segunda-feira, 30 de outubro de 2017

O Caminhoneiro


Desde que o Brasil é Brasil os brasileiros cultivam o sonho de ir trabalhar no hemisfério norte. Seja na Europa ou América, a esperança é sempre renovada, de tempos em tempos, pelos testemunhos dos que venceram. Ralaram, sim, mas conseguiram fazer o seu pezinho de meia fora do país.
E é a partir desses ricos relatos, cheios de determinação e que são verdadeiras receitas de como viver em condições adversas, com dificuldades variadas de adaptação a comida, clima, língua e cultura, que todos se unem no mesmo e decisivo propósito de tentar a vida nos países desenvolvidos.
É claro que todos sabem que as oportunidades, em certos casos, ou melhor, em muitos casos, são aquelas que os próprios cidadãos locais não se interessam, aí inclusas todas aquelas profissões consideradas subprofissões, e são justamente as vagas dessa monta que aparecem e se oferecem. Desde faxina, garçonete e garçom, encanador, pedreiro e por ai vai, tudo representa, num certo sentido, a possibilidade de sobrevivência até que a estabilidade se traduza em ficar, em permanecer no país de algum modo, e ir juntando um dinheirinho do jeito que der.
Saudade de casa é mato. Dos amigos idem, da casa, do bairro e da língua são situações que, dizem, não dá pra mensurar. Só mesmo quem viveu isso sabe o que é a dor da saudade do seu país e sentir essa saudade sendo amassada pelo peso de quilômetros de distância todos os dias.
A Lúcia e o Júnior tinham ido tentar a vida na Alemanha por volta de 1986. Ela era babá em Munique e ele era ajudante de tudo o que aparecia. Algumas vezes ele ganhava um trocado jogando futebol no time de uma loja de persiana onde ele tinha trabalhado. Todos os chamavam de brasileiro e ele estufava o peito.
Na Alemanha as alusões ao Brasil eram raras naquele tempo. Sem internet, com as ligações via telefone fixo caríssimas (Vade retro Embratel), quase sem contato que não fosse por cartas, as dificuldades de obter notícias, de saber o que estava acontecendo eram tamanhas, eu diria inimagináveis para os dias de hoje, com tanta oferta de comunicação gratuita ou quase grátis em praticamente todo o planeta.
No supermercado, uma tarde, a plaquinha dizia “bananas do Brasil” junto do preço, e os dois ficaram ali parados em frente da banca, com um sentimento estranho, olhando pra fruta como se olhassem uma pessoa, um conterrâneo, buscando de alguma maneira, nem que fosse só pelo olhar, uma imagem que os remetessem à sua terra.
As cartas que chegavam do Brasil traziam fotos e ajudavam no que podiam. A notícia de a irmã ter conseguido passar no vestibular foi muito festejada, assim como a promessa de que estava tudo bem e de que, se eles precisassem de alguma coisa, era só escrever. Por sua vez as cartas que chegavam ao Brasil normalmente omitiam muito mais do que revelavam. Tudo estava ótimo, os trabalhos, a vida, a grana, tudo ia bem, caminhava bem e ainda por cima ia melhorar, certamente.
Naquele fim de dia, depois do trabalho, os dois se encontraram na mesma lanchonete de sempre. Tinha um brasileiro que trabalhava lá também e eles ficaram amigos. Quando dava tempo a reunião ali era garantia de uma boa conversa, quase sempre sobre o Brasil.
Assim que eles se sentaram e começaram a olhar o cardápio começou a tocar uma música conhecida no rádio da lanchonete. O amigo de trás do balcão também percebeu e foi depressa aumentar o volume. Era o Roberto Carlos cantando Caminhoneiro, um baita sucesso lançado no finalzinho de 1984.
Quando moravam no Brasil eles odiavam o Roberto, não gostavam de nada dele e ainda reclamavam de uma tia, que adorava o Rei. A música tocando alto na lanchonete e os dois começaram a chorar. Mexendo os braços, como que regendo a música, cada vez que se entreolhavam, choravam ainda mais. Até que chegou o refrão e eles cantaram junto com o Rei, as lágrimas indo abaixo aos borbotões.
Ainda bem que a loja estava vazia, pois o amigo que trabalhava ali a uma certa altura largou o avental e também veio pra mesa deles cantar todos juntos e chorar solidariamente com saudades do Brasil.
Sempre que eu lembro dessa história, que a própria Lúcia, de volta ao Brasil anos depois, me contou, eu não resisto à imagem e à emoção que me vem ao visualizar a cena deles cantando e chorando na lanchonete, ouvindo a música do Rei, em português, numa rádio alemã.
Mas também, quem pode resistir, longe de casa, a uns versos do tipo “No volante eu penso nela. Já pintei no para-choque um coração e o nome dela”?
Nem precisa gostar do Roberto Carlos.