Naquele sábado a aula terminou mais cedo e
alguns alunos ficaram conversando na entrada do curso. Normalmente, quando isso
acontecia, alguém logo surgia com um violão e os alunos se juntavam pra cantar
junto com o professor Marcos, que era músico e carioca. Ficamos cantando ali até que
bateu a hora do almoço, a fome, e os colegas foram embora. Foi então que
decidimos pedir uma pizza.
Poucos minutos depois a outra professora,
Cláudia, também terminou a sua aula e nós três então ficamos ali na parte de
fora da casa, no jardim daquela ampla residência transformada em curso de
inglês, em um bairro nobre de Salvador.
Era ali pelos anos 1992 e, como ainda não havia
celular com internet, o pedido da pizza era feito por telefone. Depois de ligar,
escolher o sabor e a borda, agarramos na conversa e só lembramos da pizza muito
tempo depois, quando uma hora já tinha se passado. Aí o Marcos ligou pra lá de
novo e explicou que ainda não havia sido entregue o pedido. Do outro lado, a
moça da pizzaria respondeu intrigada:
– Olha, o nosso motoboy foi até aí e não tinha
ninguém em casa. Aí ele voltou.
– Não senhora, deve haver algum engano. Aqui ele
não veio. Nós estamos no jardim da casa, na parte de fora, perto do portão de
entrada e ninguém esteve aqui.
Passamos o endereço de novo, com os pontos de
referência, dissemos como era a aparência da casa, a cor, como era o jardim e o
tipo da grade que ficava acima do muro. Tudo certinho, confirmado e voltamos a
esperar, agora com mais atenção no tempo do que da primeira tentativa.
A fome estava braba e a gente começou a
desconfiar que o serviço de entrega de pizza não combinava muito com Salvador.
Puro preconceito nosso, logo rechaçado por todos, com receio de cairmos na
fácil armadilha da fama da preguiça que a gente não concordava, mesmo considerando
a dificuldade que eram os serviços e a relação com os trabalhadores dessa área,
que a gente conhecia e gostava.
Nosso papo então foi desviando da falta de troco
do comércio, da lerdeza do trânsito, da complacência dos motoristas de taxi, da
dificuldade que era marcar um compromisso qualquer na área de serviços gerais,
tipo um montador de armário ou mesmo agendar uma pintura ou uma mudança. Na
praia, frequentemente os pedidos eram esquecidos e a gente nem se incomodava mais
de ter de ir de novo na barraca pra lembrar o balconista do refrigerante ou da
caipirinha que não tinha ido pra mesa. Mas tudo estava na conta de se viver bem
naquela terra ótima e nada abalava o amor daqueles três forasteiros pela cidade
do Senhor do Bonfim.
Bem, mas meia hora se passou e lá foi o Marcos
ligar de novo. Primeiro perguntou quem era a senhora que o atendia. Era a dona
da pizzaria.
– Minha senhora, estamos com uma fome danada e
nada de pizza. Uma simples pizza, num sábado de tarde, sem movimento, trânsito
tranquilo. O que está acontecendo?
A dona então tornou a repetir o mesmo de antes:
– É que o motoboy esteve aí de novo e de novo não tinha ninguém
em casa, senhor. Aí ele não pode fazer nada. Olha, repare, não é a rua tal e
número tal?
– Sim, é isso mesmo. No bairro Itaigara.
– Pois então, ele foi aí e a casa estava
totalmente fechada. Ninguém atendeu o coitado. Ele disse que passou na frente,
chamou, depois deu a volta pela rua de trás e tornou a passar aí na frente da
casa e nada.
– Ué, então ele estava na rua errada. Essa rua
aqui é uma rua sem saída. Não dava pra ele contornar pela rua de trás porque
não tem saída. Se ele entrar aqui e for até o final da rua vai ter que voltar pelo
mesmo lugar. E por aqui eu garanto que ele não passou.
O professor Marcos pôde ouvir quando ela perguntou
ao motoboy se a rua era mesmo sem saída, ainda com o telefone na mão, pra
confirmar o trajeto dele.
– Olha, ele tá dizendo que a rua é sem saída
nada – disse a dona.
– Como não é? É a rua onde eu trabalho todo dia,
moça. Viu? Isso prova que ele esteve foi em outro lugar qualquer e não aqui,
pois esta rua de nome tal, no Itaigara, é uma rua sem saída – explicou o Marcos
com a mão espalmada no ar, uma considerável contrariedade, e um certo ar de
quem venceu a discussão.
– Veja se ele pode vir agora, bem rapidinho, que
dessa vez a gente vai ficar no lado de fora da casa – interrompeu a Cláudia, em
nome da fome canina do trio.
– A senhora ouviu o que a minha amiga falou aqui?
Nós vamos ficar do lado de fora da casa, na calçada mesmo. Se ele passar pela
rua dessa vez a gente vai ver. Mas diz pra ele vir bem rápido que a gente está
com muita fome.
Foi então que a dona da pizzaria nos informou de
algo fundamental sobre o motoboy:
– Ó, seu Marcos, acontece que o Zé Carlos tá
dizendo aqui que não vai mais entregar pizza nenhuma aí. Que ele esteve aí e
vocês não atenderam e que ele já tá é muito retado com toda essa confusão de
casa fechada e não vai mais não! Eu tô falando com ele aqui, mas ele tá retado
mesmo. Desculpa aí, viu? – e desligou.