segunda-feira, 25 de junho de 2018

O Enterro da Amiga


Tinha já uma idade considerável a dona Raquel, quando a filha soube da morte da sua melhor amiga, Maria Teresa. Com alguns problemas físicos, que dificultavam a sua locomoção, o que a filha mais temia ao dar a notícia eram os seus lapsos de memória e a sua dispersão, que comprometia a atenção e a concentração até nas tarefas mais simples.
Muito abalada, dona Raquel conseguiu convencer a todos da família que sua presença no velório e no enterro era coisa inegociável, visto que se tratava da sua melhor amiga.
Então ela passou a manhã seguinte se arrumando, escolhendo a melhor roupa e lembrando boas passagens vividas com a Teresa, desde os tempos do Instituto de Educação, os professores e os namorados. O neto, em seguida, veio lhe avisar que tinha conseguido se liberar do trabalho e que a levaria em seu carro até o cemitério, junto com a mãe.
Logo na chegada eles perceberam que o ambiente das capelas estava bem cheio, com muita gente circulando dentro e fora das salas, dificultando os acessos a banheiros e ao bar, que ficava na entrada do saguão. Com muito custo, conseguiram avançar até a capela e dona Raquel pode, enfim, se aproximar da amiga para “lhe dizer algumas palavras”, como tinha mencionado no caminho, ainda dentro do carro.
Pôs a mão na borda do caixão e com a voz embargada, iniciou:
– Ô Maria Teresa, como você faz uma coisa dessas? Ir embora antes de mim?
Uma senhora que estava perto, retrucou:
– Madame, o nome da morta não é Maria Teresa. É Maria do Socorro.
– Nada disso, eu conheço a Maria Teresa desde criança. Eu sei muito bem que essa é a minha Maria Teresa.
A filha, nervosa com a situação, pegou a mãe pelo braço e a levou até uma cadeira, no canto da sala, e foi correndo ver a plaquinha com o nome do falecido, que fica na entrada de cada capela. Realmente, aquela era a Maria do Socorro e não a Maria Teresa.
Voltou correndo pra resgatar a mãe e depressa a segurou novamente pra que ela se levantasse. Um desequilíbrio súbito nessa hora e a mãe, pra não ir ao chão, tentou se apoiar em algo e deu-se o estrago. Esse algo era uma coroa de flores que estava num pedestal. Quando a mãe tentou se firmar, a coroa caiu do pedestal e foi pousar exatamente no colo de uma senhorinha, quase dormitando, na cadeira ao lado. Ela deu um grito de susto e, no meio da correria, do corre-corre, segura a velhinha, recoloca a coroa de flores no pedestal, as duas saíram porta afora evitando maiores problemas que, certamente, viriam em breve.
– Porque nós estamos saindo correndo assim? – perguntou dona Raquel – eu queria falar mais com a minha amiga.
– Mamãe, aquela não era a sua amiga. Era outra pessoa. E você jogou uma coroa de flores na cabeça de uma velhinha, mamãe! Por isso que a gente saiu de lá. Venha, nós vamos procurar a sua amiga agora.
E saíram de novo para o enorme saguão à procura da plaqueta certa, na porta certa, com o nome certo, para o velório certo, enfim.
Finalmente, quando acharam a sala, o féretro tinha acabado de sair e a comitiva fúnebre já se encaminhava para o sepulcro, a passos lentos, pelas alamedas do cemitério. As duas, então, foram se juntar ao grupo no final da procissão. Para se certificar, a filha perguntou o nome da falecida e depois avisou a mãe que desta vez estavam no enterro certo, por mais surreal que essa frase possa parecer.
Depois que os ânimos se acalmaram e desde a saída apressada da capela, até onde se encontravam agora, no cortejo da Maria Teresa, a coisa que a filha mais desejava era que aquilo tudo acabasse bem rápido pra que ela desse o fora daquele cemitério o quanto antes.
Os serviços fúnebres e religiosos estavam em pleno curso. Algumas pessoas disseram algumas preces rápidas, o padre deu todas as bênçãos e o caixão começou a ser baixado na cova. Foram então formadas duas filas de familiares e amigos, uma de cada lado da sepultura, e duas moças passavam pelas pessoas oferecendo pétalas de rosas para serem jogadas por cima do caixão.
Cada um pegava um punhado de pétalas e, ao passar pela sepultura, jogava no caixão. Nervosa e confusa, dona Raquel pegou o seu punhado de pétalas e, no instante de jogar, se atrapalhou e jogou a sombrinha, que estava na outra mão.
Um grande estrondo foi o que se ouviu quando a sombrinha, toda fechada, compacta, caiu na tampa do caixão. Pow. As filhas e netas da defunta, imediatamente, começaram a gritar, um rapaz perguntou em voz alta quem tinha feito aquilo e outras mulheres irromperam em choro. Foi uma comoção geral. A filha mais velha da falecida gritou aos céus, com os braços estendidos:
– Oh, minha mãezinha!!! O que fizeram com a minha mãezinha!!!
Os funcionários do cemitério tiveram então que descer no túmulo pra pegar a sombrinha, cuidando pra não pisar no caixão, pois todos os familiares já estavam chocados o bastante com o incidente. Ao subir, já não encontraram a dona do objeto, claro, que estava sendo rebocada pela filha pra bem longe dali.
– Vamos embora mamãe, vamos sair daqui rápido antes que aconteça o pior.
– Mas eu nem me despedi da minha amiga?
– Acho que ela não é mais sua amiga, mamãe. Você jogou a sombrinha nela!
– Mas as pétalas ainda estão aqui na minha mão.
– Joga fora, mamãe. Joga isso fora, pelo amor de Deus.

Quando a Sônia me contou essa história ela disse que naquela noite, na hora de se deitar, foi pedir desculpas a mãe. Vendo-a triste fez questão de dizer a ela que a amiga Maria Teresa ainda era sua amiga, sim. Que ela não se preocupasse com o que aconteceu no cemitério porque os amigos, se são amigos de verdade, sabem perdoar. E a mãe respondeu com um “Amém, filhinha. Boa noite”.