Todos os meus sobrinhos são muito queridos. Por
minha sorte, quase todos eu vi pequenos, de pegar no colo e, por essa ligação
quase paterna, sempre cultivei a intenção de deixar pra eles boas lembranças
desse tio que passou a vida com os bolsos eternamente cheios de saudade.
O Flockinho foi o
único dos sobrinhos que morou comigo, desde o fim da infância até a entrada na
adolescência. Seus únicos defeitos – únicos, porém dois – são ser vascaíno e
gostar de música ruim. Mas, ninguém é perfeito, alguém já disse.
Uma vez a gente foi junto visitar o vô Elói, no
hospital. Como tinha muita gente e só podiam entrar no quarto duas pessoas por
vez, ficamos dando um tempo no carro, ouvindo música, enquanto conversávamos.
Primeiro falamos de futebol, depois de basquete, que ele treinava e jogava
muito bem e, num momento de silêncio, ele falou com espanto:
– Olha essa música, tio! O cara falou isso tudo,
a música toda, pra no final dizer que ama a mulher, que maneiro, muito maneiro.
Eu nem tinha percebido o que estava tocando no
CD, nem que ele estava prestando atenção na música, muito menos na letra,
a ponto de se surpreender com o final. Não tive dúvida, botei de novo a música
pra tocar e fui ouvindo junto com ele, cantando os trechos que eu conhecia.
A
música era Outros Sonhos, do bom e velho Chico Buarque, que diz “Sonhei que o
fogo gelou, sonhei que a neve fervia, sonhei que ela corava quando me via. Sonhei que ao meio-dia havia
intenso luar, e o povo se embevecia”.
Eu
ia confirmando a letra, repetindo umas partes e enfatizava que eram coisas
absurdas que o autor tinha sonhado pra que a gente, ao ouvir a música, imaginasse o sonho dele. “De
mão em mão o ladrão relógios distribuía e a polícia já não batia. De noite
raiava o sol, que todo mundo aplaudia. Maconha só se comprava na tabacaria, drogas
na drogaria”.
Ele dava risada desses versos, mas estava cada
vez mais atento pra ouvir o final novamente, que confirmaria o que tinha
chamado a sua atenção desde a primeira vez. E aí chegou o final: “Sonhei que o
fogo gelou, sonhei que a neve fervia, e por sonhar o impossível, ai... sonhei
que tu me querias. ”
– Viu? Ele só sonhou coisas impossíveis e disse
que, entre aquelas impossibilidades todas, era impossível ela querer ele. Cara,
que doideira. Muito foda esse cara. Chico Buarque – repetiu pausado.
– Isso é poesia, Flockinho – disse o tio pra lá
de contente por ele ter sacado tudo.
– A música só vale a pena quando tem o poder de te
levar, de revelar, de te fazer refletir. Isso é uma forma de arte, como a
pintura e a escultura. Nessa música, além da poesia, a melodia também é
elaborada, as cifras, os acordes ou a partitura dela é difícil de tocar, não é
simples e, até olhando, sem qualquer conhecimento de música, dá pra pessoa notar
a diferença da construção dela – expliquei.
Ele só repetia o seu “muito foda”.
Não sei dizer até que ponto nós, pais e tios, primos e avós, temos responsabilidade sobre o que esses garotos e garotas ouvem. O encontro
do Flockinho com a poesia do Chico Buarque poderia nunca ter acontecido, assim
como provavelmente não chega a acontecer com milhões de pessoas, de crianças e
jovens. A poesia é para todos. A música também. Ou deveriam ser.
Quando eu vejo entrevista de alguém que agradece
aos pais pelos discos que ouviram na infância e adolescência, pela música que
ecoava na casa toda e que, de alguma maneira, ela foi responsável por
descobertas, por aflorar sensibilidades, reflexões, cliques que demorariam anos
pra ser clicados, eu tenho mais certeza de que o poder de estarmos cantarolando
uma melodia, assoviando uma canção durante um caminho qualquer é enorme e faz
toda a diferença.
Por fim, às vezes eu acho que o mundo é cíclico,
que tudo se repete. Uma prova disso é uma crônica minha, publicada aqui mesmo,
em novembro de 2014, chamada A Bossa Nova
de Caetano. É bem parecida com esta aqui no tema, só que o personagem é o
meu filho Deco. Mas o Chico é o mesmo. O mesmo Chico foda...