavam juntos, na Ilha, com toda a família. Inclusive normalmente programavam muitos eventos e almoços em comum, como se as duas casas fossem uma única só morada. As esposas, os filhos, os amigos e os convidados agregados já eram todos pertencentes às duas famílias e não apenas a uma delas. Algumas vezes eles até combinavam a comida, ficando cada casa responsável por uma parte específica.
Naquele dia o Roque acordou bem cedo e ficou no portão da praia, olhando o tempo passar. Vindo na sua direção, um rapaz com um carrinho de mão cheinho de cocos tinha dificuldade em se mover na areia fina, o que chamou a atenção dele. Quando chegou perto o rapaz largou o carrinho, enxugou o suor da testa, tirou o boné e disse:
– Bom dia, senhor. Quer comprar um coco? Tá bem verdinho, cheio de água, bem docinha, e a essa hora da manhã é como uma benção do Senhor do Bonfim.
O Roque olhou meio sem vontade pro carrinho e já ia dizer que não quando foi cortado:
– Repare, eu vendo a cinco cada um, mas pro senhor eu vou fazer três cocos por dez, só pra eu abrir as minhas vendas e começar a me exercitar pra o dia longo que vem pela frente.
Então, o dono da casa disse Ok e, surpreso, achou meio estranho quando de repente o vendedor começou a fazer tantos exercícios pra um trabalho que se resumia em usar o facão e abrir um simples coco verde. Aí, no minuto seguinte o rapaz parou os alongamentos, tirou a camisa e, num pulo, subiu no coqueiro que ficava do lado de dentro da casa do Roque. Sem nenhuma ajuda, sem cordas nem escada, nada, só com a força dos braços e pernas, o sujeito abraçou o tronco do coqueiro e, com toda a naturalidade, foi se espichando até o alto. De lá de cima avisou pro homem sair da frente e lançou três cocos no chão de areia.
– Peraí, mas você vai me vender os cocos que já são meus, do meu próprio coqueiro, da minha casa? – perguntou um Roque incrédulo, assistindo o homem descer.
– Repare meu rei, o coco tá lá em cima e o senhor tá aqui embaixo. Eles já estão bem maduros, como o senhor tá vendo. Agora, pensa no perigo de um deles cair de lá e machucar alguém da sua família, uma criança, bater no seu barco ou mesmo naquele jetski ali novinho. Então, eu não estou vendendo só o coco, mas sim o meu serviço de pegá-lo no coqueiro, livrando o senhor do perigo e preservando o seu patrimônio aqui, né?
Só deu tempo do Roque dar um sorrisinho de consentimento e, já assumindo a derrota, fazer a proposta:
– Sujeito, tu é muito baiano mesmo. Olha só o rolo que tu me deu, aqui na minha casa, com esse papo malandro, no meu coqueiro, o meu coco, tal, essa coisa do patrimônio aí que tu falou, só me enrolando.
– Que isso, painho?  Eu quero o melhor pros meus clientes.
– Tá, eu vou lá buscar as tuas dez pratas, mas tem uma condição pra gente fechar essa parada. Eu vou chamar o meu amigo aqui do lado, o meu vizinho, que diz que é carioca esperto e tu vai vender a mesma coisa pra ele, vai subir no coqueiro da casa dele e fazer tudo igualzinho que fez comigo.
– Claro, chefia. Fechado então. Se é assim, vamos lá chamar o seu vizinho e eu vendo os cocos pra ele também.
– Mas não pode ser dez pratas não. Pra ele tem que ser 15.
– E por quê? – perguntou o vendedor.
– Porque eu sou mais esperto que ele. E depois, assim ele não vai poder tirar sarro de mim quando souber que eu também comprei os cocos do meu próprio coqueiro, mas paguei só dez e ele 15, hahaha.
E seguiram alegres, com os sorrisos encobertos e caras de traquinas, pra chamar o pobre do amigo Sérgio que, dali a instantes, estaria sendo a vítima da vez e iria levar um rolo bem dado não mais de um só vendedor, mas de dois.
Imagino hoje em dia eles contando essa história pra alguém. Claro que devem dar boas risadas e sei também que cada um deve jurar que foi o outro que pagou 15 e não 10 pratas pelo coco, afinal nesta farsa teatral baiana só tem uma vaga pra esperto. O outro é o outro, meu rei.