Até hoje eu lembro com certa exatidão das minhas
peladas na rua de paralelepípedos. Eu sempre descalço. Eu e todo mundo. Quando
o futebol era mais oficial a gente dizia que era jogo de camisa e de tênis, o
que significava que era um time sem camisa e outro com e todos devidamente
calçados. E se alguém chegava de tênis nas nossas peladas, que era a maioria dos
nossos jogos, a gente fazia ficar descalço como todo mundo.
Os jogos eram bem em frente do portão da nossa
casa e bastava a bola ir longe, rua abaixo, pra eu correr até a geladeira,
gorgolejar ávido alguma coisa e voltar correndo pra peleja. Me lembro bem da
minha turminha. O Ednelson, mais conhecido como baiano, e seu irmão, o Inglês,
mas tinha também o Renatinho, o Jorge, que era afilhado da minha tia Irene, o
Marquinhos e o Zé. Tinha também dois Tiões, se é que esse plural tá certo. O
Tião Azeitona e o Tião Tristeza. Duas figuras. Com esses apelidos até hoje não
sei como ninguém ali virou bandido. Foi pura sorte.
Ah, já ia esquecendo de explicar que eu tinha
uns 8, 9 anos e a turma de cima, os adultos, às vezes deixava eu jogar com eles
quando faltava gente. O craque deles era o Pascoal, um neguinho muito bom de
bola, calmo como ele só e bem magrinho. Nos finais de semana eu ia no jogo dos
adultos só pra ver o Pascoal jogar.
Meu pai chegou a jogar também muitas vezes junto
comigo nos finais de semana, nos jogos dos adultos. Lembro que uma vez meu tio
chamou ele no canto e apontando pra mim, que fazia umas embaixadinhas na rua, disse
baixinho:
– Já viu como esse puto levanta a bola?
E meu pai, nada modesto, respondeu:
– Ele tem a quem puxar! – se referindo a ele
próprio, mas também ao meu tio, que chegou a jogar no famoso Santos com um tal
de Pelé que, na época, era ainda um garoto.
Jogar bola na rua tem as suas regras. Além
daquela de jogar descalço tinha uma que era na hora que passava algum carro. Cada
um parava onde estava e só podia continuar o jogo depois de a bola ser
movimentada de novo. Isso servia não só pra carros, mas também pra bicicletas
ou pessoas que passassem na calçada durante a pelada. Mulheres, crianças e as meninas
da escola tinham total prioridade.
Uma vez, no meio do jogo, surgiu um enorme
caminhão entrando na rua. Não levava qualquer carga e estava passando bem
devagar, já que aquela era uma rua sem muito trânsito. Dava pra ver que tinha
umas cordas, uns pedaços de madeira, umas latas e baldes, tudo isso jogado na
carroceria que era toda de madeira, rodeada por uma cerquinha também de
madeira, bem baixinha.
De repente notei que todos da pelada estavam
pendurados naquela cerquinha, pegando uma carona, gritando pra eu subir também.
Com as mãos eles se seguravam na cerquinha e, com os pés, se apoiavam no ferro
que cobria as rodas e também no para-choque traseiro que era, naturalmente,
imenso. Na dúvida entre subir ou não, entre considerar a salvaguarda dos meus
óculos de grau e pensando na minha total inexperiência para certos tipos de
brincadeira que colocavam a vida em risco, eu subi.
Uma delícia aquilo. O caminhão ia devagar
levando toda a molecada que gritava e ia mexendo com as pessoas que passavam. O
ventinho no rosto, a cara das pessoas aprovando ou desaprovando aquela
aventura. Enfim, eu queria ficar ali pra sempre. Literalmente.
Foi aí que comecei a ouvir gritos de salta e
pula logo e desconfiei, com os meus cabelos arrepiados, que todos estavam
falando comigo. Aflição, nervosismo e medo do perigo, eu pensei logo que
deveria ficar calmo pra não fazer nenhuma besteira. E então os gritos ficaram
mais altos e um dos meus amigos, talvez tenha sido até o meu irmão, me fez
tomar uma decisão imediata.
– Pula rápido que ele vai pegar a Avenida
Brasil. Pula loooogooo!!!
Eu até intuí que foi naquele momento da curva no
fim da rua onde todos tinham decido, pois era a hora em que o caminhão quase
parou pra verificar o cruzamento. Ali, provavelmente, eu fiquei sozinho e eles
só se deram conta quando olharam pro caminhão de novo e me viram ainda pendurado.
Mas assim que eu ouvi aquele enfático pula logo,
seguido das palavras Avenida e Brasil, foi só o tempo de olhar pros lados e me
perceber sozinho pra eu soltar mãos e pés de uma só vez, com tudo, rezando pra
que minha vida não acabasse ali.
Tal como um filme de Carlitos, eu mal botei os
pés no chão e já fui aterrissando de peito naquele espaço específico que fica
entre o meio-fio e o início do calçamento, onde ficam depositadas todas as
sujeiras, a terra, o lixo e os ralos de água da chuva.
A queda foi algo cinematográfica. Sem os truques
de câmera, porém. Tudo ali era real. Eu ralei desde as palmas das mãos até o
peito dos pés. Braços, cotovelos, peito e barriga, joelhos, canela, queixo, os
ossinhos laterais abaixo da cintura... Só não ralei os óculos que ficaram
intactos no rosto, preservados como nos filmes onde os efeitos especiais
existem. Com sangue e areia por todo o corpo, meus amigos ficaram felizes por
eu ainda estar vivo e por ter pulado antes de chegar a Avenida Brasil. Eu
também fiquei feliz com isso, só que a dor me dificultava demonstrar meus
sentimentos na mesma intensidade que eles.
Em comitiva até minha casa, fomos todos andando
pra contar o ocorrido pra minha mãe. Ela já tinha estranhado que todo mundo do
futebol tinha sumido de uma só vez e por isso já estava no portão nos
esperando. Primeiro eles fizeram uma linha de frente pra me esconder da minha
mãe, enquanto narravam toda a história da carona, preparando o terreno. Depois
ela só disse um “deixa eu ver”, pedindo pra eles saírem da frente.
Como eu não tinha o que falar, fiquei calado e
quietinho, enquanto ela me olhava.
E então ela disse com toda a calma:
– Bem, você foi corajoso pra pegar essa carona,
mesmo com os óculos e tudo mais. Então agora vai ter que ser corajoso porque a
gente vai ter que lavar muito bem tudo isso aí, com muita água e sabão, pra não
infeccionar.
Minha mãe sabia que eu tinha aprendido a lição e
por isso nem deu a bronca que todos esperavam.
Na verdade a coisa toda foi até bem mais fácil
pro meu lado. Ela disse pra todos nós ficarmos ali e em poucos minutos voltou
com uma esponja e um sabonete. No mesmo instante ligou a mangueira na torneira
da área da frente da casa, que ela usava pra molhar as plantas, e perguntou
quem estava a fim de uma água bem geladinha pra passar o calor.
Meus amigos se entreolharam e foram todos pra
debaixo do esguicho.
Eu lembro que ardeu muito todo aquele processo
de limpar os machucados. Mas sei que sem a minha mãe ali, aquilo teria doído
muito mais.
Ainda hoje, as coisas doem muito mais sem ela.