Já faz um tempo que eu vou para o trabalho a pé.
Desde que passei a morar no Centro nunca mais tive de pegar ônibus pra isso e
ainda me dou ao luxo de, a depender do clima, optar por ir de bicicleta pro
batente, tirando a maior onda da urbanidade reinante nessa minha cidade
adotada.
O trajeto é bem bonito seja qual for o caminho que
eu escolher. Tanto pela ciclovia quanto a pé, nos dois trechos tem uma alameda
bem arborizada e uma praça grande e bem cuidada, não pela prefeitura, mas sim
por uma empresa que adota a tal praça. Assim, de bike eu dou uma volta pra não
subir ladeira e a pé, mesmo com a ladeira, o caminho é mais curto.
Acontece que, andando, eu passo por uma calçada
que tem duas peculiaridades: é bem estreita, só cabendo uma pessoa de cada vez
e é encostada em um muro todo de hera. Por causa desse muro, e sua textura
natural, com as folhas crescendo para fora em direção ao passeio, a calçada
parece que fica ainda menor, o que dificulta a passagem das pessoas.
Toda vez que eu vou a pé pro trabalho e entro
nessa calçada, sempre de manhãzinha, logo procuro avistar quem vem no outro
sentido porque sei que em um dado momento um dos dois vai ter que andar na rua,
pra dar passagem ao outro. Eu sempre tomo essa iniciativa, principalmente
quando é uma mulher, criança ou ainda um idoso, já que o meu sentido de
caminhar é contrário ao trânsito, o que me possibilita ver se vem algum carro
no momento em que tenho de dar uns poucos passos na rua, para que o outro
pedestre possa prosseguir.
De uns tempos pra cá tenho visto que muitas
pessoas, ao me verem dar passagem na calçada, nem se tocam, nem me olham, como
se aquilo fosse a minha total obrigação. Passam com seus narizes empinados,
quase não tocam o chão de tão superiores a mim. E confesso que isso tem me causado um certo incômodo. Não que eu queira um agradecimento formal, uma saudação
especial pela minha gentileza. Mas daí a pessoa achar que eu sou um ser
qualquer inferior e que o meu papel é dar-lhe o lugar na calçada estreita, já é
uma distância muito grande.
Enfim, como eu dizia, de uns tempos pra cá a
minha estratégia tem sido olhar bem a cara da pessoa que vem no sentido oposto. Se tiver
cara de gente boa eu saio pra rua e deixo a calçada livre. Já se é alguém que
tem ou parece ter o rei na barriga, o que me faz pensar que deve ter o cetro e
a coroa em um outro lugar do corpo, eu não saio do meu caminho e fico firme ali
até o sujeito passar de lado, nas pontas dos pés, ou até mesmo pelo meio-fio.
“Ele que se vire”, é o que eu falo baixinho pra mim mesmo.
Na verdade eu gosto quando do outro lado vem
alguém com carrinho de bebê, ou com uma criança pela mão, pois as crianças
sempre me olham com muita amizade. Inclusive, quase sempre com um sorriso. É
muito comum. Um dia ainda vou escrever sobre isso. E gosto também quando, desde
longe, um rosto sereno e fotogênico conquista a sua passagem com a naturalidade
típica das almas boas. Nesses casos eu faço a maior questão de ceder todo o
espaço, com alegria e boa vontade.
Nas últimas semanas, entretanto, tenho passado
ali com certo receio. Por duas vezes cedi o lugar – e minha educação – e, em
troca, recebi o contrário. Na primeira vez eram duas mulheres e, uma delas, ao
me ver aproximando dela ficou na dúvida se saía da calçada. No mesmo momento em
que eu dei passagem a outra disse a ela “não sai não, ele que dê um jeito”,
como se a obrigação fosse minha, sem qualquer palavra de agradecimento dela. A
outra foi um casal que, ao me ver, se encostou no muro e parou lado a lado,
como se fechasse a passagem. Eu dei dois ou três passos na rua, desviando, e
notei que eles se sentiram vitoriosos com aquilo.
Outro dia, assim que entrei na tal calçada vi um
homem surgindo lá na outra ponta. Com cara amarrada, ele parecia um cavaleiro medieval
vestindo armadura com aquelas lanças na mão. Achei que ele aumentou o passo e
pensei que eu não ia sair dali de jeito nenhum. Um cabelo grande e desgrenhado,
de roupas escuras parecendo trapos soltos, uma bolsa transpassada no peito e um
casaco enorme. Quanto mais próximo, mais cara de mal-encarado ele tinha. Um
sujeito medonho, todo cheio de si, se achando o dono da calçada e do mundo, se
calhar.
Fiquei firme até chegar bem perto. E foi então
que ele disse:
– O senhor faça o favor de passar, por gentileza
– disse, apontando o passeio.
– Não, o senhor primeiro, por favor – eu falei automaticamente.
– É muita gentileza da sua parte. Então, obrigado
e tenha um bom dia – e foi andando com aquele seu passo leve e delicado, quase
teatral, como se fosse um arquiteto da renascença francesa.
Eu fiquei ali, atônito, olhando o sujeito sumir
no fim da rua e nem me dei conta da velocidade com que minhas impressões sobre a
rudeza do cavaleiro medieval iam mudando. De repente aquele dócil cavalheiro
tinha sido muito mais educado que eu, muito mais civilizado que eu e as suas
roupas, farfalhando em solto movimento, percebi afinal, eram de uma imponência
estética admirável, a ponto de eu notar o seu corte altamente preciso e até
mesmo fashion, porque não dizer?
Desde então, sempre que a inusitada calçada
precisa ser dividida com alguém, eu me apresso em tomar a dianteira e ceder o
lugar. Mesmo que o sujeito tenha a cara assim ou assada. Mesmo que seja um ogro
a vir do outro lado ou uma mulher esnobe. É surpreendente quando a gentileza
vem de onde a gente menos espera. E eu acho, enfim, que isso pode fazer toda a
diferença.