quarta-feira, 29 de agosto de 2018

O Sapato Alto

para meu filho, Deco


Refugiados na seção de sapatos, estávamos eu e mais um outro marido, também cansado de andar pela loja, tomando fôlego naquele espaço repleto de cadeiras. Um oásis. Era de sapatos de mulher mas, mesmo assim, a gente sem trocar palavra podia retribuir, um para o outro, as sensações que aquelas cores, variedades, materiais e tamanhos causavam nas nossas fisionomias.
As mulheres estranhavam um pouco a nossa presença ali, principalmente quando nos notavam justamente na hora de se virar e posar com a possível bolsa nova, a tiracolo ou mesmo no braço encolhido, se mirando diante do espelho. A gente disfarçava, olhava em outras direções e logo elas ficavam mais à vontade novamente.
Peculiar também era o trabalho das vendedoras. Elas tiravam tudo das prateleiras, traziam ao alcance das mãos compradoras e no instante seguinte já estavam de novo resignadas, levando tudo de volta ao mostruário, claro, sem esquecer de arrumar os lacinhos, os cadarços, os apliques e pondo o calçado novamente na tradicional posição atrativa na prateleira.
Ia assim já correndo uns bons minutos quando, de repente, apareceu aquela menina. Era uma adolescente de uns 14, 15 anos no máximo. Vinha junto com a mãe logo atrás de si a mostrar este e aquele, sem conseguir animar a menina ou mesmo fazer criar nela algum interesse por qualquer objeto naquela seção. Na hora, eu e o outro homem, pensamos que devia ser algo que a mãe estava obrigando a filha a fazer e a gente já ficou suspenso com aquilo.
As duas rodaram várias vezes entre os corredores dos tênis, das sandálias, das bolsas. Olharam os adereços, os complementos, os materiais, os tipos de couro, os acabamentos, até que de um segundo para o outro a filha saiu da trilha da mãe e voltou com um enorme sapato alto nas mãos. A gente nem notou direito o sapato, pois que tudo fora momentaneamente eclipsado pelo largo e jubiloso sorriso da menina trazendo o seu troféu, o seu achado, o graal.
A menina se sentou, desamarrou o tênis de sola grossa, depois tirou as meias, dobrou a barra da calça com alguns buracos puídos e passou a delicadamente colocar os sapatos pretos que tinha escolhido. A mãe, meio sem jeito, sem ter o que dizer, sem ter um argumento capaz de conter a própria vida, apenas suspirou e disse com alguma melancolia:
– Ah, mas esse aí é um sapato alto. Não vai ficar bem não! – tentou inerme a pobre.
Como o diretor que grita ação pedindo silêncio, luz e câmera a loja inteira foi pausada. Todos naquela plateia só tinham o palco como destino dos seus olhares. E no palco só havia uma menina e seu primeiro sapato alto.
Quando a menina finalmente se ergueu, com admirável desenvoltura, não surpreendeu ninguém. Um misto de intuição, instinto feminino, equilíbrio herdado de gerações, a menina que se sentou de tênis já não existia mais. Agora estava ali uma moça altiva, elegante, segura de si e confiante no futuro, pelo menos naquela etapa do seu futuro.
A mãe já não pôde negar. Literalmente. E as vendedoras que se aproximaram sem ninguém notar não se furtaram a ensaiar um início de aplauso, meio contido, meio cúmplice até, tanto era o contentamento expressivo da menina, o seu rosto e o seu olhar, lá de cima dos novos saltos.
A menina era outra e o mundo era outro.
Quem tem sorte de ter uma filha, se prepare pra isso.
E aprecie intensamente este capítulo.

Minha neta, que há de chegar um dia, certamente vai ter algum lenço a me ceder, convenientemente, quando chegar a sua vez. Enquanto isso ela cuida apenas de suspeitar os olhos marejados do seu vô a lhe esperar, desde sempre, com um belo par de sapatos nas mãos.
Assim será!