sexta-feira, 27 de julho de 2018

Eu, Negro


Raramente o cronista fala de si mesmo. Sempre contando seus causos, são os fatos pinçados do cotidiano a matéria prima das suas produções.
Na qualidade de cronista deste blog, pois, peço permissão para subverter a normalidade literária desta página e falar de mim, do início ao fim, para consumação do título que escolhi acima.
Meu nome de batismo é de origem sueca. Anderson é o filho de André. No meu caso, meu filho é que se chama André, o que subverte a descendência em ascendência, como que mantendo a circularidade das existências no carrossel eterno das gerações em movimento.
Minha avó Júlia teve cinco filhos: minha mãe, Jurema, minhas duas tias, Iracema e Iara, e meus dois tios Urubatão e o primogênito Zadir, que ganhou o nome do meu avô. Daí já se tem uma ideia da linha espiritual da minha família e sua tendência para o culto às religiões afro-brasileiras. Eu só virei Anderson, e não Tupinambá ou Peri, por escolha da minha tia Wanda, irmã do meu pai, ao ser convidada para minha madrinha.
Desde sempre eu convivi com um altar que tinha em casa, dedicado aos caboclos e preto-velhos cultuados pelos meus pais. Nas sessões ali realizadas, meu pai incorporava as entidades e eu lembro de só deixar a tevê na sala e ir correndo pro barracão do fundo da casa quando sentia aquele cheiro convidativo do charuto que mais parecia o de um doce.
Nas festas de Cosme e Damião, uma data muito tradicional no Rio de Janeiro, os meus amigos da vizinhança iam lá pra casa e sentavam na mesa de doces com a gente. Mesmo aqueles cujas mães proibiam a entrada no barracão por causa do altar, nesse dia davam o seu jeito de desobedecer sem o menor problema.
Diante das preocupações financeiras do meu pai com os custos da produção, os doces etc, minha mãe todo ano dizia que tinha feito uma promessa pros santos gêmeos e por isso tinha de manter a festa. A gente até ria de lado porque, às vezes, minha mãe nem sabia dizer direito que promessa tinha feito, só que tinha de manter a data, por causa do prometido.
Quando meu pai deixou de fazer as sessões em casa, foi a época em que minha mãe foi para o Candomblé junto com a minha irmã. Não se sabe ao certo quem levou quem, mas as duas sempre foram muito unidas nesse culto e sempre que eu ia nas festas dos Orixás, tudo me remetia a algo familiar, ao antigo charuto com cheiro de doce.
Eu só participava das festas como assistente e olhava tudo com muita admiração. Desde a batida dos tambores, as vestimentas, as danças e os cantos, tudo era maravilhoso e eu jamais consegui controlar o choro diante da visão da minha mãe tomada pela sua Oxum, algo fascinante e deslumbrante. Os tambores batiam dentro do meu peito e eu só chorava, impotente para olhar e absorver tudo aquilo diante de mim.
De alguma maneira o que eu senti neste último sábado, quando participei do seminário Refletir e Ecoar – Patrimônio Cultural e Religiões Afro-brasileiras, me trouxe de volta todo esse universo que ultimamente só existia nas minhas memórias. Cenas, fatos, personagens e afetividades se multiplicaram e emergiram daqueles dias como se nunca tivessem deixado de existir.
Todos os meus antepassados parece que me foram revelados, magicamente, e eu não me surpreendi com nada, como se já esperasse por eles e suas presenças. A Oxum da minha mãe, o Caboclo Ubirajara Peito de Aço do meu pai, o Vovô Cipriano, em torno do qual a gente sentava em volta e que me olhava profundamente nos olhos sem dizer nada, segurando o seu cachimbo.
Enfim, tudo voltou a ser presente e eu passei a fazer parte de todo aquele universo novamente, desta vez por escolha própria. Senti que, mais do que a minha cor de pele, a minha gloriosa e guerreira ancestralidade veio enfim me resgatar e me dizer quem eu sou de verdade. E é em nome deles, meus antepassados, e suas lutas diante da vida, que hoje eu me considero negro. Um negro que quer respeito aos seus direitos; um negro que quer seu espaço e o reconhecimento da sua Cultura; um negro que quer saudar os Orixás, os povos e as divindades; um negro que quer celebrar a África como mãe de todas as nações.
É findo o tempo em que o negro não era humano. Acabou-se a era do uso da palavra bíblica para legitimar a opressão ao negro e ao índio. Acabou-se o “eu não sabia”. Acabou-se o “eu sabia, mas não podia fazer nada”. Acabou-se! Que o sequestro, a matança e o vilipêndio praticado contra os negros, daqui pra frente nos sirvam apenas como lição e educação para o futuro. Não se trata de tolerância mas, sim, respeito.
Minha reverência, desde sempre, pela música do negro, pela dança do negro, pelas cores e batuques do negro agora se aliam ao meu compromisso altivo e decisivo para com a minha herança negra, cheia de orgulho, mistério e sabedoria.
E é com esse sentimento, sentimento que pretendo daqui em diante cultivar, Refletir muito e Ecoar sempre, que encerro essa crônica falando de mim e de quem eu sou.
Emerge agora uma canção peculiar, das primeiras que aprendi na minha infância. Por sua letra fácil, era com ela que o Vovô Cipriano se despedia de nós ao final das sessões. A gente cantava e repetia os seus versos até que o Vovô subisse. Dançando e rodando, o corpo todo curvado, ele ia batendo forte no chão com sua bengala listrada em preto e branco.
Os versos eram assim: É preto, é preto, Cambinda! Todo mundo é preto, Cambinda!
Que assim seja.