Frei Antônio era o pároco auxiliar da Igreja de
Santa Rita que fica em Ramos, no Rio de Janeiro. O titular era o frei Luís. Ambos
eram italianos e faziam parte da Ordem dos Agostinianos Descalços, uma
congregação firmada sob as ideias e os ideais de Santo Agostinho que aliavam
cristianismo e filosofia como base para a fé.
Os agostinianos sempre foram excelentes oradores
e o frei Luís não era diferente. Suas palestras durante a missa, na homilia,
eram dignas de serem gravadas. Um constante e fraterno convite à reflexão, suas
palavras eram cheias de conteúdo social, histórico e até econômico e político. Uma aula.
Frei Antônio era mais ligado ao grupo de jovens
do qual eu fazia parte. Talvez por ser o auxiliar da igreja e por ter mais
tempo também. Era muito musical, tocava piano e órgão e me deu boas dicas
quando eu comecei a tentar alguma coisa com as teclas, lá mesmo na igreja. Além
disso, instalado em seu órgão de fole, acompanhava a missa semanal que a gente
tocava, se juntando aos nossos violões e ainda jogava futebol com a gente, no
sábado de manhã.
Foi ao final de uma dessas peladas que o frei
Antônio chamou o Jairo pra uma conversa.
– Queria falar com você um instante. Presta
atenção, vão jogar os times de futebol das turmas 301-tarde e 305-manhã, da
escola Einstein, que fica no distrito de Berkshire, na Inglaterra. Tem uma bola
que o menino Adam vai chutar aos 45 minutos do segundo tempo que vai bater na
trave. Bem, você tem o poder de decidir se ela, após bater na trave, vai sair
ou vai ser gol da turma 301-tarde. O que você decide?
O garoto deu um riso meio sem jeito, meio como não
entendendo nada, olhou pro rosto do frei Antônio e disse:
– Ué, não sei.
O pároco seguiu:
– No Japão, no clube Saporo, neste instante está
tendo um jogo de basquete entre as meninas que treinam lá pra decidir quem vai
ser escolhida para o time principal. Os dois arremessos da menina Tadashi podem
dar a vitória ao seu time e ela pode acabar sendo escolhida pro time de cima. O
que você decide? Os arremessos dela vão entrar ou não?
– E tem mais – continuou o padre – na África,
está tendo um jogo de rúgbi, aquele futebol com as mãos, e no jogo vai ter um
acidente entre o jogador Uro e o seu amigo Bapbèe, de origem francesa. Eles vão
se chocar na linha lateral do campo e o Uro vai sofrer uma fratura no braço
direito. Você novamente tem o poder: então, o Uro vai ter condições de
continuar a jogar depois dessa contusão? Vai ter mesmo o choque entre os
jogadores ou você vai livrá-los desse acidente, anulando o lance?
O menino olhou de novo pro frei Antônio, pensou
um pouco e disse:
– Sei lá, frei. Acho que tanto faz se a bola
entra na cesta, se o chute bate na trave e se o cara lá na África vai quebrar o
braço. Pra mim tanto faz, sei lá, é muita coisa pra eu decidir assim desse
jeito. É, eu acho que não sei não.
– Então, é justamente sobre isso que eu queria
falar com você. Se você acha muito difícil decidir sobre três situações que eu
falei, imagina Deus tendo que decidir cada cobrança de falta, cada gol, cada
defesa, cada escanteio de todos os times do mundo, de todos os campeonatos, de
todas as modalidades, em todos os países? E depois pensa em todos esses
jogadores dando glórias a Deus por ter conseguido um drible, um chute, um
arremesso. Será que isso faz sentido?
– É, pensando assim...
– Dê gloria a Deus pelo sistema solar, pelas
órbitas dos planetas, pelas baleias, a formação do nosso corpo no ventre da
mãe. Isso sim é glória de Deus. A plantação e a colheita, a formação dos frutos
nas árvores, o fluxo sanguíneo dentro das veias de cada ser vivo. Isso é glória
a Deus. Esse negócio de ficar levantando a mãozinha pro céu dizendo que Deus te
abençoou no chute que bateu no zagueiro adversário e entrou é algo ruim. Isso é
reduzir Deus aos caprichos do homem que, no momento seguinte, se perdem na
memória. Nada de Deus deve ser perdido na memória. Imagine a grandiosidade da
obra de Deus e o que representa, diante de tudo isso, um mero arremesso certeiro
do meio da quadra, no segundo final do jogo?
– É verdade – murmurou o desconcertado Jairo.
– Um menino que nasce na favela e resiste a entrar
para o tráfico, que segue tentando estudar e trabalhar honestamente, isso é a
glória de Deus, esse é o milagre de todos os dias. O esporte, a competição deve
servir pra que o homem entenda que perder e ganhar faz parte de uma mesma
lição. Respeitar a equipe que perde é tão importante quanto vencer, da mesma
forma que quem perde deve reconhecer a vitória do outro e se orgulhar de ter
lutado, competido com justiça e respeito. Na vida a gente perde e ganha e
quando perdemos não é porque Deus foi injusto ou mau com a gente, mas sim que
aquilo pode e deve servir como aprendizado. No mundo de hoje todos querem
ganhar a qualquer preço e ainda querem que Deus dê a vitória, mesmo que
imerecidamente.
– É assim mesmo, frei.
– A graça de Deus é muito maior. O homem precisa
entender isso. Toda a criação é importante pra Deus e não só um time, uma
camisa ou uma bandeira. Se Deus privilegia um de seus filhos, automaticamente
está preterindo o outro filho. E isso é impossível diante do amor imenso de
Deus, entende?
Eu estava próximo, ouvindo a conversa do outro canto
do banco onde eles estavam sentados. Quando o frei Antônio acabou de falar eu
disse baixinho “glória a Deus” e dei um risinho em sua direção. Em resposta,
ele apenas balançou a cabeça, sem que o Jairo visse. Toda aquela conversa me
soou como uma repreensão camarada, daquelas que o pai da gente nos passa e a
gente retribui com um largo abraço.
Tenho saudades do frei Antônio, daquelas tardes
de sábado em que a gente ficava ensaiando as músicas novas pra missa, tocando
piano, ajustando as vozes do coral e depois subíamos com o grupo pra igreja pra
ensaiar com o órgão de pedal. Foi um tempo bem legal e musical.
Uns bons anos depois eu fiquei sabendo que o
frei Antônio largou o sacerdócio, deixou a Ordem dos Agostinianos Descalços e
se casou, constituindo família no Paraná, terra-natal da sua esposa.
E quando a notícia me chegou, me lembro de ter dado
um sorriso e murmurado:
– Glória a Deus por isso!