terça-feira, 27 de junho de 2017

A Música


Todos os meus sobrinhos são muito queridos. Por minha sorte, quase todos eu vi pequenos, de pegar no colo e, por essa ligação quase paterna, sempre cultivei a intenção de deixar pra eles boas lembranças desse tio que passou a vida com os bolsos eternamente cheios de saudade.
O Flockinho foi o único dos sobrinhos que morou comigo, desde o fim da infância até a entrada na adolescência. Seus únicos defeitos – únicos, porém dois – são ser vascaíno e gostar de música ruim. Mas, ninguém é perfeito, alguém já disse.
Uma vez a gente foi junto visitar o vô Elói, no hospital. Como tinha muita gente e só podiam entrar no quarto duas pessoas por vez, ficamos dando um tempo no carro, ouvindo música, enquanto conversávamos. Primeiro falamos de futebol, depois de basquete, que ele treinava e jogava muito bem e, num momento de silêncio, ele falou com espanto:
– Olha essa música, tio! O cara falou isso tudo, a música toda, pra no final dizer que ama a mulher, que maneiro, muito maneiro.
Eu nem tinha percebido o que estava tocando no CD, nem que ele estava prestando atenção na música, muito menos na letra, a ponto de se surpreender com o final. Não tive dúvida, botei de novo a música pra tocar e fui ouvindo junto com ele, cantando os trechos que eu conhecia.
A música era Outros Sonhos, do bom e velho Chico Buarque, que diz “Sonhei que o fogo gelou, sonhei que a neve fervia, sonhei que ela corava quando me via. Sonhei que ao meio-dia havia intenso luar, e o povo se embevecia”.
Eu ia confirmando a letra, repetindo umas partes e enfatizava que eram coisas absurdas que o autor tinha sonhado pra que a gente, ao ouvir a música, imaginasse o sonho dele. “De mão em mão o ladrão relógios distribuía e a polícia já não batia. De noite raiava o sol, que todo mundo aplaudia. Maconha só se comprava na tabacaria, drogas na drogaria”.
Ele dava risada desses versos, mas estava cada vez mais atento pra ouvir o final novamente, que confirmaria o que tinha chamado a sua atenção desde a primeira vez. E aí chegou o final: “Sonhei que o fogo gelou, sonhei que a neve fervia, e por sonhar o impossível, ai... sonhei que tu me querias. ”
– Viu? Ele só sonhou coisas impossíveis e disse que, entre aquelas impossibilidades todas, era impossível ela querer ele. Cara, que doideira. Muito foda esse cara. Chico Buarque – repetiu pausado.
– Isso é poesia, Flockinho – disse o tio pra lá de contente por ele ter sacado tudo.
– A música só vale a pena quando tem o poder de te levar, de revelar, de te fazer refletir. Isso é uma forma de arte, como a pintura e a escultura. Nessa música, além da poesia, a melodia também é elaborada, as cifras, os acordes ou a partitura dela é difícil de tocar, não é simples e, até olhando, sem qualquer conhecimento de música, dá pra pessoa notar a diferença da construção dela – expliquei.
Ele só repetia o seu “muito foda”.
Não sei dizer até que ponto nós, pais e tios, primos e avós, temos responsabilidade sobre o que esses garotos e garotas ouvem. O encontro do Flockinho com a poesia do Chico Buarque poderia nunca ter acontecido, assim como provavelmente não chega a acontecer com milhões de pessoas, de crianças e jovens. A poesia é para todos. A música também. Ou deveriam ser.
Quando eu vejo entrevista de alguém que agradece aos pais pelos discos que ouviram na infância e adolescência, pela música que ecoava na casa toda e que, de alguma maneira, ela foi responsável por descobertas, por aflorar sensibilidades, reflexões, cliques que demorariam anos pra ser clicados, eu tenho mais certeza de que o poder de estarmos cantarolando uma melodia, assoviando uma canção durante um caminho qualquer é enorme e faz toda a diferença.
Por fim, às vezes eu acho que o mundo é cíclico, que tudo se repete. Uma prova disso é uma crônica minha, publicada aqui mesmo, em novembro de 2014, chamada A Bossa Nova de Caetano. É bem parecida com esta aqui no tema, só que o personagem é o meu filho Deco. Mas o Chico é o mesmo. O mesmo Chico foda...


