Raramente o cronista fala de si mesmo. Sempre
contando seus causos, são os fatos pinçados do cotidiano a matéria prima das
suas produções.
Na qualidade de cronista deste blog, pois, peço permissão
para subverter a normalidade literária desta página e falar de mim, do início
ao fim, para consumação do título que escolhi acima.
Meu nome de batismo é de origem sueca. Anderson
é o filho de André. No meu caso, meu filho é que se chama André, o que subverte
a descendência em ascendência, como que mantendo a circularidade das
existências no carrossel eterno das gerações em movimento.
Minha avó Júlia teve cinco filhos: minha mãe,
Jurema, minhas duas tias, Iracema e Iara, e meus dois tios Urubatão e o
primogênito Zadir, que ganhou o nome do meu avô. Daí já se tem uma ideia da
linha espiritual da minha família e sua tendência para o culto às religiões
afro-brasileiras. Eu só virei Anderson, e não Tupinambá ou Peri, por escolha da
minha tia Wanda, irmã do meu pai, ao ser convidada para minha madrinha.
Desde sempre eu convivi com um altar que tinha
em casa, dedicado aos caboclos e preto-velhos cultuados pelos meus pais. Nas
sessões ali realizadas, meu pai incorporava as entidades e eu lembro de só
deixar a tevê na sala e ir correndo pro barracão do fundo da casa quando sentia
aquele cheiro convidativo do charuto que mais parecia o de um doce.
Nas festas de Cosme e Damião, uma data muito
tradicional no Rio de Janeiro, os meus amigos da vizinhança iam lá pra casa e
sentavam na mesa de doces com a gente. Mesmo aqueles cujas mães proibiam a
entrada no barracão por causa do altar, nesse dia davam o seu jeito de
desobedecer sem o menor problema.
Diante das preocupações financeiras do meu pai
com os custos da produção, os doces etc, minha mãe todo ano dizia que tinha
feito uma promessa pros santos gêmeos e por isso tinha de manter a festa. A
gente até ria de lado porque, às vezes, minha mãe nem sabia dizer direito que
promessa tinha feito, só que tinha de manter a data, por causa do prometido.
Quando meu pai deixou de fazer as sessões em
casa, foi a época em que minha mãe foi para o Candomblé junto com a minha irmã.
Não se sabe ao certo quem levou quem, mas as duas sempre foram muito unidas
nesse culto e sempre que eu ia nas festas dos Orixás, tudo me remetia a algo familiar,
ao antigo charuto com cheiro de doce.
Eu só participava das festas como assistente e
olhava tudo com muita admiração. Desde a batida dos tambores, as vestimentas,
as danças e os cantos, tudo era maravilhoso e eu jamais consegui controlar o
choro diante da visão da minha mãe tomada pela sua Oxum, algo fascinante e
deslumbrante. Os tambores batiam dentro do meu peito e eu só chorava, impotente
para olhar e absorver tudo aquilo diante de mim.
De alguma maneira o que eu senti neste último
sábado, quando participei do seminário Refletir e Ecoar – Patrimônio Cultural e Religiões Afro-brasileiras, me trouxe de volta todo esse universo que ultimamente
só existia nas minhas memórias. Cenas, fatos, personagens e afetividades se
multiplicaram e emergiram daqueles dias como se nunca tivessem deixado de
existir.
Todos os meus antepassados parece que me foram
revelados, magicamente, e eu não me surpreendi com nada, como se já esperasse
por eles e suas presenças. A Oxum da minha mãe, o Caboclo Ubirajara Peito de
Aço do meu pai, o Vovô Cipriano, em torno do qual a gente sentava em volta e
que me olhava profundamente nos olhos sem dizer nada, segurando o seu cachimbo.
Enfim, tudo voltou a ser presente e eu passei a
fazer parte de todo aquele universo novamente, desta vez por escolha própria.
Senti que, mais do que a minha cor de pele, a minha gloriosa e guerreira
ancestralidade veio enfim me resgatar e me dizer quem eu sou de verdade. E é em
nome deles, meus antepassados, e suas lutas diante da vida, que hoje eu me
considero negro. Um negro que quer respeito aos seus direitos; um negro que
quer seu espaço e o reconhecimento da sua Cultura; um negro que quer saudar os
Orixás, os povos e as divindades; um negro que quer celebrar a África como mãe
de todas as nações.
É findo o tempo em que o negro não era humano.
Acabou-se a era do uso da palavra bíblica para legitimar a opressão ao negro e
ao índio. Acabou-se o “eu não sabia”. Acabou-se o “eu sabia, mas não podia
fazer nada”. Acabou-se! Que o sequestro, a matança e o vilipêndio praticado
contra os negros, daqui pra frente nos sirvam apenas como lição e educação para
o futuro. Não se trata de tolerância mas, sim, respeito.
Minha reverência, desde sempre, pela música do
negro, pela dança do negro, pelas cores e batuques do negro agora se aliam ao
meu compromisso altivo e decisivo para com a minha herança negra, cheia de
orgulho, mistério e sabedoria.
E é com esse sentimento, sentimento que pretendo
daqui em diante cultivar, Refletir muito e Ecoar sempre, que encerro essa
crônica falando de mim e de quem eu sou.
Emerge agora uma canção peculiar, das primeiras
que aprendi na minha infância. Por sua letra fácil, era com ela que o Vovô
Cipriano se despedia de nós ao final das sessões. A gente cantava e repetia os
seus versos até que o Vovô subisse. Dançando e rodando, o corpo todo curvado, ele
ia batendo forte no chão com sua bengala listrada em preto e branco.
Os versos eram assim: É preto, é preto,
Cambinda! Todo mundo é preto, Cambinda!
Que assim seja.