quarta-feira, 20 de setembro de 2017

O Caminhão


Até hoje eu lembro com certa exatidão das minhas peladas na rua de paralelepípedos. Eu sempre descalço. Eu e todo mundo. Quando o futebol era mais oficial a gente dizia que era jogo de camisa e de tênis, o que significava que era um time sem camisa e outro com e todos devidamente calçados. E se alguém chegava de tênis nas nossas peladas, que era a maioria dos nossos jogos, a gente fazia ficar descalço como todo mundo.
Os jogos eram bem em frente do portão da nossa casa e bastava a bola ir longe, rua abaixo, pra eu correr até a geladeira, gorgolejar ávido alguma coisa e voltar correndo pra peleja. Me lembro bem da minha turminha. O Ednelson, mais conhecido como baiano, e seu irmão, o Inglês, mas tinha também o Renatinho, o Jorge, que era afilhado da minha tia Irene, o Marquinhos e o Zé. Tinha também dois Tiões, se é que esse plural tá certo. O Tião Azeitona e o Tião Tristeza. Duas figuras. Com esses apelidos até hoje não sei como ninguém ali virou bandido. Foi pura sorte.
Ah, já ia esquecendo de explicar que eu tinha uns 8, 9 anos e a turma de cima, os adultos, às vezes deixava eu jogar com eles quando faltava gente. O craque deles era o Pascoal, um neguinho muito bom de bola, calmo como ele só e bem magrinho. Nos finais de semana eu ia no jogo dos adultos só pra ver o Pascoal jogar.
Meu pai chegou a jogar também muitas vezes junto comigo nos finais de semana, nos jogos dos adultos. Lembro que uma vez meu tio chamou ele no canto e apontando pra mim, que fazia umas embaixadinhas na rua, disse baixinho:
– Já viu como esse puto levanta a bola?
E meu pai, nada modesto, respondeu:
– Ele tem a quem puxar! – se referindo a ele próprio, mas também ao meu tio, que chegou a jogar no famoso Santos com um tal de Pelé que, na época, era ainda um garoto.
Jogar bola na rua tem as suas regras. Além daquela de jogar descalço tinha uma que era na hora que passava algum carro. Cada um parava onde estava e só podia continuar o jogo depois de a bola ser movimentada de novo. Isso servia não só pra carros, mas também pra bicicletas ou pessoas que passassem na calçada durante a pelada. Mulheres, crianças e as meninas da escola tinham total prioridade.
Uma vez, no meio do jogo, surgiu um enorme caminhão entrando na rua. Não levava qualquer carga e estava passando bem devagar, já que aquela era uma rua sem muito trânsito. Dava pra ver que tinha umas cordas, uns pedaços de madeira, umas latas e baldes, tudo isso jogado na carroceria que era toda de madeira, rodeada por uma cerquinha também de madeira, bem baixinha.
De repente notei que todos da pelada estavam pendurados naquela cerquinha, pegando uma carona, gritando pra eu subir também. Com as mãos eles se seguravam na cerquinha e, com os pés, se apoiavam no ferro que cobria as rodas e também no para-choque traseiro que era, naturalmente, imenso. Na dúvida entre subir ou não, entre considerar a salvaguarda dos meus óculos de grau e pensando na minha total inexperiência para certos tipos de brincadeira que colocavam a vida em risco, eu subi.
Uma delícia aquilo. O caminhão ia devagar levando toda a molecada que gritava e ia mexendo com as pessoas que passavam. O ventinho no rosto, a cara das pessoas aprovando ou desaprovando aquela aventura. Enfim, eu queria ficar ali pra sempre. Literalmente.
Foi aí que comecei a ouvir gritos de salta e pula logo e desconfiei, com os meus cabelos arrepiados, que todos estavam falando comigo. Aflição, nervosismo e medo do perigo, eu pensei logo que deveria ficar calmo pra não fazer nenhuma besteira. E então os gritos ficaram mais altos e um dos meus amigos, talvez tenha sido até o meu irmão, me fez tomar uma decisão imediata.
– Pula rápido que ele vai pegar a Avenida Brasil. Pula loooogooo!!!
Eu até intuí que foi naquele momento da curva no fim da rua onde todos tinham decido, pois era a hora em que o caminhão quase parou pra verificar o cruzamento. Ali, provavelmente, eu fiquei sozinho e eles só se deram conta quando olharam pro caminhão de novo e me viram ainda pendurado.
Mas assim que eu ouvi aquele enfático pula logo, seguido das palavras Avenida e Brasil, foi só o tempo de olhar pros lados e me perceber sozinho pra eu soltar mãos e pés de uma só vez, com tudo, rezando pra que minha vida não acabasse ali.
Tal como um filme de Carlitos, eu mal botei os pés no chão e já fui aterrissando de peito naquele espaço específico que fica entre o meio-fio e o início do calçamento, onde ficam depositadas todas as sujeiras, a terra, o lixo e os ralos de água da chuva.
A queda foi algo cinematográfica. Sem os truques de câmera, porém. Tudo ali era real. Eu ralei desde as palmas das mãos até o peito dos pés. Braços, cotovelos, peito e barriga, joelhos, canela, queixo, os ossinhos laterais abaixo da cintura... Só não ralei os óculos que ficaram intactos no rosto, preservados como nos filmes onde os efeitos especiais existem. Com sangue e areia por todo o corpo, meus amigos ficaram felizes por eu ainda estar vivo e por ter pulado antes de chegar a Avenida Brasil. Eu também fiquei feliz com isso, só que a dor me dificultava demonstrar meus sentimentos na mesma intensidade que eles.
Em comitiva até minha casa, fomos todos andando pra contar o ocorrido pra minha mãe. Ela já tinha estranhado que todo mundo do futebol tinha sumido de uma só vez e por isso já estava no portão nos esperando. Primeiro eles fizeram uma linha de frente pra me esconder da minha mãe, enquanto narravam toda a história da carona, preparando o terreno. Depois ela só disse um “deixa eu ver”, pedindo pra eles saírem da frente.
Como eu não tinha o que falar, fiquei calado e quietinho, enquanto ela me olhava.
E então ela disse com toda a calma:
– Bem, você foi corajoso pra pegar essa carona, mesmo com os óculos e tudo mais. Então agora vai ter que ser corajoso porque a gente vai ter que lavar muito bem tudo isso aí, com muita água e sabão, pra não infeccionar.
Minha mãe sabia que eu tinha aprendido a lição e por isso nem deu a bronca que todos esperavam.
Na verdade a coisa toda foi até bem mais fácil pro meu lado. Ela disse pra todos nós ficarmos ali e em poucos minutos voltou com uma esponja e um sabonete. No mesmo instante ligou a mangueira na torneira da área da frente da casa, que ela usava pra molhar as plantas, e perguntou quem estava a fim de uma água bem geladinha pra passar o calor.
Meus amigos se entreolharam e foram todos pra debaixo do esguicho.
Eu lembro que ardeu muito todo aquele processo de limpar os machucados. Mas sei que sem a minha mãe ali, aquilo teria doído muito mais.
Ainda hoje, as coisas doem muito mais sem ela.