para meu filho, Deco
Refugiados na seção de sapatos, estávamos eu e
mais um outro marido, também cansado de andar pela loja, tomando fôlego naquele
espaço repleto de cadeiras. Um oásis. Era de sapatos de mulher mas, mesmo
assim, a gente sem trocar palavra podia retribuir, um para o outro, as
sensações que aquelas cores, variedades, materiais e tamanhos causavam nas
nossas fisionomias.
As mulheres estranhavam um pouco a nossa
presença ali, principalmente quando nos notavam justamente na hora de se virar
e posar com a possível bolsa nova, a tiracolo ou mesmo no braço encolhido, se
mirando diante do espelho. A gente disfarçava, olhava em outras direções e logo
elas ficavam mais à vontade novamente.
Peculiar também era o trabalho das vendedoras.
Elas tiravam tudo das prateleiras, traziam ao alcance das mãos compradoras e no
instante seguinte já estavam de novo resignadas, levando tudo de volta ao
mostruário, claro, sem esquecer de arrumar os lacinhos, os cadarços, os apliques
e pondo o calçado novamente na tradicional posição atrativa na prateleira.
Ia assim já correndo uns bons minutos quando, de
repente, apareceu aquela menina. Era uma adolescente de uns 14, 15 anos no
máximo. Vinha junto com a mãe logo atrás de si a mostrar este e aquele, sem
conseguir animar a menina ou mesmo fazer criar nela algum interesse por
qualquer objeto naquela seção. Na hora, eu e o outro homem, pensamos que devia
ser algo que a mãe estava obrigando a filha a fazer e a gente já ficou suspenso
com aquilo.
As duas rodaram várias vezes entre os corredores
dos tênis, das sandálias, das bolsas. Olharam os adereços, os complementos, os
materiais, os tipos de couro, os acabamentos, até que de um segundo para o
outro a filha saiu da trilha da mãe e voltou com um enorme sapato alto nas mãos. A
gente nem notou direito o sapato, pois que tudo fora momentaneamente eclipsado
pelo largo e jubiloso sorriso da menina trazendo o seu troféu, o seu achado, o
graal.
A menina se sentou, desamarrou o tênis de sola
grossa, depois tirou as meias, dobrou a barra da calça com alguns buracos
puídos e passou a delicadamente colocar os sapatos pretos que tinha escolhido.
A mãe, meio sem jeito, sem ter o que dizer, sem ter um argumento capaz de
conter a própria vida, apenas suspirou e disse com alguma melancolia:
– Ah, mas esse aí é um sapato alto. Não vai
ficar bem não! – tentou inerme a pobre.
Como o diretor que grita ação pedindo silêncio,
luz e câmera a loja inteira foi pausada. Todos naquela plateia só tinham o
palco como destino dos seus olhares. E no palco só havia uma menina e seu
primeiro sapato alto.
Quando a menina finalmente se ergueu, com admirável
desenvoltura, não surpreendeu ninguém. Um misto de intuição, instinto feminino,
equilíbrio herdado de gerações, a menina que se sentou de tênis já não existia
mais. Agora estava ali uma moça altiva, elegante, segura de si e confiante no
futuro, pelo menos naquela etapa do seu futuro.
A mãe já não pôde negar. Literalmente. E as
vendedoras que se aproximaram sem ninguém notar não se furtaram a ensaiar um
início de aplauso, meio contido, meio cúmplice até, tanto era o contentamento
expressivo da menina, o seu rosto e o seu olhar, lá de cima dos novos saltos.
A menina era outra e o mundo era outro.
Quem tem sorte de ter uma filha, se prepare pra
isso.
E aprecie intensamente este capítulo.
Minha neta, que há de chegar um dia, certamente
vai ter algum lenço a me ceder, convenientemente, quando chegar a sua vez.
Enquanto isso ela cuida apenas de suspeitar os olhos marejados do seu vô a lhe
esperar, desde sempre, com um belo par de sapatos nas mãos.
Assim será!