quinta-feira, 8 de junho de 2017

O Caldo Verde


Quando minha mãe foi morar na Rua Temporal, mal sabíamos que estávamos todos indo fazer parte de um evento épico. Passados uns poucos meses na nova residência descobrimos que ali na rua, inclusive na frente de casa, todos os anos havia uma festa junina das mais concorridas e animadas do bairro de Ramos.
Nesta época eu morava em São Paulo e lembro bem da minha mãe, ao telefone, me contando que tinham começado a espalhar cartazes da festa pelo bairro todo. Ela dizia que na vizinhança não se falava em outra coisa e que muitos combinavam o que iriam vender pra poder diversificar e diminuir a concorrência. Foi então que todos nós decidimos que a gente também ia participar da festa. Íamos abrir o portão da garagem, colocar umas mesas e cadeiras, um balcão e íamos fazer cachorro quente e caldo verde.
Minha mãe ia ficar com a coordenação da cozinha e meu irmão, minha irmã, eu e meu pai íamos nos revezar no caixa e no atendimento. As noras também estavam nessa e no meio da confusão que se instalou acabaram dando uma mãozinha tanto na cozinha como no balcão. Os netos, tanto o Niel como o Deco, a gente só percebeu que estavam ajudando a servir as mesas depois de muito tempo de festa e nem tivemos como nos atrever a impedir.
Na realidade a gente não tinha noção de como seria aquela quermesse, o movimento, nem como a gente ia se sair com o nosso restaurante improvisado, por isso ficamos assustados quando já no primeiro dia da festa acabou toda a comida antes das 10 da noite. E olha que a festa começava às seis. O caldo verde mesmo, nem deu pra saída, pois desapareceu muito rápido, ao ponto de a gente ter de ficar repetindo o tempo todo que “assim como o sonho, o caldo acabou”.
No dia seguinte, claro, fomos todos comprar mais couve, linguiça calabresa, batata, paio e lombo, tudo pra fazer um caldo verde ainda mais caprichado, que seria vendido junto com torradas e pão fresquinho com manteiga. No começo da tarde já havia duas panelonas no fogão e o cheirinho gostoso se espalhava por toda a casa. Ninguém falou nada, mas todos sabiam que naquele dia ia sobrar caldo verde pra gente se deliciar depois que a festa acabasse.
O movimento começou e com ele o entra e sai de gente, da gente, dos pratos, os trocos, as trocas, e toma de vender caldo verde. As pessoas chegavam na frente da garagem e perguntavam:
– É aqui que tem o caldo verde da tia Jurema?
E a gente respondia que sim, que era ali mesmo e já puxava uma cadeira pro sujeito esperar o prato dele. Num certo momento alguém se deu conta de perguntar pra minha mãe se estava tudo certo e se ia sobrar mesmo pra nós, com todo aquele movimento, e ela, meio sem jeito, respondeu que se a gente quisesse comer teria que parar a venda naquela hora, senão ia acabar de novo.
Uma rápida reunião familiar foi armada e decidimos que se o caldo acabasse de novo, no segundo dia consecutivo, cedo daquele jeito, a nossa reputação de festeiro junino ia ficar abalada. Então, resolvemos que íamos vender tudo o que tinha e, na verdade, naquela noite, quanto mais tivesse mais seria vendido porque o caldo verde da dona Jurema era a coisa mais falada da Festa Junina da Rua Temporal.
Quando enfim tudo se acalmou, bem mais tarde, já na madrugada, todo mundo cansado, depois até do banho revezando o chuveiro e que por isso demorou um certo tempo, fomos todos pra mesa da cozinha ver o que a gente ia inventar pra comer. Enquanto olhávamos pra dentro da geladeira procurando alguma sugestão ficamos argumentando que teria de ser algo rápido, pois ninguém ia pra beira do fogão a uma hora dessas, ainda mais com o cansaço. Então, do nada, surge a minha mãe com uma panela grande nas mãos e vai andando até o meio da mesa. Quando chega lá olha pra nós, segura firme na tampa e diz um, dois, três e abre. Estava cheinha com o puro e legítimo caldo verde da dona Jurema.
Diante daquela surpresa gastronômica que nos salvaria a vida, um perguntava por cima da fala do outro de onde a panela teria vindo, pois que a gente achava que tinha acabado o caldo e a alegria foi tanta que a gente fez uma rodinha e, abraçados, começamos a cantar uma musiquinha tipo de torcida de futebol, que no final dizia “aha, uhu, o caldo verde é nosso”, no meio da cozinha.
A festa junina ainda durou o outro final de semana, com o mesmo sucesso. O caldo verde ficou mesmo famoso e a gente teve de prometer que no ano seguinte teria mais. E teve!
A lembrança daquele dia sempre volta, nitidamente. Basta que um de nós faça de novo um caldo verde e conte pros demais.
A saudade daquele dia vem como uma boa sensação, digo hoje com certa paz.
E está guardada bem aqui.