segunda-feira, 9 de julho de 2018

O Sorvete


– Alô, bom dia.
– Bom dia, senhor. O que deseja?
– A senhora, por acaso, tem alguma coisa do Glenn Gould?
– Sim, tenho. Mas, especificamente, a que o senhor se refere? Eu tenho a coleção completa das Variações Goldberg, entre outras coisas.
– Ah, sim, do Cravo Bem Temperado do Bach, né?
– Isso mesmo, é um módulo que ele gravou no piano e não no cravo, instrumento para o qual a composição foi feita originalmente. O grau de dificuldade é alto, considerando a mudança do cravo para o piano.
– Eu entendo. A senhora conhece o filme dele?
– Como não? 32 curtas-metragens sobe Glenn Gould. Um filme primoroso que dá bem uma ideia do gênio musical e excentricidade do maior intérprete de Bach, como diz na apresentação do DVD.
– Eu lembro de ter visto o filme na Cinemateca Brasileira, em São Paulo. Foi durante a mostra de cinema que tem lá todos os anos e que é muito boa, com ótimos filmes. Mas a senhora mencionou algo um pouco antes, ao dizer que tem a coleção Goldberg, gravada pelo Glenn. A que a senhora se referia quando disse “entre outras coisas”?
– Bem, é que eu tenho alguns livros sobre ele. Uma biografia e um outro, ótimo, com a transcrição de uma entrevista que ele deu a uma rádio da Suécia.
– Puxa, parece bem interessante este.
– É muito bom. Ele menciona aquela questão do Norte, recorrente nas falas dele, quando ele cita o isolamento e a necessidade do ser humano de passar um tempo sozinho.
– Verdade. Como é mesmo? Ele diz que deve ter uma conta qualquer que defina que um homem, a cada tantas horas na companhia de outras pessoas, deve ficar outras tantas outras horas sozinho. Pra equilibrar as coisas, o espírito, diz ele.
– Isso mesmo. Tinha esquecido dessa passagem. Outro dia eu achei uma foto dele, ainda pequeno, ouvindo música clássica num gramofone, afundado em uma poltrona. Tinha as mãos segurando a cabeça e uma fisionomia crispada, de total concentração e imersão na música, sabe?
– Eu acho que conheço essa foto. É linda!
– Pois então, agora eu queria saber os preços e mais detalhes sobre o prazo de entrega de vocês?
– Preço? Preço de quê?
– Das gravações, os DVDs, Cds, os livros, tudo que for relacionado com o Glenn Gould.
– Mas o que tem a ver com preços? Eu não estou vendendo nada.
– Aí não é da Livraria Camões?
– Não senhor, aqui é da minha residência mesmo, por mais estranho que essa frase possa parecer.
– Nossa, que engano, me desculpe. Mas a senhora foi respondendo ao que eu perguntava e...
– Eu achei que era alguma pesquisa... Vivem ligando pra cá pra fazer pesquisa. Que engraçado tudo isso.
– Bem que eu notei que a senhora sabia muito do pianista, tanto da vida dele como das suas obras. Até a foto dele menino a senhora conhece.
– É. Não tem muitas pessoas no Brasil que conhecem o Glenn Gould.
– Pois é. Eu ia falar exatamente isso. Que coincidência. Eu diria que coincidência boa!
– Mundo pequeno.
– Olha, me desculpe incomodar, viu? Eu vou ligar lá pra livraria então. Tomara que lá me atenda uma pessoa assim como a senhora, educada e que possa me ajudar com o que estou procurando, o Glenn Gould, naturalmente.
– Mas, bem... quer dizer... não tem o que desculpar. O senhor fique à vontade se quiser tirar alguma dúvida depois de falar com a livraria.
– Tenho a impressão de que terei outras dúvidas, sim, embora não tenha a certeza de como fazer pra ligar pra senhora novamente, visto que essa ligação foi um erro.
– Fico triste em saber que tudo não passou de um erro. Mas se o senhor pensa assim...
– Não. Não é isso. Imagina. Quero dizer que foi um erro de discagem, ou de teclagem telefônica. Eu liguei errado e acabei ligando pra senhora, o que foi um acerto, dado o erro inicial. Olha, eu já estou me embananando todo pra explicar isso. Me perdoe de novo. Eu gostei muito de ter falado com a senhora, mesmo sem ter ligado exatamente pro seu número. É que agora eu não sei se saberei errar de novo quando quiser fazer o certo e ligar pra senhora outra vez. Entende?
– Ah, é isso? Então anota o meu número certo. Aí o senhor não vai ligar mais errado, não é mesmo?
– Ia ser ótimo. Se não for desplante da minha parte, a gente podia tomar um café um dia desses. Lá na livraria.
– Ótima ideia. Eu levo o meu livro do Glenn Gould.
– E eu levo a foto dele menino.
– Pronto, já temos como nos reconhecer na livraria.
– É verdade.
– Mas me perdoe por não tomar café. Detesto café. Não gosto mesmo.
– Nem eu.
– Nem chá.
– Idem.
– Tampouco chocolate quente. Na verdade eu ia sugerir um sorvete bem grande. Mas, como o senhor há de convir, não é todo mundo que gosta de sorvete nesse frio.
– Eu gosto. Adoro sorvete no inverno.
– Tem gente que acha isso um erro.
– Discar errado também é um erro.
– Está dito.
– Eu ligo pra senhora.
– Ok, vou esperar.
– Um bom dia e até breve.
– Boas compras. Até.