Era uma quinta-feira ensolarada e meu amigo
Miranda, assim que chegou ao escritório, veio até a minha mesa, me convidando
pra ir com ele a Friburgo no sábado próximo.
– Essa época do ano Friburgo é muito aprazível,
fresquinha, mesmo com sol a pino. Vamos pegar a estrada bem cedinho porque a
Josi quer chegar lá na loja de atacado antes de encher. Mas a gente deixa ela
no comércio e vai dar um rolé pelo centro da cidade. Vai ser demais – se animou
o Miranda.
Realmente, Friburgo é bem agradável na primavera.
Uma cidade de serra, bem cuidada e florida, com umas praças bem bacanas e
árvores por todo lado. Até a estrada pra lá é bonita de se ver. Ademais, pertinho
do Rio de Janeiro, é uma das poucas cidades turísticas que, por não ter o
atrativo do mar, não sofre com aquela muvuca típica das férias de verão que
associa calor, ônibus de excursão e engarrafamento, ou seja, o caos.
Um outro atrativo que a cidade tinha nessa época
– não sei se tem ainda – é a quantidade de fábricas de lingerie e roupas
íntimas em geral. Esse comércio é, ou era, responsável por boa parte da
economia da região, mesmo em tempos de baixa temporada. Na verdade, Friburgo
sempre recebeu mais turistas no inverno e, por isso, a iniciativa do Miranda,
em plena primavera, era perfeita.
A Josi, mulher do Miranda estava eufórica no
carro. Levava uma lista de pedidos de toda a família e, além das roupas pra si,
ia comprar pra revender uma quantidade que eu não entendi direito quando ela
explicou pro marido, mas deu pra perceber que era muita coisa.
No meio da estrada tinha uma parada obrigatória,
típica e tradicional que servia cafés, chás, bolos e doces diversos, já para
que o sujeito fosse se acostumando com as coisas da serra e começasse a se aclimatar
com as temperaturas agradáveis que vinham dali em diante.
Estávamos na lanchonete da estrada quando de
repente todo mundo parou pra admirar um carro Mercedes-Benz conversível,
branco, lindo, impecável, coisa rara nas ruas do Brasil dos anos 80, período em
que os importados eram proibitivos até mesmo para os indivíduos, digamos, mais
opulentos financeiramente.
Nos primeiros instantes reinou na lanchonete um
grande silêncio, durante o qual todos ficaram virados para a fachada de vidro
da loja apreciando o carro e o seu motorista, que se preparava pra sair porta afora.
No instante seguinte irrompeu no salão um burburinho cada vez mais alto, repleto
de comentários reprovadores e até com algumas risadinhas de soslaio, tudo isso
em razão da vestimenta do tal motorista do carrão.
Eu e meus amigos de viagem só notamos a razão do
alvoroço quando o sujeito entrou na lanchonete. Faltava pouco para o seu traje
ser uma roupa de dormir ou algo do gênero. Se bem que qualquer pijama era
melhor do que aquilo. Ninguém conseguia entender a cena e muito menos a roupa
do cara. A bermuda frouxa, caindo pela cintura, combinava com uma camiseta
surrada, muito surrada, sem cor até, encardida na percepção da Josi, e um
chinelo deplorável que, basta dizer, a sola era feita de pneu de carro.
Ficamos um tempo os três a avaliar se o sujeito
era mesmo o dono daquele veículo. Mas, pelo vistoso relógio, os óculos de sol e
o reluzente cordão de ouro, enorme, chegamos a conclusão de que sim, aquele era
o dono do Mercedes.
Saímos da parada antes dele e não sabemos como
foi a sua despedida. Na nossa imaginação, ao perceber que todos o olhavam, ele buzinou
três vezes e, em seguida, rodopiou e deu adeusinho para o público assistente,
enquanto acelerava o seu bólido até a estrada.
Quando finalmente chegamos a Friburgo, o destino
mudou os nossos planos. O destino naquele dia tinha o nome de Josi. Quando a
mulher soube que o plano do marido era passear pela cidade comigo, enquanto ela
ralava fazendo as compras, usou todo o seu charme e imposição pra determinar,
com todo o carinho, que o Miranda ia com ela correr as lojas e ajudar com as
sacolas.
– Como, aliás, deve fazer todo bom marido –
frisou a dócil esposa.
Pronto. No nosso passeio bucólico pela bucólica
Friburgo tinha entrado neve bucólica.
Desapontado e resignado, o nosso Miranda
desapareceu no final da praça principal da cidade, de braços dados com a sua afável
dona, em direção às lojas de lingerie. Dali a uns minutos voltou ele, correndo,
pra me entregar um estojo de couro.
– Cara, desculpe. Acabou que esse passeio virou
uma furada, né? Mas, ó, aqui dentro tem um belo de um charuto cubano, fósforos
e tudo. Eu ia dar umas baforadas durante o nosso rolé, mas, já que não tem jeito,
você degusta esse bicho por mim, valeu?
Eu nem tive tempo de responder e meu amigo já
voltava correndo pra dentro da galeria pra cumprir a sua sina de bom marido.
Eu ali, olhando aquelas árvores enormes, me
sentei em um banco no meio dos jardins e das flores, todas alinhadas e
agrupadas por cores, e tratei de abrir o tal estojo do charuto. Tirei as
etiquetas, cortei a ponta e acendi o bicho, depois de dar aquela cheiradinha
básica naquele ícone cubano. Eu nunca gostei muito de charuto, tampouco sou entendido
de fumo cubano, mas até que enganava bem. E depois, o cheiro e o leve sabor do
charuto me surpreenderam e eu até passei a gostar daquele ritual.
Fiquei assim uns minutos esfumaçando a bela
praça quando, de repente, o rapaz da banca de jornal em frente a mim saiu de
trás do balcão e foi falar com o guarda que estava na lateral da praça. Os dois
conversavam, gesticulavam, abanavam a cabeça e, de vez em quando, apontavam pra
mim.
Claro que eu estranhei, mas continuei a
charutear despreocupado. Até que eles vieram na minha direção. Os dois
apressados, falando ao mesmo tempo, perguntaram:
– Oi, bom dia. O senhor é o dono daquele
Mercedes? Eu queria que o senhor tirasse o carro da vaga porque ali não é
permitido estacionar – disse o guarda apressado.
– Olha só, o guarda veio me perguntar sobre o
carro e eu disse que antes de multar era bom avisar ao dono e aí viemos falar
com o rapaz aí pra tirar o Mercedão. Carrão, hein doutor? – se animou o
jornaleiro.
Era o tal Mercedes lá da parada da estrada. E eu
nem tinha notado que ele estava ali perto.
Muito provável que eles até tenham visto o
verdadeiro dono, mas, a considerar as suas roupas, como aconteceu na
lanchonete, dificilmente o identificaram como tal.
Bem, para espanto dos dois homens eu expliquei
que o Mercedes não era meu, que nem carro eu tinha e que estava ali em Friburgo
porque vim de carona com um amigo. Depois fiquei avaliando as minhas roupas pra
ver se, por acaso, elas seriam roupas de quem tem um carrão importado daqueles.
Enquanto eu pensava nisso, o rapaz contou que
quando o guarda chegou na banca e ele me viu aqui sentado na praça, teve
certeza de que o Mercedes era meu. E justificou:
– O doutor aí, todo despreocupado, sentado na
praça. Sabe como é. Um homem com um charuto na boca faz toda a diferença.
Foi o charuto!