quinta-feira, 7 de junho de 2018

O Charuto


Era uma quinta-feira ensolarada e meu amigo Miranda, assim que chegou ao escritório, veio até a minha mesa, me convidando pra ir com ele a Friburgo no sábado próximo.
– Essa época do ano Friburgo é muito aprazível, fresquinha, mesmo com sol a pino. Vamos pegar a estrada bem cedinho porque a Josi quer chegar lá na loja de atacado antes de encher. Mas a gente deixa ela no comércio e vai dar um rolé pelo centro da cidade. Vai ser demais – se animou o Miranda.
Realmente, Friburgo é bem agradável na primavera. Uma cidade de serra, bem cuidada e florida, com umas praças bem bacanas e árvores por todo lado. Até a estrada pra lá é bonita de se ver. Ademais, pertinho do Rio de Janeiro, é uma das poucas cidades turísticas que, por não ter o atrativo do mar, não sofre com aquela muvuca típica das férias de verão que associa calor, ônibus de excursão e engarrafamento, ou seja, o caos.
Um outro atrativo que a cidade tinha nessa época – não sei se tem ainda – é a quantidade de fábricas de lingerie e roupas íntimas em geral. Esse comércio é, ou era, responsável por boa parte da economia da região, mesmo em tempos de baixa temporada. Na verdade, Friburgo sempre recebeu mais turistas no inverno e, por isso, a iniciativa do Miranda, em plena primavera, era perfeita.
A Josi, mulher do Miranda estava eufórica no carro. Levava uma lista de pedidos de toda a família e, além das roupas pra si, ia comprar pra revender uma quantidade que eu não entendi direito quando ela explicou pro marido, mas deu pra perceber que era muita coisa.
No meio da estrada tinha uma parada obrigatória, típica e tradicional que servia cafés, chás, bolos e doces diversos, já para que o sujeito fosse se acostumando com as coisas da serra e começasse a se aclimatar com as temperaturas agradáveis que vinham dali em diante.
Estávamos na lanchonete da estrada quando de repente todo mundo parou pra admirar um carro Mercedes-Benz conversível, branco, lindo, impecável, coisa rara nas ruas do Brasil dos anos 80, período em que os importados eram proibitivos até mesmo para os indivíduos, digamos, mais opulentos financeiramente.
Nos primeiros instantes reinou na lanchonete um grande silêncio, durante o qual todos ficaram virados para a fachada de vidro da loja apreciando o carro e o seu motorista, que se preparava pra sair porta afora. No instante seguinte irrompeu no salão um burburinho cada vez mais alto, repleto de comentários reprovadores e até com algumas risadinhas de soslaio, tudo isso em razão da vestimenta do tal motorista do carrão.
Eu e meus amigos de viagem só notamos a razão do alvoroço quando o sujeito entrou na lanchonete. Faltava pouco para o seu traje ser uma roupa de dormir ou algo do gênero. Se bem que qualquer pijama era melhor do que aquilo. Ninguém conseguia entender a cena e muito menos a roupa do cara. A bermuda frouxa, caindo pela cintura, combinava com uma camiseta surrada, muito surrada, sem cor até, encardida na percepção da Josi, e um chinelo deplorável que, basta dizer, a sola era feita de pneu de carro.
Ficamos um tempo os três a avaliar se o sujeito era mesmo o dono daquele veículo. Mas, pelo vistoso relógio, os óculos de sol e o reluzente cordão de ouro, enorme, chegamos a conclusão de que sim, aquele era o dono do Mercedes.
Saímos da parada antes dele e não sabemos como foi a sua despedida. Na nossa imaginação, ao perceber que todos o olhavam, ele buzinou três vezes e, em seguida, rodopiou e deu adeusinho para o público assistente, enquanto acelerava o seu bólido até a estrada.
Quando finalmente chegamos a Friburgo, o destino mudou os nossos planos. O destino naquele dia tinha o nome de Josi. Quando a mulher soube que o plano do marido era passear pela cidade comigo, enquanto ela ralava fazendo as compras, usou todo o seu charme e imposição pra determinar, com todo o carinho, que o Miranda ia com ela correr as lojas e ajudar com as sacolas.
– Como, aliás, deve fazer todo bom marido – frisou a dócil esposa.
Pronto. No nosso passeio bucólico pela bucólica Friburgo tinha entrado neve bucólica.
Desapontado e resignado, o nosso Miranda desapareceu no final da praça principal da cidade, de braços dados com a sua afável dona, em direção às lojas de lingerie. Dali a uns minutos voltou ele, correndo, pra me entregar um estojo de couro.
– Cara, desculpe. Acabou que esse passeio virou uma furada, né? Mas, ó, aqui dentro tem um belo de um charuto cubano, fósforos e tudo. Eu ia dar umas baforadas durante o nosso rolé, mas, já que não tem jeito, você degusta esse bicho por mim, valeu?
Eu nem tive tempo de responder e meu amigo já voltava correndo pra dentro da galeria pra cumprir a sua sina de bom marido.
Eu ali, olhando aquelas árvores enormes, me sentei em um banco no meio dos jardins e das flores, todas alinhadas e agrupadas por cores, e tratei de abrir o tal estojo do charuto. Tirei as etiquetas, cortei a ponta e acendi o bicho, depois de dar aquela cheiradinha básica naquele ícone cubano. Eu nunca gostei muito de charuto, tampouco sou entendido de fumo cubano, mas até que enganava bem. E depois, o cheiro e o leve sabor do charuto me surpreenderam e eu até passei a gostar daquele ritual.
Fiquei assim uns minutos esfumaçando a bela praça quando, de repente, o rapaz da banca de jornal em frente a mim saiu de trás do balcão e foi falar com o guarda que estava na lateral da praça. Os dois conversavam, gesticulavam, abanavam a cabeça e, de vez em quando, apontavam pra mim.
Claro que eu estranhei, mas continuei a charutear despreocupado. Até que eles vieram na minha direção. Os dois apressados, falando ao mesmo tempo, perguntaram:
– Oi, bom dia. O senhor é o dono daquele Mercedes? Eu queria que o senhor tirasse o carro da vaga porque ali não é permitido estacionar – disse o guarda apressado.
– Olha só, o guarda veio me perguntar sobre o carro e eu disse que antes de multar era bom avisar ao dono e aí viemos falar com o rapaz aí pra tirar o Mercedão. Carrão, hein doutor? – se animou o jornaleiro.
Era o tal Mercedes lá da parada da estrada. E eu nem tinha notado que ele estava ali perto.
Muito provável que eles até tenham visto o verdadeiro dono, mas, a considerar as suas roupas, como aconteceu na lanchonete, dificilmente o identificaram como tal.
Bem, para espanto dos dois homens eu expliquei que o Mercedes não era meu, que nem carro eu tinha e que estava ali em Friburgo porque vim de carona com um amigo. Depois fiquei avaliando as minhas roupas pra ver se, por acaso, elas seriam roupas de quem tem um carrão importado daqueles.
Enquanto eu pensava nisso, o rapaz contou que quando o guarda chegou na banca e ele me viu aqui sentado na praça, teve certeza de que o Mercedes era meu. E justificou:
– O doutor aí, todo despreocupado, sentado na praça. Sabe como é. Um homem com um charuto na boca faz toda a diferença.
Foi o charuto!